Declaração de (não) voto
28/10/2022 | 07h43
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Eu venho de uma família grande. A casa dos meus pais sempre foi habitada por um bocado de gente, desde nós, “membros efetivos”, até primos que passavam alguma temporada por lá. Sempre foi plural, convivemos com familiares e amigos de várias idades e formas diferentes de ver o mundo. Quando casei, minha casa continuou assim.

Dificilmente o leitor deste espaço me viu escrever algo pessoal. Aqui é assinado por mim, um local de opinião, às vezes jornalismo factual. Mas essencialmente, opinião. O que faz ter muito de “pessoal”, por óbvio, mas sempre procurei manter o menos particular possível. Os temas que escrevo — política e cultura — são e serão sempre coletivos.

Mas aqui vou lhe pedir licença, e perdão por qualquer digressão enfadonha, mas os tempos que vivemos não estão fáceis. Talvez precisemos de um pouco de pessoalidade. Para tentarmos recuperar um pouco da humanidade perdida — da civilidade e do mútuo respeito, em última análise.

Eu me importo tanto com cultura, não pela beleza dos casarões antigos ou pela importância de vultos históricos. Entendo que a cultura é o que forma um povo, uma nação. A formação da identidade, dos símbolos, de como uma sociedade se comporta, e na definição de quais caminhos tomar. Tudo isso passa por um entendimento da cultura, dos costumes, dos fazeres, das tradições.

Não temos, essencialmente, nenhuma diferença com os americanos, ingleses ou chineses. São pessoas vivendo em um território demarcado, com leis e regras sociais de convívio pactuadas. Mas quando pensamos em um chinês, fazemos uma projeção mental de alguém disciplinado. No caso do americano, projetamos uma pessoa ambiciosa, e para o inglês pensamos em alguém tradicional. São traços culturais que formam aqueles povos. São introjeções que formam comportamento e determinam condutas. Tão fortes que se externalizam até aos estrangeiro.

Talvez a diferença mais substancial que exista entre nós brasileiros e essas culturas é que temos menos tempo. Somos uma democracia bem mais jovem e ainda exercitamos pouco nosso senso coletivo. Mas não é nossa cultura que é menor que a deles. Temos riquezas culturais imensuráveis. O mundo ouviu e ouve bossa-nova, batuca nosso samba, admira nosso futebol, assiste nossas novelas, lê nossos autores — temos o melhor futebolista de todos os tempos, o melhor piloto de Fórmula 1 e Sinatra cantou “Garota de Ipanema”.

O Brasil que construímos pós-constituição de 1988 é um país fantástico. Sim, é repleto de problemas, muitos deles estruturais e outros crônicos. Mas saímos de uma grande fazenda em regime de escravidão para uma realidade de direitos, de garantias mínimas. Uma sociedade que pactuou o SUS, que diminuiu significativamente a miséria, que colocou as crianças nas escolas, que alfabetizou os adultos, que construiu um sistema tripartite para a aposentadoria, que democratizou o acesso à informação. Uma sociedade que Betinhos e Darcys dedicaram suas vidas ao próximo.
Não é que nos tornamos uma nação desenvolvida e exemplar. Longe disso. Somos muito jovens enquanto democracia e muito sacudidos enquanto povo. E não resolvemos a nossa profunda desigualdade, uma das maiores do mundo. Essa cultural, infelizmente, que mistura racismo, disputas de classes e misoginia.

Mas, desde que se redemocratizou e construiu uma Constituição cidadã, o país se tornou uma nação que vinha se ajustando, que estabilizou a moeda, controlou a inflação, um país onde a sociedade civil vinha ocupando espaços em comitês e conselhos comunitários, um povo que vinha diminuindo as discrepâncias regionais, e onde mais gente pode participar da vida social e política.

Tudo isso vem sendo solapado com Bolsonaro. O atual presidente, que tenta a reeleição, personifica o rompimento total com o período civilizatório iniciado na redemocratização.

