Após festival, foco na Carta Goitacá para criação da escola de cinema em Campos
04/09/2025 08:47 - Atualizado em 04/09/2025 08:47
Rodrigo Silveira
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema, idealizado e produzido pela Quiprocó Filmes, encerrou sua primeira edição reforçando o compromisso com o desenvolvimento da indústria do cinema e do audiovisual no interior do Estado do Rio a partir da divulgação da Carta Goitacá. O manifesto foi elaborado no âmbito do Comitê Científico do Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense que convoca sociedade civil, iniciativa privada, universidades, agentes culturais e poder público a apoiar a criação da Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual (EBCA) na Uenf. O documento ressalta o potencial histórico e cultural da região e o momento propício para concretização da escola. 
Idealizada por Darcy Ribeiro há mais de três décadas, a escola não saiu do papel. Dentre outros aspectos, a Carta Goitacá reforça a importância de consolidar uma estrutura acadêmica permanente para formar profissionais em criação, pesquisa, preservação, produção e gestão do audiovisual, fortalecendo a economia do cinema e do audiovisual no Norte e Noroeste Fluminense.

O potencial histórico e cultural da região é reforçado na carta, lembrando que Campos já teve cerca de 70 salas de cinema, foi cenário de produções nacionais e formou artistas como Tonico Pereira e Zezé Motta. Apesar disso, há carência de políticas públicas estruturantes e profissionais qualificados para atender ao crescimento do setor audiovisual. A Carta Goitacá enfatiza que o momento é propício, com iniciativas como a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc, que disponibilizam recursos inéditos para o desenvolvimento cultural.


“A Carta Goitacá é mais do que um manifesto, é um chamado coletivo para que o cinema reencontre, na Planície Goitacá, o seu lugar de invenção e potência criadora, possibilitando a criação de novas vocações produtivas que contribuam com o desenvolvimento econômico da região Norte e Noroeste fluminense”, afirma Fernando Sousa, diretor do festival.


O documento é assinado por professores, pesquisadores, artistas, gestores públicos e especialistas do audiovisual que compõem o Comitê Científico do Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense e do I Festival Internacional Goitacá de Cinema.



Confira a carta na íntegra:



CARTA GOITACÁ


Campos dos Goytacazes, 24 de agosto de 2025




Manifesto pela Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual da UENF


Nós, professores, pesquisadores, artistas, produtores, preservadores, estudantes, gestores públicos e cidadãos do Norte e Noroeste Fluminense, reunidos em torno do Comitê Científico do Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense e do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, nos dirigimos à sociedade e às instituições para afirmar a defesa da retomada do sonho interrompido de Darcy Ribeiro e Geraldo Sarno e criar, na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, a Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual (EBCA).

Há três décadas, Darcy Ribeiro concebeu a Escola Brasileira de Cinema e Televisão (EBCTV) em formato de residência, com dedicação exclusiva, integrando prática e teoria, inspirada no modelo da Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Seu projeto, previsto para o Solar do Colégio dos Jesuítas, não se concretizou, mas deixou um legado de inspiração, resultando em realizações importantes no campo do cinema e do audiovisual. Algumas iniciativas pioneiras forjadas naquele contexto merecem destaque. Entre 1993 e 1998, Geraldo Sarno trabalhou na UENF, tendo ajudado a criar o Laboratório de Pesquisa e Tecnologia da Imagem (LPTI), do Centro de Ciências do Homem (CCH), que ao longo do tempo seria transformado no Laboratório de Cognição e Linguagem (LCL). Editada em conjunto pelo Laboratório de Pesquisa e Tecnologia da Imagem e pelo Centro de Tecnologia Audiovisual da Funarte, Sarno também foi importante na criação da “Cinemais - revista de cinema e outras questões audiovisuais”, uma das principais iniciativas editoriais na área do cinema e do audiovisual da década de 1990 e começo dos anos 2000, que reuniu um conjunto expressivo de publicações de cineastas, pesquisadores e produtores audiovisuais. Embora a EBCTV não tenha se tornado realidade, nessa esteira de realizações incipientes, destacam-se outras ações no campo do cinema e da cultura realizadas na UENF.

O Festival Artpoiese, o Cine Cabrunco, a Unidade Experimental de Som e Imagem (UESI) e, mais recentemente, o Cine Darcy, são alguns exemplos de iniciativas que compõem a cadeia produtiva do cinema e do audiovisual no Norte e Noroeste Fluminense. Trata-se de um conjunto de ações muito relevantes, mas institucionalmente dispersas. A proposta atualizada da Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual nasce com objetivo de proporcionar uma estrutura acadêmica sólida, articulada e permanente, capaz de formar profissionais para atuar na criação, no desenvolvimento, na pesquisa, na preservação, na gestão, pública ou privada, nos diferentes campos, esferas, formatos, suportes e mercados da cadeia produtiva do cinema e do audiovisual, fortalecendo a economia criativa da região, conectando circuitos nacionais e internacionais.

O projeto articula-se com a histórica relação da região Norte e Noroeste Fluminense com o cinema. Ao longo do último século, Campos chegou a possuir cerca de setenta salas exibidoras, produziu e foi cenário de filmes e novelas que marcaram a memória audiovisual brasileira e também foi testemunha do nascimento de artistas que conquistaram projeção nacional, como é o caso de Tonico Pereira e Zezé Motta, que recebeu o título de doutora honoris causa pela UENF durante a abertura do I Festival Internacional Goitacá de Cinema. A história cinematográfica da região é rica e diversa, mas, ao longo do tempo, não foram criadas políticas públicas estruturantes capazes de manter vivas as redes de produção, exibição e formação.

