Do esquecimento ao centro do debate: quais projetos existem para o Solar dos Airizes? Prefeitura, Ferroport, Sabra, Família Lamego, Iphan e Lei Rouanet
14/03/2024 | 08h58
Prefeito Wladimir Garotinho visita o interior do Solar dos Airizes - prefeitura conclui licitação para iniciar o escoramento e a construção de sobrecobertura
Prefeito Wladimir Garotinho visita o interior do Solar dos Airizes - prefeitura conclui licitação para iniciar o escoramento e a construção de sobrecobertura / César Ferreira -PMCG
O Solar dos Airizes, casarão às margens da BR 356 (Campos x São João da Barra), passou da condição de patrimônio esquecido para ser objeto de, pelo menos, três grandes projetos. São propostas distintas que envolvem o Solar, em fases diferentes de execução, e desenvolvidas por instituições independentes entre si.

A construção é repleta de simbolismos. Em Campos, o solar foi o primeiro imóvel a receber tombamento federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1940, a pedido do próprio Alberto Lamego, então proprietário do Solar. É tido por muitos como sendo o local de inspiração para o romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães.
Arquivo Nacional


Desde que foi tombado, o Solar já era sondado para abrigar um museu, para tratar de sua direta ligação com o período histórico das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar. Sem nenhuma dessas iniciativas acontecer, o solar foi abandonado. Em meados dos anos 1960, relatórios técnicos do Iphan já apontavam a necessidade de fazer intervenções na construção.
Com intervenções pontuais na década de 1970, foi só em 2003 que uma grande reforma no telhado foi feita por decisão do Iphan, o que garantiu sua sobrevida até aqui.

A quem pertence o Solar dos Airizes? A família Lamego segue como proprietária do solar e da fazenda dos Airizes. O bem que recebeu proteção do Estado Brasileiro é o próprio casarão e seu entorno, não abrange as terras.

Apesar de ser a proprietária, a família tem limitações de uso e venda do solar, uma vez que o tombamento não permite dispor da construção sem autorização do Iphan. Pelo abandono do prédio, os proprietários responderam ao órgão em diversos processos internos, onde pesadas multas foram impostas.

A família recorreu das penalidades, e conseguiu provar que não tinha condições financeiras para manter um patrimônio histórico como o Solar dos Airizes. Além do Iphan, o Ministério Público Federal (MPF) moveu ação para determinar o destino do casarão, processo que teve trânsito em julgado — quando não cabem mais recursos — em 2020 (trazido em primeira mão por esta coluna, aqui).

Com a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2), a prefeitura de Campos passou a ser a responsável pela manutenção e restauro do Solar, e poder decidir sobre seu uso. A família Lamego já demonstrou interesse em fazer a doação para a prefeitura, o que ainda não aconteceu.
César Ferreira -PMCG


Prefeitura de Campos - A prefeitura de Campos protocolou junto ao Iphan um pedido de autorização para realizar o escoramento das partes mais críticas do prédio, e a construção de uma cobertura temporária em toda construção, como forma de tentar conter a ação do tempo e das chuvas, enquanto as obras de restauro não se iniciam.

Segundo fonte do Iphan, o projeto apresenta algumas pendências, mas com chances de aprovação. Com o projeto protocolado, a prefeitura iniciou o processo licitatório para as obras propostas no Solar, e nesta quarta-feira (13), o prefeito Wladimir Garotinho anunciou que a licitação já foi finalizada, e que dentro de 15 dias será iniciado o escoramento e a sobrecobertura do prédio histórico.

— A Prefeitura finalizou a licitação para início da restauração do Solar dos Airizes. Uma reivindicação muito antiga da comunidade de historiadores e de amantes da história da nossa cidade. Tem uma determinação judicial, inclusive, bem antiga, determinando que isso seja feito, mas nunca havia sido tomada nenhuma providência, e a Prefeitura agora conseguiu finalizar a licitação e, no máximo em 15 dias, será feito o escoramento e a cobertura de todo aquele prédio, para evitar que ainda se deteriore mais e para poder fazer a restauração — disse o prefeito em suas redes sociais.
Ferroport - Em maio de 2023, foi assinado um protocolo de intenções entre o município de Campos e a empresa Ferroport, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. O objetivo da parceria era achar soluções conjuntas para o Solar dos Airizes.