Bolsonaro é alguém capaz de homenagear um torturador da ditadura militar em pleno Congresso Nacional, durante o julgamento de uma mulher que foi torturada. O atual presidente fez o que pôde e o que não pôde para desacreditar vacinas, atrasou a compra de imunizantes durante a pior crise sanitária de nossa era. Tripudiou sobre os mortos, imitou pessoas sufocando, riu do sofrimento de famílias. No auge da pandemia, chamou de “maricas” os brasileiros que tentavam salvar suas vidas. Bolsonaro é alguém que diz ser preciso “fuzilar” os adversários políticos,  e que “pintou um clima” com meninas de 14 anos  (se tiver estômago, tem link para as falas).
Bolsonaro, no auge da pior crise sanitária da nossa era, incentivando o uso de medicação sem comprovação científica
Bolsonaro, no auge da pior crise sanitária da nossa era, incentivando o uso de medicação sem comprovação científica / Reprodução
Bolsonaro foi capaz de reunir embaixadores do mundo inteiro para apresentar provas (que nunca existiram) sobre fraudes em nosso processo eleitoral. É alguém que repete mentiras esperando que elas se tornem verdades (linha já seguida antes na história). 

O que Bolsonaro representa é o reacionarismo. É alguém que quer fazer tudo para voltar para um modelo de sociedade onde o preconceito e o ódio são permitidos. Onde Igreja e Estado se confundem, onde os freios e contrapesos da democracia não são efetivos. Bolsonaro é o rompimento com o sistema democrático, construído a duras penas. Ele e seu vice, Mourão, falam abertamente em aumentar o número de cadeiras do Supremo para controlar a Corte.

É claro que existe governo atualmente. E boas ações foram feitas, seja em economia ou infraestrutura. Mas uma nação não se mede por isso, apenas. E além disso, em autocracias também existem governos. Há governo e serviços públicos na Venezuela e na Hungria, mas são países autoritários, ditaduras. Um de esquerda e outro de direita.

Um país decente e democrático é onde a maior parte possível dos cidadãos pode ter oportunidades semelhantes, onde o básico — saúde, educação e segurança — é garantido a todos. Bolsonaro propõe que existam grupos mais merecedores que outros. Que alguns brasileiros são mais patriotas que outros por adorar coturnos e símbolos nacionais positivistas.

Não há qualquer variante possível que me faça cogitar votar em alguém como o atual presidente. E apesar de sempre ter sido crítico aos governos do PT, e saber que a volta do Lula não é o ideal para preparar o país para os desafios do novo século, vou apertar o número 13 na urna, no domingo. Com bastante convicção, com a certeza que estou do lado certo da história.

O que Lula conseguiu agregar, principalmente no segundo turno, se assemelha ao que Tancredo reuniu para encerrar a ditadura. Lula formou a tão pedida “Frente Ampla”, mas não por sua vontade ou habilidade. A sociedade formou ao seu redor — da única alternativa democrática possível nesse segundo turno — uma quantidade enorme de lideranças. E o mais importante: muita inteligência. As melhores cabeças do país, em várias áreas, estão imbuídas em salvar o estado democrático de direito do Brasil e garantir as bases da Constituição Federal.


Lula não poderá fazer um governo petista. Lula obrigatoriamente fará um governo de transição, um governo que recupere a sanidade do país, a democracia, as instituições e a pluralidade. Lula não terá condições físicas, pela idade, de concorrer a um segundo mandato. E também por isso terá que encerrar sua carreira em um governo que lhe garanta entrar para a história.

Eu aprendi a conviver com a pluralidade e sempre respeitar para ser respeitado. Uma diferença aqui, outra ali, mas com a civilidade como um norte fixo. Algumas coisas são inegociáveis. A democracia é um valor inegociável. A Constituição que criamos, hoje, é inegociável. Quero viver em um país onde a ciência determine as ações do governo na saúde pública, onde a cultura e a educação tenham papel central, onde a intelectualidade seja valorizada, onde a desigualdade seja combatida e onde tortura e ditadura estejam na lata do lixo da história; e somente lá.

