Entre áudios e silêncios: justiça em meio ao ruído
24/08/2025 | 09h17
Foto: Gabriel Silva/Estadão


A quarta-feira, 16 de março de 2016, foi decisiva para o Brasil. As consequências políticas e sociais que advieram desse dia definiram muito das relações de poder que se encontram vigentes, ainda hoje, no país. No início da noite daquela histórica quarta, milhares de pessoas ocuparam a avenida Paulista, e se aglutinavam em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília.
As manifestações se replicaram pelo país, e ao menos 15 cidades registraram atos de rua significativos — tudo transmitido ao vivo pela TV e pelas redes sociais. Os gigantes patos amarelos foram inflados novamente na frente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assim como acontecera no domingo imediatamente anterior àquela quarta-feira.

Os atos de rua do domingo — marcadas simbolicamente em um dia 13 — foram considerados, até então, como os maiores já registradas no período democrático brasileiro, e inflamaram o país a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que cairia alguns meses depois. Na quarta-feira, o sentimento antipetista atingia seu auge. Noticiado à exaustão, um grampo vazado pelo então juiz Sérgio Moro era gasolina no fogo que já estava ateado. Ao telefone, Dilma avisa a Lula que o termo de posse para se tornar ministro estava a caminho, e que ele deveria usar apenas “em caso de necessidade”.

A conversa entre a então presidente do Brasil com o ex-presidente, que estava sendo acusado de diversos crimes, dava um recado claro à população: o documento e a posse como ministro era para proteger Lula de uma eventual detenção. Lula despede-se com “tchau, querida”, o que se transformou em um slogan irônico do antipetismo, ainda hoje presente.

A explosão das ruas em 13 e 16 de março: os símbolos nacionais e a camisa da seleção

Foi ali naquela quarta que bandeiras do Brasil e camisas da seleção brasileira de futebol começaram a ser fortes símbolos antipetistas e anti-esquerda. A Paulista tingia-se de verde e amarelo, multidão que também era composta por pessoas com roupa social de quem havia acabado de sair do trabalho e adiaram a volta para casa. Segundo reportagem do El País, uma ciclista, que pedia calma no meio da avenida, foi xingada de “petista filha da p****” por outros manifestantes.

A Fiesp tratava de soprar mais oxigênio para as chamas com caixas de som viradas para a avenida que tocavam o hino nacional, que era entoado com toda a força pelos manifestantes. O hino também foi se transformando em símbolo político de uma militância que se formava ali. Em imagem aérea — que tratou de ser amplamente divulgada — era possível ver sobre as camisas da seleção uma enorme faixa preta onde se lia Renúncia Já.
Foto: Marcos Alves / Agência O Globo


Os atos do domingo que se estenderam até aquela quarta de 2016 não tiveram causas isoladas. O segundo governo Dilma, que iniciou em 1º de janeiro de 2015, estava muito enfraquecido por uma crise econômica aguda e por diversas denúncias que atingiam em cheio os partidos que a apoiaram. Os índices de popularidade da presidente estavam em níveis muito baixos e a insatisfação era crescente.

Porém, o que era um governo ruim se transformou em uma crise social e institucional que iria abalar profundamente as estruturas da república. Os anos seguidos de governos petistas trouxeram o desgaste natural da permanência, e a ampla corrupção revelada ampliaram a revolta.

A República de Curitiba e seus super-heróis de toga
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional.
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional. / Minervino Júnior/CB/D.A Press


“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos uma Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado”, dizia o ex-presidente Lula na conversa interceptada com Dilma. “Eu, sinceramente, tô assustado com a 'República de Curitiba'”, completou Lula.

A tal “República de Curitiba” foi o termo que se popularizou para definir uma estrutura de uma Vara Federal convertida em órgão judiciário especializado em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro nacional, que ganhou força e elevou os julgadores e promotores para a condição de heróis nacionais. Vestindo togas de super-heróis, Moro e companhia se transformaram em uma força política, mais que jurídica, que determinava os rumos do Brasil naquele período, e pautava todo o noticiário.

O pastor, o ex-presidente denunciado e a influência do governo americano

A história teima em se repetir no Brasil — seja como farsa ou tragédia. Também numa quarta-feira — desta vez no ano corrente, em 20 de agosto — o Brasil acompanhou como novela os áudios liberados pelo STF, oriundos do recente inquérito em que Eduardo e Jair Bolsonaro, entre outros, são investigados.