O momento que vivemos é único. Através de políticas públicas recentes, como a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc, recursos inéditos chegam aos municípios brasileiros, abrindo possibilidade de investimentos duradouros na cultura e no audiovisual. Somente em 2023, a aplicação da Lei Paulo Gustavo injetou R$ 852 milhões na economia do Estado do Rio de Janeiro, gerando empregos, fortalecendo o mercado e ampliando a circulação de bens culturais.

A realidade do interior fluminense revela a urgência de ações específicas: na soma dos municípios do Norte e Noroeste Fluminense, quase 12 milhões de reais foram recebidos, mas ainda faltam quadros qualificados, equipamentos estruturados e políticas de longo prazo que transformem tais recursos em bens, processos contínuos e legados.

O setor do cinema e do audiovisual conta com um robusto arcabouço institucional, econômico-financeiro e regulatório formalizado, com destaque para alguns instrumentos que contemplam a dimensão da educação audiovisual, a saber: a Lei 14.533/2023, que institui o Plano Nacional de Educação Digital (PNED), e outros instrumentos que buscam promover cultura e o cinema nas escolas, como a lei 13.006/14 que obriga a exibição de filmes de produção brasileira nas escolas de educação básica do Brasil e as leis 10.639/03 e 11.645/08, que tratam da inserção da história e cultura afro brasileiras na educação. Trata-se de instrumentos legais que precisam ser implementados na prática a fim de garantir a formação no campo da cultura, do cinema e do audiovisual.

Apesar do grande potencial de consolidação das regiões do interior do estado do Rio de Janeiro como pólos da indústria audiovisual, os dados da Ancine são o sintoma de um contexto que ainda possui grandes desafios. Segundo dados oficiais do Observatório do Cinema e do Audiovisual da ANCINE, o estado possui 2.455 produtoras cadastradas pela agência, sendo 6 delas em Campos dos Goytacazes, 9 produtoras em Macaé e apenas uma em Itaperuna.

A retomada da proposta de criação da Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual na UENF se insere, portanto, numa estratégia mais ampla: suscitar e aprofundar a descentralização econômica, em especial do setor audiovisual, na região Norte e Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, além de enfrentar a histórica dependência do modelo econômico baseado no petróleo. É preciso fortalecer novas vocações econômicas para a região, capazes de articular inovação, formação de mão-de-obra qualificada, a valorização da identidade regional e a dinamização da economia local. As imagens em movimento, dos canais de influencers à publicidade e aos games, tendo o cinema e o audiovisual no centro do processo, pela sua capacidade de agregar valor simbólico e econômico, devem ser a força motriz desse desenvolvimento.

Ao articular ensino, pesquisa e extensão, a Uenf é um polo estratégico de desenvolvimento de uma economia criativa robusta no interior do Estado, com impacto para além de suas fronteiras imediatas, alcançando municípios vizinhos do Espírito Santo e de Minas Gerais. A Escola de Cinema que defendemos não será apenas um centro de formação, mas também de produção, circulação, preservação e reflexão crítica sobre o campo do audiovisual, ancorado no compromisso com a diversidade cultural e com a potência criativa da região Norte e Noroeste Fluminense.

Não se trata apenas de recuperar um passado glorioso. Trata-se de projetar um futuro em que a cultura seja reconhecida como direito e como vetor de desenvolvimento. É preciso criar uma escola que forme técnicos, artistas, pesquisadores, preservadores e gestores; que estimule parcerias com produtoras, festivais, entidades de patrimônio, plataformas de exibição e com o poder público em todas as suas esferas; que seja capaz de dialogar com as demandas contemporâneas do mercado audiovisual e, ao mesmo tempo, preservar a função social do cinema como instrumento de pensamento crítico e transformação.

Por isso, convocamos a sociedade civil, os poderes públicos, as universidades, as empresas e todos os agentes culturais a se unirem em torno deste projeto. A Escola Brasileira de Cinema e Audiovisual consiste num processo de reivindicação ampla que articula a interiorização das políticas públicas e da indústria do cinema e do audiovisual: é uma aposta estratégica na capacidade do interior do estado do Rio de Janeiro de imaginar, criar e construir alternativas para si mesmo, com o potencial estratégico de contribuir para o desenvolvimento cultural, econômico e social da Região.

A tarefa que se coloca é transformar o sonho de Darcy Ribeiro e Geraldo Sarno em realidade e lançar as bases de um futuro em que o cinema reencontre, na extensa Planície Goitacá, o seu lugar de invenção.



Comitê Científico

Prof. Adelia Miglievich-Ribeiro (UFES)

Prof. Dra. Ana Rosa Marques Araujo Teixeira (UFRB)

Prof. Dra. Ana Paula Nunes de Abreu (UFRB)

Prof. Dr. David Maciel de Mello Neto (UENF)

Prof. Dr. Edson Farias (UNB)

Prof. Dr. Heitor Benjamim (UNIFLU)

Hernani Heffner (Gerente da Cinemateca do MAM)

Prof. Geraldo Timóteo (UENF)

Fernando Sousa (PPGSP/UENF) Diretor do Festival Internacional Goitacá de Cinema

Dr. Gabriel Ferreira Barbosa (Diretor Executivo do Festival Internacional Goitacá de Cinema)

Prof. Dr. João Luiz Vieira (UFF)

Prof. Dr. Paulo Gajanigo (UFF/Campos)

Prof. Dr. Ricardo Oliveira de Freitas (UNEB)

Tiago Quintes - (PPGCine/UFF)




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