Maestro Ethmar Filho - "Mil Bitucas Nascem"
*Maestro Ethmar Filho 08/10/2025 12:15 - Atualizado em 08/10/2025 12:15
Maestro Ethmar Filhor
Maestro Ethmar Filhor / Reprodução/Facebook
Depois que “meus heróis morreram de overdose” em Copacabana, eu parei no domingo de manhã para assistir “Milton Bituca Nascimento”, o documentário. Ali, Milton deixa claro que não é ele que sofre de demência senil, ao escolher o caminho da música, da criação e do prestígio internacional, capitaneados pela sua voz universal; maquinista do seu próprio destino e do destino de quase todos os ilustres cavaleiros do Clube de Esquina. Foi no Vera Cruz, trem que liga o Rio de Janeiro a Belo Horizonte, que Bituca compôs as suas melhores músicas, em parceria com Fernando Brant e Ronaldo Bastos que, hoje, não explicam muito bem a forma como “receberam as letras” de alguns sucessos absolutos relacionados ao Clube. O show de despedida de Milton, que só podia ser no Mineirão completamente lotado, no encerramento da turnê “A Última sessão de música”, que percorreu o mundo, tinha a presença de todas as idades, principalmente das idades que não o conheceram em sua plenitude artística. Assim como meus filhos, aqueles que cresceram na carona da audição dos pais e que desenvolveram o bom gosto musical longe do lixo comercial em que se transformou a Música Popular Brasileira. Nunca me esqueço da bronca que o apresentador Otávio Mesquita levou do Chitãozinho, quando quis colocar o maestro César Camargo Mariano de fundo musical para a entrevista da dupla, ambos ao vivo: “Ô Tavinho, olha aí, quem está ao piano é o maestro César! Mais respeito! Conversa com ele primeiro, depois nos falamos”.
Milton, o nascido carioca que leva Minas no nome, aglutinou seus parceiros, compôs com todos e prestigiou todas as músicas como se fossem somente suas. Aos oitenta anos, ele se despediu dos palcos em grande estilo, aclamado pelo público após mais de seis décadas de carreira. “O Bituca manda em mim, sempre mandou e eu obedeço!”, depoimento de Chico Buarque ao documentário que, entre revelações espetaculares a respeito de Milton, até aborda esse show de despedida. Acompanha Milton, seu filho adotivo, amigo inseparável e diretor geral da turnê Augusto Nascimento, que o levou de volta aos maiores expoentes do jazz norte-americano, tais como Herbie Hancock, Wayne Shorter, Quincy Jones e que se referem ao Bituca como um dos maiores músicos do planeta de todos os tempos.
Milton parece ter entrado no avião a contra gosto porque se pudesse iria de trem. Esse trem que é mais parceiro do que seus próprios parceiros, em tantas músicas, protagonista de “Morro Velho” e do “Trem Azul”. Milton, cuja música não tem jazz mas é jazz, descreve Minas enquanto Minas desde a respiração até o próprio andar, nas melodias que cantam o território mineiro como se estivéssemos lá ao ouvi-las. Eu sempre fiz questão de ouvir Milton quando estive em Minas, para me sentir nas montanhas que enfeitam seu território. Não existe ninguém mais mineiro que Milton Nascimento, o carioca que foi pra Três Pontas aos dois anos, adotado pela madrinha branca de sua mãe morta e João Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, médico, diplomata e escritor de um dos maiores Best-sellers brasileiros, “Grande Sertão Veredas” e que cumpriu o itinerário contrário. No ano em que Guimarães Rosa morreu, Milton se lançou ao estrelato, classificando-se em segundo lugar no II Festival internacional da Canção com a música “Travessia” que passaria a ser citada na definição de mundo aos olhos do Bituca: “O mundo é travesso e a vida é travessia”. Eu sei o que Milton sentia ao entrar num trem. Todos os que já entraram sabem. Viajei com minha mãe e meu irmão Mauro muitas vezes do Rio para Campos no “Cacique noturno” e na “Litorina Diurna”; Campos, na década de sessenta, tinha cheiro de açúcar queimado, goiabada e calda de chuvisco. Minas também tem cheiro e som mineiros. Milton descreve essas sensações em suas músicas, principalmente a sensação de estar do lado de fora do trem, vendo-o diminuir de tamanho. Ele descobriu, muito antes de todos nós, seus fãs, que “Nada será como antes amanhã”, inventou “um cais”, “soltou a voz nas estradas” e nos fez descobrir, aos cabelos brancos, que “sonhos não envelhecem”.
A direção de Flávia Moraes e a produção do documentário são dignas de aplausos por sua qualidade e, principalmente por não esquecerem de quase nada. A comparação da voz de Milton com o trompete do Miles Davis é muito oportuna e a conversa entre ele e o Wayne Shorter é absolutamente emocionante; vale a pena assistir suas quase duas horas de duração no streaming Globo Play.

Maestro Ethmar Filho – Mestre e Doutorando em Cognição e Linguagem pela Uenf, regente de corais e de orquestras sinfônicas há 25 anos.

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