Em áudios e mensagens trocadas via WhatsApp, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o seu filho Eduardo Bolsonaro discutem, e entre xingamentos e acusações revelam sérios desentendimentos no núcleo duro do bolsonarismo. Em outras conversas, Eduardo critica o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Mas a mensagem em áudio mais repercutida na quarta foi com outro personagem importante do bolsonarismo, o pastor Silas Malafaia, que foi proibido pelo STF de se comunicar com Bolsonaro e deixar o país. Na mensagem, Malafaia chama Eduardo de “babaca” e que ele teria falado “merda” e feito um discurso “nacionalista”. Segundo o pastor, o filho de Bolsonaro estaria dando declarações que atrapalharam as intervenções do governo americano para defender o ex-presidente. “Toda arrombada que o Trump deu no mundo é sobre economia. Com o Brasil é sobre você, cara. A faca e o queijo tá na tua mão”, dizia Malafaia à Bolsonaro antes de outro xingamento e das críticas a Eduardo.

O direito à intimidade, o dever de informar e o interesse público

Não é uma exclusividade brasileira o uso de conversas interceptadas para alimentar investigações criminais e, em muitos casos, o debate público. Mas a divulgação ampla dessas mensagens — para além do processo e da persecução penal — coloca em choque dois princípios constitucionais: de um lado, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da Constituição Federal); de outro, a liberdade de imprensa e o direito da sociedade à informação (art. 5º, IX, e art. 220 da CF).

No caso dos áudios de Lula e Dilma, em 2016, juristas e acadêmicos denunciaram a violação de garantias fundamentais, pois a publicidade extrapolava a finalidade processual e assumia caráter político-midiático. Agora, em 2025, o vazamento dos diálogos de Bolsonaro e Malafaia revive esse dilema: o interesse público em conhecer articulações que podem envolver obstrução à justiça e até relações internacionais se sobrepõe à reserva da intimidade privada?

A resposta pode parecer fácil: saber sobre tramas golpistas que ameaçam a democracia, e tomar conhecimento de como personagens públicos dialogam com interesses estrangeiros, sobrepõe o direito à intimidade. Porém, o uso desse “poder” de forma indiscriminada e usada para uma evidente espetacularização da investigação pode fragilizar as instituições e transformar terrenos jurídicos em pântano de justiçamentos.

A divulgação irrestrita de conversas particulares tem o poder de criar um tribunal paralelo da opinião pública. É nesse espaço, instigado por algoritmos que adoram a radicalização, o conflito e a polarização cega, que se fragiliza a confiança nas instituições e acaba mostrando que a fronteira entre justiça e política fica difusa.

Em países como os Estados Unidos, Alemanha e França, casos semelhantes foram tratados de forma diversa, mas sempre com um ponto em comum: a proteção da imprensa quando há interesse público relevante. O precedente norte-americano Bartnicki v. Vopper (2001) reforça essa lógica, ainda que reconheça o desconforto de expor conversas privadas.

A história que insiste em se repetir

Assim como em 2016, os acontecimentos de agosto de 2025 revelam uma engrenagem política que se move também pela exposição midiática de conversas privadas. Os protagonistas mudam, mas os dilemas constitucionais permanecem. A cada nova divulgação, a sociedade brasileira é convocada a refletir sobre até que ponto se admite sacrificar direitos individuais em nome da transparência e do interesse coletivo.

O Brasil, que ainda não resolveu todos os contenciosos jurídicos e históricos da Lava Jato, pode estar plantando as sementes de novas nulidades e disputas judiciais para o futuro. O risco é que, entre direitos fundamentais e o clamor das ruas, prevaleça novamente a lógica do espetáculo.

Talvez o que nos falte não sejam mais áudios, mas silêncio — o silêncio das instituições sólidas, que cumpram a lei sem depender de vazamentos ou espetáculos. Até lá, continuaremos reféns de uma história que insiste em se repetir. Não precisamos de novos heróis nem de velhos vilões. O que o Brasil precisa, enfim, é de uma realidade séria.
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O golpe nosso de cada dia: bolsonarismo, o papel dos militares e a possibilidade real de um golpe – entrevista com Christian Lynch
31/08/2022 | 03h04
Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Em 2015, ele escrevia que naquele período da história brasileira estaria nascendo uma “novíssima República”. Estava analisando o cenário que se apresentava diante de seus olhos: Dilma Rousseff com “a maior impopularidade desde o Hermes da Fonseca”, totalmente inábil com o Congresso e o país no olho do furacão da maior crise financeira em muito tempo. O vice que ocupava o Palácio do Jaburu, Michel Temer, estava “posando de estadista sóbrio e ponderado”, enquanto conspirava com o que foi chamado de “golpe” no ano seguinte.