Além do protocolo de intenções, a prefeitura editou a Portaria nº 952, de 16 de maio de 2023, que criou um Grupo de Trabalho específico para a realização de estudos relativos à restauração do patrimônio.
Equipe da empresa Ferroport e prefeitura de Campos - protocolo de intenções
Equipe da empresa Ferroport e prefeitura de Campos - protocolo de intenções / César Ferreira -PMCG


A Ferroport acompanha o andamento desse grupo de trabalho, liderado pela prefeitura, que tem a missão de elaborar um projeto de restauração para o Solar e seu entorno, onde também seriam definidos os usos para o patrimônio.
A promessa é que tão logo esse projeto seja aprovado pelo Iphan e pelo Ministério da Cultura, poderá receber os recursos vindos da Lei Rouanet, e dentro dos parâmetros do programa, serem aplicados pela Ferroport nos próximos anos.

Sabra - Em paralelo ao projeto da prefeitura de escoramento e sobrecobertura, e do grupo de trabalho criado a partir do protocolo de intenções, a associação mineira “Sociedade Artística Brasileira – Sabra”, conseguiu aprovar junto ao Iphan um outro projeto para restauro para o Solar dos Airizes.

O projeto da Sabra também foi aprovado para ser utilizado via Lei Rouanet, onde está apto a captar 100% do valor que foi proposto: exatamente R$ 28.410.937,55. Para que os recursos sejam aplicados, empresas interessadas podem atuar como financiadoras, tendo o valor correspondente compensado nos impostos devidos.

Folha da Manhã
Iphan - A autarquia federal é a responsável pelo tombamento e proteção do Solar dos Airizes. O processo iniciado nos anos 1940, que teve participação direta do modernista Mário de Andrade, dentre outras figuras importantes do Brasil, confere ao Iphan a tutela do bem, por seu valor histórico e cultural de relevância nacional.

Todos os projetos que envolvem o Solar devem possuir o aval do Iphan, mesmo que intervenham minimamente na construção e no seu entorno. O órgão sofreu duras baixas nos últimos anos, mas começa a recuperar sua força de trabalho, e realiza visitas e vistorias em Campos, cada vez mais frequentes.

Por que restaurar? Construído no início do século XIX, sob encomenda do Comendador Claudio do Couto e Souza, à margem direita do rio Paraíba, o sobrado, de grandes proporções e inspiração neoclássica, típico das fazendas de Campos do período Imperial, possui dois pavimentos, sendo o primeiro um porão alto.

O Airizes tem sua planta em formato de “U”, com a fachada distribuída simetricamente. Com extensão de 45 metros, possui na face principal “cinco grandes janelas em arco pleno, com raios em madeira, e três estreitas sacadas com grades de ferro”, como descreve o arquiteto Humberto Chagas.

No interior do Solar, funcionava a Biblioteca e o Arquivo Alberto Lamego, onde diversas obras raras eram guardadas, assim como mapas, documentos históricos e fotografias. Esse rico acervo foi adquirido por um museu em São Paulo. No interior do Airizes também existia uma significativa quantidade de telas dos mais variados artistas, como Both, Poussin, Taunay, Sanzio, Teniers, Savery, Jan Steen, entre outros. Essa pinacoteca pertence hoje ao Museu Ary Parreiras, em Niterói.

Restaurar o Solar dos Airizes não representa apenas uma obrigação histórica, cultural, moral e jurídica. Salvar as paredes alvenaria autoportante de adobe, tijolos cerâmicos maciços e madeira de lei, construída com mão de obra escravizada, significa fazer com que Campos e região se depare com sua própria história — e aprenda com ela.
César Ferreira -PMCG





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Talvez não seja tarde: Solar dos Airizes perto do salvamento - saiba como
24/01/2024 | 09h37
Dos patrimônios que estão em risco em Campos, o Solar dos Airizes é um dos mais resistentes. Abandonado há décadas, o casarão construído no início do século XIX, de arquitetura típica do período colonial, resiste — não sem danos e não se sabe como — às intempéries do tempo e do descaso.