Eu vim de uma família que pôde me dar acesso. Boas escolas, bons livros, bons filmes, passeios, tranquilidade e uma cama quentinha para dormir. Talvez seja utopia esperar que todos no Brasil possam ter o mesmo, mas preciso ter a certeza que tentaremos. O Brasil que devemos querer não é o de Bolsonaro. O ódio e a intolerância não começaram com ele, estavam aqui, no mesmo Brasil. Mas desde 2014 vivemos em uma sociedade que não se respeita, que não aceita as diferenças. Uma sociedade que mata alguém por estar vestindo uma camisa de cor diferente.

Não é possível tolerar os intolerantes. Paradoxalmente, caso tolerasse, isso destruiria a própria tolerância. E devemos entender que democracia é uma promessa. Um acordo. Onde leis escritas devem ser respeitadas, mas as não escritas devem ser cultuadas. Bolsonaro é um intolerante. A escolha não é Lula, tenho convicção. Minha escolha de domingo é a de rejeitar tudo o que Bolsonaro representa.
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O candidato, o comediante e o voto útil – outubro vermelho?
26/05/2022 | 04h33
26.mai.2022 às 16:45h
Luiz Fernando Cazo
Este foi um dos artigos mais difíceis que escrevi, desde que tenho este espaço aqui na Folha. Menos por qualquer predileção pela candidatura de Ciro Gomes, e mais pelas consequências das desidratações de opções democráticas, distantes da polarização, que se apresentam para outubro.
Polarização é entendida pelo eleitor — médio ou não — como a redução do seu voto ao binarismo. Restam apenas duas opções: A ou B. Embora ainda existam ponderações justas que distanciam Lula de Bolsonaro — principalmente quando falamos em apego democrático e extremismos —, que acabam por deixar transparecer que os candidatos não estão em polos opostos, o fato é que, dadas as pesquisas, eles exercem uma força gravitacional capaz de atrair os corpos (outros candidatos) ao seu redor e em direção aos seus centros; nesse caso, aos seus polos.
Ciro Gomes é um candidato preparado e experiente. Tem projeto (escrito em livro, inclusive), bagagem e inteligência para ser um excelente presidente. Mas esbarra em um adversário significativo: ele mesmo. Na última sexta-feira (20), o 'pré-eterno-candidato' debateu publicamente, transmitido em seus canais de comunicação (assista aqui), com o humorista Gregório Duvivier, apresentador do “Greg News” da HBO Brasil. O comediante é ex-eleitor do Ciro e atualmente — e declaradamente — apoiador do Lula.
Para um candidato que chama todos para o debate, Ciro se saiu muito mal. É claro que um comediante pode usar artifícios retóricos que um presidenciável não pode. Assim como é evidente que a posição confortável do debatedor Gregório lhe conferiu a tranquilidade necessária. Mas Ciro estava no tom errado, despreparado e por vezes agressivo e arrogante. Avalio, pessoalmente, ter sido um ponto de inflexão na sua campanha, que causou desgaste de sua imagem e ofereceu munição aos adversários. Principalmente ao Bolsonaro, algo que ele já vem fazendo, onde cortes de seus vídeos são transmitidos aos montes em grupos de WhatsApp bolsonaristas.
Soma-se a esse episódio (debate Ciro x Gregório) a implosão da candidatura do PSDB — João Doria desistiu da pré-candidatura nesta semana (veja aqui) —, o que deve levar à ausência do partido como “cabeça de chapa” no próximo pleito (fato inédito desde a redemocratização), e como resultado temos a tempestade perfeita para a chamada “terceira via”. Caso — todas — as pequisas se confirmem, o outubro deverá ser vermelho. Principalmente se crescer a vontade do eleitor em dar um "voto últil" no pleito, tentando liquidar a fatura ainda no primeiro turno. Mas ainda há muito para acontecer. E analisar.
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Só restam dois?