Ele é Christian Lynch, historiador e professor de ciência política do IESP-UERJ e da FGV, e editor da revista Insight Inteligência. A sua análise era sobre os fatos e movimentos políticos enquanto eles aconteciam; no mesmo tempo histórico. E ele também previa as consequências. A tal “novíssima República” (“e que república!”, como ironicamente disse Lynch) de fato eclodiu, “pela unânime aclamação dos povos": os movimentos de rua de 2016, os maiores já registrados no país, que levaram o governo Dilma à condição de "colapsado e impedido”.
O que talvez Lynch não poderia prever naquela altura é que chegaria ao poder um fiel representante da extrema-direita populista. Jair Messias Bolsonaro. Parlamentar do Baixo Clero, comentarista de programas de auditório de qualidade duvidosa, polemista e caricato. Deputado que deixou o país atônito ao votar pelo impeachment da presidente homenageando um ex-coronel torturador; algoz da própria Dilma.
Jair Bolsonaro, na Câmara, com livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e ex-coronel do Exército Brasileiro.
Jair Bolsonaro, na Câmara, com livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e ex-coronel do Exército Brasileiro. / Reprodução
A “homenagem” do então deputado Bolsonaro passou quase desapercebida pelos mecanismos de controle democrático. O Conselho de Ética da Câmara chegou a pedir a cassação do mandato de Bolsonaro, mas por 11 votos a 1 foi arquivado. Na reunião do Conselho, o mesmo torturador foi chamado de “herói do Brasil”.
O Brasil de 2016 era uma República em ebulição: executivo imobilizado, congresso e vice-presidente negociando o impeachment e população nas ruas. A fragilidade democrática daquele período impossibilitou que as instituições funcionassem em sua plenitude, e parte do judiciário se aparelhava e atuava politicamente. 

Dois anos depois, Bolsonaro foi eleito presidente, com um forte discurso antipetista. Apesar da ausência de propostas e truculência, foi alçado à presidência do país canalizando a insatisfação e ódio de parcela relevante da população. 

Mas o que seria uma República “novíssima” levou o Brasil de volta ao século 19. Como todo reacionário que se diz conservador, Bolsonaro reforçou a ideia de que o Brasil de antes era melhor, onde o “homem de bem”, pai de família, branco e com algum recurso deveria ter a palavra final — na família e na sociedade. Defendia a ideia de um Brasil que deveria ser um eterno centro periférico agroexportador, que deveria abandonar a ideia de laicidade do Estado e proibir qualquer tipo de evolução social.

Os movimentos pendulares das democracias são previstos e saudáveis; costumam trazer oxigenação nas ideias e formas de governo. Porém, a chegada de Bolsonaro ao poder representou desiquilíbrio. E com ele veio uma indústria de desinformação impulsionada para sustentar as narrativas bolsonaristas. E que consegue manter uma militância resiliente, ativa em redes sociais e com capacidade de mobilização para movimentos de rua.

Entrevista: Bolsonarismo, o papel dos militares e a possibilidade real de um golpe  

Christian Lynch é colaborador do canal Meio, comandado pelo jornalista Padro Doria. É requisitado para dar entrevistas e colaborar com vários veículos de comunicação de abrangência nacional. É um pensador e observador arguto desse estado de coisas que o Brasil apresenta desde que, de forma inédita, é governado por alguém que opera no extremismo e no conflito constante; além de ser um historiador experimentado.
Acaba de lançar, dividindo a autoria com Paulo Henrique Cassimiro, o livro "O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo", pela editora Contracorrente. 
Procurado por este espaço para uma conversa, aceitou prontamente. Aqui tratamos de temas como bolsonarismo, impeachment, fascismo, progressismo, o papel dos militares e a possibilidade real de um golpe de Estado. Sobre isso, Lynch diz que existem “três tipos de golpe no ar”.

Já para definir o modo de fazer política de Bolsonaro — no que convencionamos chamar de “bolsonarismo” —, o cientista político resume como um “movimento reacionário que adota técnicas fascistas de mobilização”. Para ele, uma das estratégias é produzir um “pânico moral” na população, fazendo que uma parcela passe a crer que “seus valores estivessem permanentemente ameaçados”.