Sem passar despercebido por qualquer pessoa que passe pela BR 356 (Rodovia Campos – São João da Barra), o Solar desperta curiosidade; muitas lendas permeiam a construção, sendo a mais conhecida a da Escrava Isaura. Mas gera também desespero em quem se preocupa com a história de Campos.

Paredes caíram, parte da fachada e do interior já não existe, várias portas e janelas em estado precário e o forro de madeira desabou em vários cômodos do Solar, levando a um estado de ruína. A icônica capela que o Airizes abriga também está em estado de deterioração. Parte de uma das extremidades do prédio (em formato de “U” imperfeito) já foi ao chão.
Nas apostas sobre qual patrimônio de Campos será o próximo a deixar de existir, o Solar dos Airizes lidera. Muitos previam que não passaria de 2023. Porém, o resiliente Solar persiste de pé, e se encontra próximo de salvação — como nunca esteve.

28 milhões - Com aval do Governo Federal, via Lei Rouanet, e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um projeto que tem como objeto a manutenção e a conservação emergencial do Solar dos Airizes está apto a captar 100% do valor que foi proposto: R$ 28.410.937,55.
 
A Lei Rouanet permite captar recursos com empresas e pessoas físicas que estejam dispostas a patrocinar projetos culturais, incluindo o restauro de patrimônios históricos. Em contrapartida, o valor direcionado à cultura é abatido totalmente ou parcialmente do imposto de renda do patrocinador. Ou seja, os recursos que seriam pagos ao Estado por meio de impostos são direcionados para estimular a atividade cultural.
VERSALIC - Gov. Federal
No caso do Airizes, foi assinado, em julho do ano passado, um protocolo de intenções entre o município de Campos e a empresa Ferroport, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. A Ferroport se comprometeu a aportar os recursos que pagaria de imposto no Solar, uma vez o projeto aprovado.


Os mais de 28 milhões de reais aprovados não precisam ser depositados de uma vez, e além da Ferroport, outras empresas podem participar. O projeto tem como proponente a Sociedade Artística Brasileira (Sabra) que também tem termo de cooperação técnica com a prefeitura.
Assinatura da parceria entre a prefeitura de Campos e a empresa Ferroport.
Assinatura da parceria entre a prefeitura de Campos e a empresa Ferroport. / PMCG
Escoramento e cobertura -
Em paralelo ao projeto via Lei de Incentivo, a prefeitura de Campos protocolou junto ao Iphan um pedido de autorização para realizar o escoramento das partes mais críticas do prédio, e a construção de uma cobertura temporária em toda construção, como forma de tentar conter a ação do tempo e das chuvas, enquanto as obras de restauro não se iniciam. 
Segundo fonte do Iphan, o projeto apresenta algumas pendências, mas com chances de aprovação.

A prefeitura é a responsável pelo Solar dos Airizes, após decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2), que transitou em julgado em 2020, e condenou o município de Campos a restaurar o Solar de forma emergencial. A ação foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), e não cabem mais recursos.
Projeto da prefeitura
Projeto da prefeitura / Iphan
“A prefeitura vai fazer, emergencialmente, o escoramento total e a cobertura, para nos resguardar que não vai acontecer nada com o prédio. Mas para a obra de restauro, o dinheiro da Ferroport está garantido na parceria, já assinaram o termo de cooperação e já aprovaram no conselho”, disse o prefeito Wladimir Garotinho a este blog.


Wladimir disse ainda que o escoramento e a cobertura estão “prontos para serem feitos”, e que com a votação da LOA [hoje (24), veja aqui], “abre o orçamento e licita rápido”.
Procurada pelo blog, a empresa Ferroport não retornou os contatos. 