Estamos a pouco mais de cinco meses para as eleições presidenciais. Para além do imprevisível, pouco deve se alterar até lá. Mas, para procurar entender a complexidade do momento nada melhor que recorrer à academia. Conversei com o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), o doutor em Sociologia Roberto Dutra, articulista aqui da Folha, e Danilo Thomaz, jornalista e mestrando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ambos costumam se posicionar sobre os temas mais relevantes do país e são colaboradores de meios de comunicação de abrangência nacional e internacional.
Roberto avalia que “em si mesma, a ideia de um debate entre um candidato a presidente e um comediante é equívoco tremendo”. Já Danilo acredita que “debates tensos como esses deveriam acontecer em todas as candidaturas”, e diz que Ciro “não saiu derrotado” do debate.
Sobre as opções binárias, Thomaz diz que “não cabe a mim (ele) dizer se devem ou não abraçar o lulopetismo. Só o que acho é que o tempo das redes sociais e as bolhas de unanimidade que se formam não correspondem à realidade”. Dutra diz que é “óbvio que entre Lula e Bolsonaro, devemos escolher Lula”. Mas alerta, em seguida: “transformar a eleição presidencial em um plebiscito entre abstrações como democracia e autoritarismo, civilização e barbárie, que não oferecem linhas programáticas concretas sobre os problemas nacionais é aprofundar a própria crise”.
Confira a conversa, na íntegra:
Edmundo Siqueira – Acredito que seja um momento crucial para debatermos essas eleições com uma profundidade maior. E penso que esse momento aconteceu após o debate do Ciro com o comediante Gregório. A tese do lulopetismo é de que um golpe seria inevitável se não fortalecermos o Lula. E mais: a narrativa que os eleitores de outros candidatos, como o Ciro, deveriam aceitar o protagonismo lulista em nome de derrotar o fascismo. Em minha avaliação o Ciro perdeu muito no debate com Duvivier — mostrou um candidato despreparado e nervoso, que tentava controlar sua raiva o tempo todo, mesmo quando reclamava de usarem politicamente seu “temperamento”. E isso desanimou parte da militância e de eleitores que o consideravam uma alternativa democrática. Como você avalia, acredita que o “debate” com o comediante foi um ponto de inflexão na campanha do Ciro? Caso Ciro perca ainda mais espaço, devemos aceitar o lulopetismo com “casca e tudo” pelo bem da democracia?
Danilo Thomaz
Danilo Thomaz / Reprodução/Fumaça (Portugal)
Danilo Thomaz –
Não foi um ponto de inflexão na campanha. Foi só um momento na campanha. Debates tensos como esses deveriam acontecer em todas as candidaturas. A meu ver, Ciro não saiu derrotado. Nem vitorioso. Apenas fez política. Levou sua mensagem a um campo da esquerda que não o ouviria. O pessoal que segue o Gregório tem uma concepção moral e identitária de política: eles a usam como uma forma de afirmação dentro de um grupo. Ciro entende a política como um meio de implementação de um projeto nacional de desenvolvimento.

Eu não sou conselheiro da campanha nem tenho interesse e/ou pretensão de ter. Não cabe a mim dizer se devem ou não abraçar o lulopetismo. Só o que acho é que o tempo das redes sociais e as bolhas de unanimidade que se formam não correspondem à realidade. Não custa lembrar das surpresas causadas pelo resultado do Brexit, da eleição do Trump e do acordo com as Farc e mesmo em relação à eleição de Bolsonaro.
Roberto Dutra
Roberto Dutra / Sergio Amaral/El País
Roberto Dutra –
Como cidadão não gostei do debate de Ciro com o Duvivier. Em si mesma, a ideia de um debate entre um candidato a presidente e um comediante ser é equívoco tremendo. Além disso, Ciro parece não ter se planejado para um contendor com sangue nos olhos e disposto a lacrar de todo jeito. Sua insegurança ficou nítida em muitos momentos. No entanto, a repercussão do debate não parece ter sido um ponto de inflexão negativo para Ciro. Suas perspectivas não pioraram por causa deste debate. Em hipótese alguma devemos aceitar o lulopetismo com “casca e tudo” pelo bem da democracia. Esse discurso de defesa da democracia e da civilização contra a barbárie é mais um estelionato eleitoral encaminhado pelo PT.

