Edmundo Siqueira
10/03/2024 18:30 - Atualizado em 10/03/2024 18:35
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira
Humberto saiu de Campos para cursar engenharia na PUC de São Paulo. Saiu novo e nunca mais havia voltado à cidade. Resolveu sua vida por lá, e decidiu esquecer de onde veio; fazia questão de não saber nenhuma notícia.
Mas, por essas idiossincrasias do destino, Humberto, já com quase 70 anos, precisou vir à Campos para fechar um contrato de um novo condomínio. Pediu ao escritório para ver algum hotel disponível, alugar um carro, e reservar dois ou três restaurantes. Quando recebeu a variedade de opções que tinha à escolha, se surpreendeu: “Campos cresceu, está moderna! Finalmente.”
Decidiu não alugar nenhum veículo, ia andar de Uber. Queria ver como estava Campos depois de tantos anos, sem se distrair com o volante. Com muita dificuldade, achou um voo para a cidade — quando avaliou que talvez Campos não tivesse crescido tanto assim — e desceu no Bartolomeu Lisandro, às duas da tarde.
Com alguma demora, um Chevrolet Prisma prata encosta, dirigido por Evandro.
— Boa tarde. Senhor Humberto? — Isso, boa tarde. — Vamos para o hotel… — Não, vamos passar em alguns lugares antes disso — Humberto interrompe o motorista. — Pode ser? — Claro, o senhor que manda.
Aeroporto Bartolomeu Lisandro
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Foto: Genilson Pessanha
Humberto havia anotado alguns pontos que tinha curiosidade em ver novamente, e um deles era a Praça São Salvador. Em alguns minutos, estavam atravessando a Ponte Alair Ferreira.
— Olha aí o majestoso…lá em São Paulo temos ele também, o grande Paraíba. — O senhor é paulista? — Na verdade sou daqui. — Daqui, daqui? De Campos mesmo? — Sim… — O rio não é mais o mesmo não, tá estranho. Tem muita água que sai daqui para outros lugares, inclusive para São Paulo. — Tem razão — disse Humberto enquanto olhava para o cais, descendo a ponte. — E a política, como está por aqui? — Ih rapaz, muita coisa acontecendo. — O Garotinho está por aqui ainda? — Está, mas quem governa a cidade hoje é seu filho, o Wladimir. — Sempre achei que era a filha que ia seguir os passos do pai. — Ela seguiu, mas perdeu a última eleição que concorreu. — Eu sei, política nacional eu acompanho. Esse menino foi deputado, mas achava que ia ficar no legislativo. — O pai e o filho estão sempre brigando. — Sério? Por quê? — Rapaz, o filho criou um grupo só dele, e o pai não gosta disso não. Acho que ele queria governar igual fazia com a mãe. — E está sendo bom para Campos? — O asfalto aqui que estamos passando tá novinho. — Só isso que tem a dizer do prefeito? — É que eu ando muito de carro, né doutor. Mas tem muita gente pobre aqui. Sem transporte. Mas ele é muito bem visto aí pelo pessoal. — Tudo gira em torno do petróleo aqui, e aí não gera emprego. Desde que eu fui embora daqui era assim. — O senhor tem razão — Evandro encostou o cotovelo na porta, e apoiou o queixo.
O carro estava parado no sinal, esperando para entrar na XV de Novembro. Quando a luz verde foi sinalizada, o motorista continuou a conversa.
Reprodução
— A menina, Clarissa, tá muito junto com os bolsonaros. — Cidade conservadora, né? Aqui e o Rio. — É. Até castrar os homens ela propôs na campanha. Isso que chamam de extrema-direita, né? Mas…o Rio de Janeiro é conservador? — Por incrível que pareça, sim. Basta ver os políticos que saem daqui. Até Crivella foi prefeito do Rio. Aliás, Bolsonaro saiu daqui. — De Campos, não! — Não, do Rio, capital — Humberto deu um leve sorriso. — Essa turma é conservadora? Tô perguntando porque não sei mesmo, doutor. — São da direita, e o conservadorismo está nesse campo. Mas estão mais para reacionários. — E o Tarcísio, lá em Sampa? É dessa turma né? Disse um “tô nem aí” esse dias quando reclamaram da violência das polícias. — Aprendeu bem. Ele aprendeu bem… — Ah, o Queiroz, da rachadinha de Bolsonaro quer vir pra cá, ser candidato a vereador. — Não é possível. Tudo tem limite. Não posso acreditar numa coisa dessas. — O senhor é de esquerda, então? — Sou liberal. — Ih, agora está ficando ainda mais confuso. Olha a praça aí que o senhor queria ver. — Meu Deus — Humberto abril o máximo que pôde o vidro de trás. — O que foi, doutor? — Colocaram mármore em tudo?