Família Lamego e condomínio na Fazenda dos Airizes - O Solar do Colégio e sua capela, e ainda todo seu entorno, são tombados pelo Iphan desde 1940, o que impede qualquer tipo de descaracterização. Porém, houve algumas tentativas de venda do Solar pelos herdeiros de Alberto Lamego e de sua esposa (filha do comendador Cláudio de Couto e Souza, construtor do prédio), e também de doação para a prefeitura de Campos.

Mas o espólio de Lamego não se limita ao Solar. A construção faz parte de uma grande fazenda, às margens da BR-356. Essas terras sempre foram alvo de especulações imobiliárias, e recentemente foi aventado que uma empresa de São Paulo seria a nova potencial compradora da propriedade.

Também a este blog, um dos herdeiros da família Lamego explica que a empresa paulista é a ABMais Incorporadora, que havia “fechado uma área para início de urbanização”, mas que não teria relação com o Solar dos Airizes, sendo “em uma área distante” do patrimônio.

O blog Ponto de Vista, de Christiano Abreu Barbosa, deu mais detalhes da transação:

“O trecho da BR-356 entre o final da Avenida Alberto Lamego e Martins Lage está se
transformando rapidamente num dos principais vetores de crescimento imobiliário de Campos. Com a expansão contínua do Porto do Açu, as terras às margens da rodovia - que acompanha o traçado do Rio Paraíba do Sul em direção à foz - se tornaram uma excelente opção para quem busca tranquilidade e, ao mesmo tempo, estar perto das comodidades e infra-estrutura da área urbana.

Em breve, os condomínios - Vale do Paraíba, Remanso do Paraíba e Palm Springs - já instalados naquele trecho terão um novo vizinho. A ABMais, incorporadora de São Paulo que e uma das maiores urbanizadoras do país, escolheu a região para o seu segundo empreendimento na cidade”.

O Solar e a Esperança - O Solar dos Airizes não traz apenas significado arquitetônico. O local foi residência de um dos maiores intelectuais e escritores campistas, Alberto Lamego, onde ele abrigou sua vasta pinacoteca, além de uma biblioteca repleta de obras raras trazidas da Europa e um extenso acervo documental.

O Airizes foi considerado a “meca da intelectualidade” do Brasil, que atraía diversos artistas, escritores e pensadores importantes do país, pelo acervo recolhido por Lamego. Uma dessas personalidades foi Mário de Andrade, um dos fundadores do modernismo. O local recebeu também o Imperador Dom Pedro II, em 1883.

Aos poucos, e percebendo (já naqueles tempos) o descaso de Campos com o patrimônio material e imaterial, Lamego vendeu a coleção de pinturas para o Museu Antônio Parreiras, em Niterói, onde se encontra até hoje, e o acervo para a USP, em São Paulo.

Foto; Edmundo Siqueira
Se salvo, o Solar deverá passar por um segundo restauro, onde será definido seu uso cultural, turístico e de educação patrimonial. Os recursos e as ações atuais servirão para impedir sua ruína e mantê-lo de pé, mas ainda há muito para ser feito, inclusive com a repatriação dos acervos. 


Prefeitura e Governo Federal, através da Lei de Incentivo, possuem o dever de preservar a história e incentivar a cultura, por obrigação constitucional e para fomentar um setor que empregava em 2020 quase 5 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

Dos tempos de glória aos dias atuais, o Solar dos Airizes passou por várias intervenções, e um longo período de abandono. Representante de importante parte da história de Campos, a ruína total parecia uma realidade imutável. Mas, novos ares de esperança surgem, e caso se concretizem, a resistente construção pode ser um raro caso de salvamento patrimonial numa cidade que não compreende a importância de sua própria história.
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O gado, a cana, o petróleo, o porto e a reserva
04/09/2022 | 07h48
Apesar de fundamental para o crescimento da região Norte Fluminense, o ciclo do Açúcar não foi isolado. Processos de interdependência foram se estabelecendo em Campos dos Goytacazes.
Apesar de fundamental para o crescimento da região Norte Fluminense, o ciclo do Açúcar não foi isolado. Processos de interdependência foram se estabelecendo em Campos dos Goytacazes. / Reprodução
É um engano chamar Campos dos Goytacazes de “terra do já teve”. Essa expressão pejorativa, que tenta colocar um local ou uma região na condição de declínio, não se aplica à cidade. Talvez seja mais justo impor para Campos a condição de “terra onde tudo dá”.