Defender a democracia é uma abstração que faz vista grossa para os problemas sociais reais e concretos que um sistema político precisa enfrentar se quiser sustentar sua legitimidade, seja em padrões democráticos ou não. Apenas encaminhado soluções sustentáveis para problemas como o subdesenvolvimento e o empobrecimento do país, a violência e a má qualidade dos serviços públicos, é que se pode defender a democracia. A atual narrativa lulopetista é que primeiro precisamos reestabelecer um ambiente político sem riscos autoritários iminentes para só depois debater estas questões. Isto é uma grande mentira. Um assalto à inteligência e ao bom senso. Os riscos à democracia só vão se amplificar enquanto a política brasileira não oferecer um rumo de desenvolvimento econômico e social para o país e seu povo. Obvio que entre Lula e Bolsonaro, devemos escolher Lula. Mas transformar a eleição presidencial em um plebiscito entre abstrações como democracia e autoritarismo, civilização e barbárie, que não oferecem linhas programáticas concretas sobre os problemas nacionais é aprofundar a própria crise. Não podemos aceitar esta infâmia.
Edmundo Siqueira – Uma das teses que Ciro Gomes defende é que o antipetismo criou o Bolsonaro. Ele afirma que o desastre econômico, produzido pelo governo Dilma (com números incontestáveis que corroboram essa especificidade) e os casos de corrupção dos governos do PT tenham produzido no brasileiro uma revolta, e um sentimento de antipolítica que possibilitou a eleição de alguém como Bolsonaro. Você concorda? Não acha que as eleições de 2018, que elegeram candidatos visivelmente autoritários e sem propostas, não possui explicações mais complexas e até anteriores aos governos do PT?
Roberto Dutra – Minha tese é que o bolsonarismo é resultado de uma revolta com a crise programática do sistema político brasileiro pós-constituição de 1988. Diante da falta de credibilidade das opções e ofertas políticas até então estabelecidas, o PSDB e o PT, a maioria votante resolveu chutar o balde. Bolsonaro, assim como outros fenômenos autoritários contemporâneos, é fruto de promessas não cumpridas de nossa democracia, especialmente da ausência de um novo modelo de desenvolvimento e de garantia de cidadania social. O antipetismo é resultado deste processo de crise programática, do qual o PT foi protagonista, especialmente com o desastre econômico do governo Dilma. Neste aspecto, podemos dizer que o antipetismo é uma sanção moral muito justa e legítima. A eleição de 2018 acabou se tornando um plebiscito sobre a volta do PT ao poder, e o bolsonarismo venceu este plebiscito por causa do antipetismo. Nisso eu concordo inteiramente com Ciro.
No entanto, quando falamos do tema da corrupção, minha avaliação diverge da dele. A corrupção se torna um tema quase absoluto na disputa política com o processo de moralização capitaneado pela Operação Lava Jato. E esta centralidade é muito mais um sintoma do que causa da crise do nosso sistema político: a revolta com a incapacidade da política em produzir bons resultados econômicos e sociais é que cria as condições para que a moralização anticorrupção, focada no PT, se torne um tema central. Mas o fato é que o PT não ampliou a corrupção em seus governos. Neste sentido, quando o antipetismo se fundamenta na acusação de que o PT é corrupto, ele se torna um sentimento manipulado por grupos políticos que se aproveitam do tema da corrupção para tirar o foco das questões de economia política e de política social. Este tipo de antipetismo precisa ser combatido.
Danilo Thomaz – O antipetismo existe desde a criação do PT. Nada existe em si na natureza. Não é errado dizer, é 2016 mostra bem isso, que o antipetismo nada mais é que um novo corpo da luta anticomunista — real e irreal — que a direita trava desde a Intentona de 1935. Não importa muito aqui o quão de esquerda seja hoje o PT e o quão de esquerda tenham sido seus governos, fato é que para a direita brasileira o PT é isso. Acho, sim, que existem muitas variáveis. Não podemos ignorar o Mensalão, em 2005. Aquilo foi um choque para uma geração que esperava algo novo do PT. Ao mesmo tempo, fez renascer no Brasil uma direita com métodos muito semelhantes à direita dos anos 1950, que se valia da moralização da corrupção contra um governo de caráter mais progressista (Getúlio, JK). Não podemos ignorar o papel do Judiciário, no caso no STF, no julgamento da AP 470, com suas interpretações consideradas tortas da tese do “domínio do fato”. O Wanderley Guilherme dos Santos, cientista politico (já falecido), colocava no julgamento do Mensalão, o ovo da serpente. Depois, no âmbito judicial, veio a Lava Jato, com toda a sorte de arbitrariedades jurídicas, da qual o PT foi, sim, vitima
Do ponto de vista econômico, acho injusto colocar toda a conta no governo Dilma. Porque a Dilma herdou muitos problemas daquele “boom” do segundo Lula. Apesar de todo bem-estar oferecido à população, o segundo governo Lula minou as bases do país. Foi um período de profunda desindustrialização, de uma valorização irresponsável do câmbio. O segundo governo Lula foi minando as bases de um desenvolvimento autônomo do Brasil, tornando-o mais e mais dependente de commodities. E a Dilma pegou, justamente, a queda desse boom. Ela errou, primeiro, em trocar investimentos públicos por desonerações, derrubando o crescimento. E depois, ao adotar aquela política recessiva no segundo mandato. Mas, neste segundo caso, nem sei se dá pra chamar de “erro”. Fato é que aquela vitória foi uma “luta ganha e perdida”, para usar uma imagem da tragédia shakesperiana Macbeth. Colocaram um ortodoxo e aplicaram um choque recessivo para atrair de volta o mercado financeiro. Tentaram manter a força o pacto de “um país de todos” sem haver conjuntura externa e interna para isso. Deu no que deu.
Danilo faz uma comparação do Brasil atual com o peronismo argentino:
Edmundo Siqueira - Thomaz, você vem demonstrando a semelhança do momento que o Brasil atravessa com a crise na Argentina. Embora são países que pertençam a mesma região do globo, são distintos em muitos pontos. Politicamente, inclusive, onde o populismo peronista não guarda relações diretas com o lulopetismo, ao menos em minha visão. A que você atribui essa comparação?
Danilo Thomaz – O peronismo não é populista. Isso é uma mentira que se propaga pelo Brasil sem que ninguém desminta. O projeto original do peronismo, de Juan Domingos Perón e Eva Perón, era criar um pacto entre o capital produtivo e a classe trabalhadora e as camadas médias na Argentina. Deu certo enquanto houve demanda externa pelos produtos agrícolas argentinos. Quando essa demanda caiu, no inicio dos anos 1950, começou a escalada autoritária e, em 1955, Perón foi derrubado. Na sequencia, Arturo Frondizi foi eleito numa eleição em que podia ganhar qualquer um - menos os peronistas. Frondizi tentou estabelecer um pacto desenvolvimentista na Argentina, mas fracassou e foi derrubado também. Esse fracasso se deu, em parte, por sua falta de ligação orgânica com a classe trabalhadora. 