Edmundo Siqueira - Em 2016 tivemos movimentos de rua pró-impeachment de Dilma e, embora tivessem pautas difusas, a direita e a centro-direita se apoderaram daquele sentimento coletivo e souberam aproveitar melhor. A fidelidade da base eleitoral de Bolsonaro, e o engajamento que conseguem, mostram que a extrema-direita manejam melhor, atualmente, tanto as manifestações de rua, quanto o fazer político desse mundo digital. Já a esquerda parece ter perdido a capacidade de mobilizar as pessoas, para além da sua militância. Como você avalia esses movimentos e porque, hoje, o bolsonarismo consegue levar mais gente para a rua, como vimos no último sete setembro?

Reprodução
Christian Lynch
- A crise da globalização levou a uma crise do cosmopolitismo e do progressismo, seja liberal ou socialista. O Bolsonarismo é um movimento reacionário que adota técnicas fascistas de mobilização de seus adeptos mais radicais. Ele está baseado no isolamento comunicacional de seu eleitorado e seu condicionamento pelo bombardeio de mentiras que lhe instilem desconfiança das instituições e de outras fontes de informação, levando-a ao pânico moral, como se seus valores estivessem permanentemente ameaçados. O medo produz o ódio, criando um radicalismo de enorme capacidade de mobilização.


"Um 'mito' capaz de mobilizar os bolsonaristas, para comprovar a tese da origem divina do poder de Bolsonaro (o golpe funciona como um milagre que salvará o "povo eleito" do comunismo ateu). Servem também para meter medo nos demais poderes, principalmente o judiciário, e intimidar os críticos, levando-os a aceitar medidas que não aceitariam normalmente." (Christian Lynch)
Isso não quer dizer que o Bolsonarismo tenha a maioria do país, nem que contenha em si a totalidade dos conservadores. Ainda que atraia também neoliberais e conservadores estatistas ligados aos militares.


Edmundo Siqueira - Christian, uma de suas teses é de que o golpe é uma ideia do Bolsonarismo, uma estratégia política para manter seus apoiadores mais radicais ativos. Embora existam muitos militares no governo, o alto comando se recusa a participar de ações evidentemente golpistas. E a conjuntura internacional também não favorece para um golpe nesse momento. Seguindo essa linha, parece ser mesmo improvável um golpe militar nos moldes 1964, porém os golpes mais modernos atuam corroendo a democracia por dentro, com o enfraquecimento das instituições e incentivando o ódio na população. Você acredita que um golpe “moderno” seria possível caso Bolsonaro vença em outubro? O voto útil no Lula se justifica, aderindo ao temor que o PT usar como estratégia política, prevendo um golpe militar e a manutenção de um “protofascismo”?

Christian Lynch - Há três tipos de golpe no ar. O primeiro, o clássico, militar, é mobilizado retoricamente como um "mito" capaz de mobilizar os bolsonaristas, para comprovar a tese da origem divina do poder de Bolsonaro (o golpe funciona como um milagre que salvará o "povo eleito" do comunismo ateu). Servem também para meter medo nos demais poderes, principalmente o judiciário, e intimidar os críticos, levando-os a aceitar medidas que não aceitariam normalmente.

O "golpe nosso de cada dia"

Christian Lynch - O segundo tipo golpe é aquele real, encoberto pelo primeiro, o "golpe nosso de cada dia". Golpe da PEC eleitoral, golpe dos decretos ilegais liberando as armas, golpes de APARELHAMENTO da administração para arruinar órgãos da saúde, direitos humanos, educação e cultura com gente desqualificada; intervenção na PF e na PGR, etc. São esses os pequenos golpes que vão vulnerando a democracia e que são praticados diante da inação d PGR, aparelhamento da PF, da AHU, da intimidação do STF e do TSE, etc.

O terceiro golpe é a arruaça pós eleitoral em caso de derrota. Bolsonaro não pode reconhecer a derrota porque isso seria renunciar à sua condição de encarnação viva dá vontade popular, de modo que ele acusara a fraude eleitoral e incitará seu eleitorado a encenar uma "insurreição popular contra a fraude".

A “arruaça” como barganha

Christian Lynch - Bolsonaro é o homem que luta contra o sistema de dentro do sistema; quem prepara e organiza as eleições são parte ou o epicentro do sistema (o judiciário), então está "claro" que lhe estão preparando uma fraude para impedir que prossiga restituindo ao povo o autogoverno de si mesmo por intermédio de sua própria pessoa. Mais pragmaticamente, o objetivo da arruaça é ter poder para negociar um acordo geral que lhe permita sair do poder ileso junto com seus filhos, generais e acólitos.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com