A ocupação do território que hoje compreendemos como Norte Fluminense se deu pelo gado. Uma choupana de palha, três novilhas, uma vaca e um touro compunham o que seria o início da “colonização” ou da exploração econômica das terras da região. Um grupo conhecido como os “Sete Capitães” efetivou esse processo depois de algumas tentativas fracassadas.

Um dos integrantes do grupo dos sete capitães — vieram em uma comitiva com cerca de 20 pessoas — era um índio vaqueiro chamado Valério Corsunga, que ficou responsável por aquela primeira choupana e curral, construído no mês de dezembro de 1633, em Campo Limpo, na Baixada Campista.

O grupo seguiu pela Baixada e fixou mais dois currais, um na Ponta de São Tomé, que ficou a cargo de um escravizado chamado Antônio Dias, e um terceiro curral na localidade de São Miguel, ficando aos cuidados de outro indígena vaqueiro chamado Miguel.


As extensas planícies, água em abundância e bom pasto nativo possibilitaram que esses currais se transformassem em várias pequenas propriedades, produzindo muito gado. A proteína qua saía de Campos abastecia o Rio de Janeiro e despertava interesse de “estrangeiros”. Além dos pioneiros, descendentes e sucessores dos Sete Capitães, havia os Assecas — título de nobreza que o governador do Rio, Salvador Correia de Sá e Benevides recebeu e criou uma espécie de dinastia —, e as ordens religiosas disputando o território.

A cana e o que ela trouxe
Antiga Usina de Campos, São João. O munício chegou a ter 26 usinas em funcionamento, e o ciclo do açúcar determinou o crescimento da região por quase três séculos.
Antiga Usina de Campos, São João. O munício chegou a ter 26 usinas em funcionamento, e o ciclo do açúcar determinou o crescimento da região por quase três séculos. / Reprodução

Aquela disputa, os pioneiros perderam. Os que tinham ligações com o grupo dos Capitães foram expulsos de Campos — de um território que estava próximo de ser o entorno de uma cidade com esse nome.

Os vencedores fundam grandes fazendas e engenhos no local. E então o governado Salvador Correia , representante máximo dos Asseca, começa o que seria o “ciclo do açúcar”, fundando, na década de 1650, pequenas lavouras, um engenho e uma capela dedicada a São Salvador.

Ainda existiam milhares de cabeças de gado, e a cultura das grandes propriedades ainda estavam relacionadas quase que exclusivamente à pecuária. A cana ainda era secundária, mas a produção e o poder já começavam a se concentrar nos grandes produtores.

A região foi dividida por freguesias. A Vila de São Salvador, depois a freguesia de São Gonçalo e a de São Sebastião que englobava uma parte extensa da planície, até a Lagoa Feia e ainda abraçando a costa litorânea até a praia do Açu.

Campos começa a ser um centro urbano em 1653, quando já possuía a igreja matriz e uma Câmara. O poder legislativo, que ainda devia ser ligado à Portugal, foi criado nesse período por um movimento político orgânico, de campistas “rebeldes”. E apenas em 29 de maio de 1677 a Vila de São Salvador é oficialmente reconhecida como tal.

A cana-de-açúcar se firma como um motor econômico, e quase dois séculos depois, nos anos 1880, cerca de 130 fábricas de açúcar e aguardente estão em funcionamento. Dessas, 27 são movidas a vapor. Existiam mais de 2.000 casas e mais de 20.000 pessoas na região. 