As semelhanças com a Argentina de 1955 a 1973 são em relação à conjuntura. O país, naqueles 18 anos, viveu uma guerra de todos contra todos. Nem o golpe militar de 1966, a Revolução Argentina, deu conta de aplacar os ânimos. Entre o final dos anos 1960 e inicio dos anos 1970 a aura mítica do Perón começou a ser recriada como salvador da Pátria. Afinal, seu governo foi o último instante de unidade da Argentina. Pois bem, Perón voltou em 1973, mas não conseguiu administrar essa ordem de interesses conflitantes de uma sociedade onde nenhuma classe, grupo ou fração estava nem minimamente disposto a ceder. A crise não amainou. Em 1974 ele morreu e a crise recruscedeu com a Isabelita, sua mulher e sucessora. O peronismo se dividiu, foi o caos. E quem veio para dar um basta? A Junta Militar, apoiada pelos empresários argentinos. Só que, desta vez, eles tinham a experiência do fracasso de 1966. Entraram para acabar com uma geração. E acabaram. 

Foram 30 mil mortos e desaparecidos, fora os bebes sequestrados, os casos de tortura, os exílios, tudo aquilo que a gente sabe. Foram 20 anos, a contar do fim da ditadura, para a esquerda argentina voltar ao poder. E só voltou por causa da crise de 2001, que destruiu o país. Que até hoje não se recuperou. Dificilmente irá.






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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com