Oferecendo porquês - as mulheres de São João da Barra que deram significado à pesca
Edmundo Siqueira 04/06/2023 17:48 - Atualizado em 19/08/2023 18:10

Cooperativa Arte Peixe
Cooperativa Arte Peixe / Reprodução

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A praia de Atafona, no município de São João da Barra, interior norte do Rio de Janeiro, abriga a foz do rio Paraíba do Sul. Um estuário em formato de delta que começou sua história com a pesca ainda em 1630, quando um grupo de pescadores vindos de Cabo Frio se fixaram ali. Homens e mulheres que criaram seus filhos onde antes era batizada de São João da Praia, pela devoção que tinham a São João Batista.

Da rústica vila de pescadores até a cidade, muito foi transformado, mas sempre tendo a pesca e as águas como os elementos principais. O mar, o rio, o porto e os barcos sempre deram tudo que os atafoneses precisavam. Mas um grupo de 20 mulheres entendeu que era preciso fazer mais com tudo aquilo. Era preciso dar porquês ao papel feminino na indústria da pesca.
Foz do Rio Paraíba do Sul, no Norte Fluminense.
Foz do Rio Paraíba do Sul, no Norte Fluminense. / Foto: Zig Koch / Banco de Imagens ANA
Em fevereiro de 2007, as mulheres de Atafona abraçaram a oportunidade oferecida pelo Programa de Organização Produtiva de Comunidades (Produzir) do Ministério da Integração Nacional, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Estado do Rio de Janeiro (Senar), onde aprenderam a se organizar em uma cooperativa e profissionalizar uma atividade o que já desenvolviam desde muito novas: o beneficiamento do pescado.

— Limpar camarão, filetar os peixes, cortar os filés, enfim, ajudava em casa nesses processos, até que veio esse curso do beneficiamento do pescado”, contou Fernanda Pires, presidente da Arte Peixe, cooperativa e coletivo de mulheres.

A ideia do programa Produzir era oferecer cursos de boas práticas de cooperativismo, higiene alimentar, meio ambiente e processamento do pescado, ensinando a princípio dois produtos: linguiça de camarão e hambúrguer de peixe. Com esses ensinamentos, as mulheres fundaram a Cooperativa Arte Peixe e foram além dos produtos alimentícios. Com as escamas que sobraram da limpeza do pescado começaram a produzir bijuterias. “Estou usando um brinco aqui hoje é que de escama de peixe, uma bijuteria feita com as escamas”, dizia, orgulhosa, Fernanda.

Desenvolvendo a cooperativa

Depois do programa Produzir, as cooperadas da Arte e Peixe perceberam que era necessário que o aprendizado e a capacitação fossem contínuos. A participação em editais governamentais foi um dos caminhos que encontraram para investir na cooperativa e aproveitar os potenciais que viam nelas mesmas.

Capacitadas pelos cursos de empreendedorismo e pela própria experiência adquirida, conseguiram que um projeto da Arte Peixe fosse contemplado no Edital de Apoio ao Desenvolvimento de Modelos de Inovação Tecnológica Social, da Faperj. Com os recursos do projeto investiram na compra de maquinários e insumos para aumentar a produção, e ampliaram o número de mulheres cadastradas na cooperativa.

Da ideia inicial, que era apenas criar uma renda extra à atividade da pesca, ajudando no orçamento familiar, as mulheres descobriram que a Arte Peixe podia criar pertencimento, cidadania, empoderamento feminino e significado à atividade. Trazer o porquê de trabalhar com o peixe. 

Fernanda Pires conta o relato de uma cooperada que disse ter se sentido “gente” depois da Arte Peixe. “Antes eu não era gente, agora eu sou uma cooperada”, repetiu emocionada a frase. “Na cooperativa elas se sentem outra pessoa, outra mulher, se sentem mais fortes. Fomos entendendo cada vez mais nosso papel enquanto empresa. Acredito muito nessa união”.
Reprodução/Redes Sociais
Hoje são vários produtos comercializados pela Arte Peixe. Além das linguiças e hambúrgueres aprendidos no princípio, são vendidos bolinhos, quibes e todo tipo de quitute feito com pescados e camarão. Os frutos do mar e do rio também são comercializados limpos e embalados, inteiros ou processados. A produção passa dos 800 quilos mensais, com mão de obra exclusivamente feminina da cooperativa.

Além dos alimentos, as bijuterias com escamas naturais ou tingidas cumprem um papel de contornar a perecibilidade do pescado. “Diferente de fazer um alimento para vender, quando fazemos uma bijuteria podemos guardar e esperar uma nova coleção, por exemplo, não precisamos vender naquele momento”, disse Fernanda que é também formada pelo Empretec, programa estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, aplicado no Brasil pelo Sebrae.

Os porquês coletivos, familiares, econômicos e sociais

As cooperadas da Arte Peixe se reconhecem hoje como empreendedoras da pesca — com toda razão de ser. Conseguiram transformar organicamente uma vontade, um sonho coletivo em ideias e planos de negócios, em uma realidade transformadora.

Mas nem tudo foram flores. Não é raro ouvir relatos de cooperadas contanto episódios de preconceito e desconfiança por parte dos maridos. A pesca marítima é uma atividade desenvolvida essencialmente por homens, que podem levar meses no mar para trazer a quantidade de pescado que precisam. A mulher ocupava um lugar de suporte em casa, e de espera.

A invisibilidade feminina na pesca produzia preconceito, e a união das mulheres na cooperativa foi vista como algo que não iria à frente. “A Arte Peixe não pode ser de uma pessoa, tem que ser de várias pessoas, as mulheres se fortalecerem, mas os homens também. Chegamos em casa e explicamos por que estamos em um lugar coletivo cheio de mulheres, devemos fazer essa parceria de mãos dadas, não um contra o outro, para que possamos ter um amanhã melhor”.

Reprodução Arte Peixe
Um dos braços da empresa é oferecer educação financeira para as cooperadas. Elas entendem que é preciso oferecer reconhecimento e pertencimento, mas é essencial levar lucro e independência financeira para as mulheres. O sucesso e o equilíbrio das contas da cooperativa é encarada por elas como essencial para vencer as barreiras sociais e de um mercado competitivo.

Além da participação na cooperativa, Fernanda Pires é atualmente vice-presidente do Conselho da Mulher em São João da Barra, representando a Arte Peixe. A organização participa ativamente das decisões do município através de Conselhos.
Prefeitura SJB/Reprodução
— É importante aprender e contribuir nesses espaços, pois acabamos dando uma devolutiva, e comunicamos o município, fortalecemos todas as mulheres daqui. São lutas que participamos, espaços onde as mulheres possam se unir e se fortalecer”, relatou Fernanda.

O delta do Paraíba, a foz e o mar de Atafona são recursos naturais importantes, mas que também produzem inspirações para educação, literatura, música, história e arte. As mulheres atafonenses da cooperativa Arte Peixe são, coletivamente, a prova disso.

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