Com o avanço civilizatório, o que era considerada a “tirania dos Asseca” terminou, assim como o pagamento de taxas injustas aos donatários. Propriedades menores poderiam existir com mais facilidade, e a produção era descentralizada. Restaram apenas quatro grandes fazendas: a do Colégio, a de São Bento, a do Visconde e a de Quissamã.
A futura indústria do açúcar surge das engenhocas, que passam por um processo de evolução, até se transformarem em engenhos centrais. No século XX os velhos engenhos desaparecem, e acontece o surgimento das usinas, com seus equipamentos modernos e importados principalmente da França.
Mas o conflito agora se dava na produção da cana. A matéria prima produzida não era o bastante, e o preço cobrado pelos produtores subia. O conflito das pequenas e médias propriedades com os grandes latifúndios marcaram as relações comerciais na cidade no decorrer dos séculos seguintes.

Em 1917, em plena Primeira Grande Guerra, Campos se torna o maior exportador de açúcar do Brasil, e o 17º do mundo. O século foi marcado por transformações em uma velocidade nunca antes vista. Indústria, tecnologia, armamento, medicina, comunicação, globalização, tudo vinha em uma assombrosa avalanche. E não foi diferente em Campos.

Apesar de crises pontuais, como em 1929, e as idas e vindas na democracia brasileira, as usinas de Campos — chegando a 26 unidades — conseguiram uma safra recorde em 1973: 611 mil toneladas de açúcar. Toda essa transformação e incremento de produção acontece por financiamento estatal. Desde o início. E também por criação de programas estatais como o Instituto do Açúcar de Álcool (IAA) e o PróÁlcool.

Declínio e outros potenciais
Reprodução


Campos era a cidade do açúcar, uma potência econômica capaz de competir com os grandes centros, com posição geográfica e tamanho territorial para tal. Mas, ao contrário das grandes cidades, social e politicamente Campos tinha estacionado. Uma cidade que já tinha alçado um dos seus à presidência da República, e outros tantos nomes essenciais em pautas nacionais, principalmente antiescravagistas, decidiu ficar no atraso em muitas questões.

Em um cenário com evoluções constantes nos processos econômicos, acabam por marcar as relações das pessoas com o espaço, e essas marcas ficam impressas tanto na paisagem quanto na consciência dos habitantes.

Campos tinha estagnado também em matéria prima: cana. A área plantada na safra de 1980 é praticamente igual à do início da década de 1960. Alguns parques industriais não eram geridos com o profissionalismo que o período exigia e havia alto endividamento com bancos públicos.

A cana havia dado o que podia à cidade naquela altura. Não havia mais como competir com outros estados produtores e muitas usinas fecharam. Um município que viveu do que a terra produzia até ali, não sabia para onde convergir suas forças. Apesar de três séculos de sucesso econômico e crescimento vertiginoso para os padrões históricos, Campos havia chegado em um momento de transição.

O porto e a reserva
Área disponível para as atividades do Porto do Açu.
Área disponível para as atividades do Porto do Açu. / Porto do Açu


O produto principal da economia campista, o açúcar, dava lugar ao petróleo. Embora eles pudessem coexistir e se retroalimentar, o “ouro branco” já havia deixado de ser abundante quando o “ouro negro” brotava aos montes das reservas da Bacia de Campos.

Campos, assim como na produção de açúcar, se torna um dos principais produtores de petróleo do país. Mais de 80% da produção nacional vinha do município, e polpudos royalties e participação especial (historicamente a maior parcela financeira repassada à cidade) eram depositados nos cofres de Campos.

Mas diferente da cana, o petróleo trouxe pouco de desenvolvimento real ao município. Macaé acabou por concentrar as indústrias que o petróleo trazia e Campos investia mal a fartura orçamentária.

Mas outros negócios inevitavelmente acompanhavam o “cheiro” dos recursos abundantes. Com uma localização geográfica excelente, Campos e os municípios vizinhos — desmembrados administrativamente do enorme território iniciado na Vila de São Salvador — atraiam também investimentos portuários.