Evandro ficou surpreso com a expressão de Humberto. Misturava tristeza e perplexidade, mas ele não via motivo para isso, e achava o passageiro cada vez mais estranho. “Esse pessoal paulista deve ser assim”, pensou. Mas tentou entender melhor:
— Era mais bonita antes? — Muito. Muito mais. Como deixaram isso acontecer? — perguntou Humberto, retoricamente. — Foi na época de Dr. Arnaldo.
Praça São Salvador em tempos antes do mármore
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Foto: Centro de Memória Fotográfica de Campos - IFF
— Foi prefeito esse? — Sim, o filho dele também está na política, foi candidato contra Wladimir na última. — São clãs, então. — Isso não é negócio de máfia, doutor? — Mais ou menos. E esse filho do Arnaldo vai concorrer de novo? — O Caio. Olha, ele ia, mas agora tá junto com o prefeito. — Sério? — Então, vi na Folha que até ontem era sério, mas aí tem um negócio aí novo com o prefeito do Rio…mas sei bem não. É um troca-troca danado. — Sei…aqui perto dessa praça tinha vários prédios antigos bonitos. Como estão hoje? — Tudo no chão. — Estou pesquisando aqui. O pior que você tem razão. — Tem um lá em Tocos, um aqui perto, o Museu, e um lá indo para Atafona. Esses dias derrubaram um aqui bem pertinho, um hotel velho. — Hotel Flávio. Vi aqui no celular. Meu Deus, um patrimônio histórico. — Prédio velho, doutor. — Em alguns lugares teria muito valor. — Tem que modernizar, acha não? — Digamos que sim, o que vai ser no lugar então? — Acho que um estacionamento. — Entendi — Humberto balança a cabeça negativamente. — Ah, mas agora vão restaurar o Asilo do Carmo. — A prefeitura? — Parece que é o Lula.
O presidente Lula durante o lançamento do Novo PAC, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (construção da capital que representaria o antigo Teatro Trianon em Campos, caso estivesse de pé)
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Foto: Tércio Teixeira/Folhapress
— O Governo Federal vai investir no Asilo do Carmo? — Um tal de PAC. — Ah sim! Aí tudo bem. Vamos dar uma passada lá então. Quem conseguiu isso, a prefeitura? — Ih rapaz, essa é outra confusão. — Por quê? — Um fala que foi o prefeito, o outro o pessoal do PT aqui de Campos, até de Carla Machado tão falando. Filho bonito é cheio de pai e mãe, né. — Carla? Foi prefeita aqui? — De São João da Barra. Quer vir por aqui agora. Ah…! Esse é o negócio de clã que o senhor disse né? — Mais ou menos. Olha, já deu para mim, me deixe no hotel, por favor. — O senhor que manda.
Enquanto seguiam para o destino final, um silêncio reflexivo se estabeleceu. Já na frente do hotel, se despediram.
— Obrigado, Evandro. Até. — Eu que agradeço, doutor. Uma última pergunta, se o senhor não se importar. Como o senhor acha que Campos está? — Ainda é o espelho do Brasil. Uma polarização autofágica, briga para todos os lados, e nenhuma mudança estrutural à vista. — Polarização autofa…não entendi muito bem não, mas deve ser bem ruim. — É sim. — E como sai disso? — Pelo aeroporto — Humberto riu. — Tô brincando, o primeiro passo é estabelecer limites éticos, fortalecer a democracia, e saber com que se faz aliança. — Mas importa tanto assim com quem a gente luta, doutor? — Mais que a própria guerra.