Interligados, como são os acontecimentos históricos, o declínio do ciclo do açúcar e a falência da Usina Santo Amaro, em 1999, fizeram com que as terras fossem vendidas, já com grande desvalorização. Duas grandes fazendas foram adquiridas para instalação de um complexo portuário em Barra do Açu. Caruara e Saco D'Antas se tornaram essenciais para que o Porto fosse viável.

O processo de criação de um porto de grandes proporções no Norte Fluminense foi longo e cheio de reviravoltas. As empresas interessadas em investir na ideia pareciam não acreditar completamente no sucesso do empreendimento. Wagner Victer, então secretário de Estado do governo Anthony Garotinho, acompanhou a criação deum Decreto que declarou como de "utilidade pública, para fins de desapropriação", parte da Fazenda Saco D'Antas. O Estado do Rio de Janeiro ficaria com a obrigação de investir de 33% do valor do projeto, como forma de alavancar a construção do porto.

Victer fez o projeto do Porto, a modelagem de engenharia, e apresentou aos interessados. “Ia ser com outras empresas. Na hora H elas furaram, e apresentei ao Eike em 2003”. Eike Batista era um investidor agressivo. Foi considerado a 6º pessoa mais rica do mundo, e comprou a ideia apresentada por Victer. Outras tantas reviravoltas e instabilidades democráticas no Brasil retardaram o nascimento do Porto do Açu, mas a ideia persistiu.

Hoje, o Porto do Açu é uma realidade. Ainda utilizando pouco de seu potencial, cumprindo uma estratégia e programação de crescimento de médio e longo prazos. Mas já possui um forte ativo ambiental perto de abrir suas portas ao público.
Visão aérea da Reserva Caruara. Criação de RPPN e área de preservação permanente. Será preciso coexistir na região.
Visão aérea da Reserva Caruara. Criação de RPPN e área de preservação permanente. Será preciso coexistir na região. / Porto do Açu/Reserva Caruara


A Reserva Caruara foi criada de forma voluntária como uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), em 2012, pelo Porto do Açu Operações. A região é conhecida como o maior fragmento remanescente de restinga em área privada do Brasil. Depois de 10 anos da criação da Reserva, um espaço moderno e atraente para receber público técnico e turístico no local está pronto e deve inaugurar em breve.

Os ciclos interdependentes

O gado, ativo primeiro da região Norte Fluminense, foi essencial para preparar a extensa planície para os desafios que se apresentavam. A cana, como segundo produto de exploração, determinou o crescimento populacional, urbano, econômico e político de Campos. O petróleo, como tesouro descoberto no mar, financiou parte do que ficou e os setores que cresceram depois. A zona portuária, advinda de especificidades regionais, tem potencial para ser uma das molas do futuro.

A Reserva Caruara talvez cumpra um papel simbólico maior do que apresenta. A necessidade e a vontade de preservar biomas e os utilizar como ativo turístico e institucional é a prova — literalmente viva — que os ciclos se comunicam e são interdependentes. E que o passado e a natureza impõem, sempre, suas importâncias.

Porém é um exemplo isolado, que ainda carece de coexistência como a comunidade que está inserida, e adaptações que respeitem as tradições e o sustento de pessoas ligas às atividades não-predatórias daquele local. O sucesso da Caruara e o equilíbrio desses fatores, pode impulsionar outras inciativas semelhantes.

Campos não apenas “já teve”. Campos está em uma região onde enormes potencialidades se apresentam. quase que espontaneamente. Os ciclos econômicos e sociais não foram isolados, eles se comunicam e criaram uma relação de interdependência. Gado, cana, petróleo e portos ainda estão presentes, alternando em importância.
Nessas terras, tudo parece “dar”, quando bem regadas e planejada
Porto do Açu/Reserva Caruara

*Colaborou com a matéria Wagner Victer, ex-secretário de Estado do Rio de Janeiro e dados do artigo 
"Transformações territoriais e socioambientais do norte fluminense: das usinas de açúcar ao complexo logístico industrial do Porto do Açu", de Leonardo Pessanha/IFF Campos, 2014.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com