O menino é o pai do homem
08/08/2021 | 07h44
William Wordsworth, poeta romântico inglês, escreveu que “o menino é o pai do homem”. Afirmou o mesmo, no clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas” — como título de capítulo (um dos mais longos) —, o maior escritor brasileiro, Machado de Assis. Tinha lido Machado, por obrigação curricular e por gosto, mas não conhecia Wordsworth, até pesquisar para escrever aqui, neste Dia dos Pais, do ano de 2021. Sim, já havia entendido que a afirmação de anacronismo poético fazia referência ao menino que todo homem carrega consigo. Até ter sido pai e os significados se expandirem, como quando uma pesquisa de campo é feita em profundidade.
Por inferir — também de forma óbvia — que o homem seria o produto de seus hábitos e comportamentos desenvolvidos na infância, entendi que pais, como primeiros mestres, devem repassar bons valores e criar filhos bons, e assim, em seu turno, criarem uma sociedade melhor. Mas, filosofia e antropologia podem questionar se essa evolução constante, de princípio iluminista, e advindo de conclusões simples da frase de Machado e Wordsworth, pode realmente ser uma verdade em si mesmo, e se os conceitos de bondade são mesmo universais.
Dia dos Pais é uma data comercial — o leitor pode ter alertado (veja aqui um bom exemplo que isso nem sempre é negativo). Sem contradições inconciliáveis, concordo. Mas, de que serviriam essas datas, além de girar a roda da economia, de nos fazer dar e receber Feliz Dia dos Pais! para os que ainda têm a sorte de fazê-lo em vida, em almoços de domingo onde camisas polo são entregues com entusiasmo; e nos fazer refletir. Filosófica e antropologicamente.
John Locke (aquele do contrato social) acreditava que nascemos como uma “folha em branco”. E teríamos a capacidade de escrever nossa história com formas e linhas próprias, a partir do “nada”. Não concordo com esse pensador (contestar um mestre e até discordar dele, respeitosamente, é sinal de bom filho). Acredito que nossa carga genética determine muito de nossa forma de ver o mundo. Afinal, “não importa tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Sim, Elis Regina cantou de forma muito determinística. Mas estaria ela errada, quando olhamos para muitos traços de nossa personalidade e as determinações de nossas imposições ou facilitações materiais?
Meu pai me ensinou muito. Por carga genética, empirismo e sabedoria. Sábio e o herói foram — e são — certamente os arquétipos que construí de sua imagem. Hoje, vejo esses mesmos padrões se repetirem em sua convivência com o neto e na sua relação com pai. Meu avô foi um homem importante. Não o conheci, mas ouço suas histórias ainda hoje. “Seu avô passava de avião por aqui, descia naquele campo ali, de chapéu branco e roupa de linho” — umas das imagens que construí dele. Carrego seu nome, homônimos, sem o “neto”. Quando morreu, meu pai tinha apenas 18 anos e deixou para ele prestígio, patrimônio, algum dinheiro e a tal carga genética — muito de suor e lágrimas também. Acredito que ele, meu pai, tenha criado uma mitologia proposital em torno da imagem de seu genitor. Se não o fizesse, e não o colocasse como guia e meta a ser atingida — inalcançável, como ele mesmo teima em dizer a si e aos seus —, talvez não tivesse edificado o que lhe foi deixado. Para além dos arquétipos e heranças materiais, o que realmente interessa na vida — valores e sentimentos — ainda me é passado pelo exemplo, e pelos ensinamentos de pai para filho, de respeito mútuo.
“O homem nasce bom por natureza, é a sociedade que o corrompe” afirmou Jean-Jacques Rousseau (o filósofo do iluminismo). Contradito pelo renascentista Maquiavel — o homem é mau por natureza, a menos que precise ser bom. Sempre achei que esses conceitos da filosofia clássica coexistiam à luz do dia. A própria gênese de nossa existência nos faz transitar pelas nuanças cinzentas, que na maioria das vezes rejeitam o monocromático. Mas há o inegociável e o incorruptível. Para mim, existem pela presença constante da honra e valores me passados desde a infância.
Não por coincidência, as reflexões que faço neste Dia dos Pais são em aspectos da existência trazidos por mestres; familiares e literários. Uma das heranças que mais me orgulho de ter recebido de meu pai foi o privilégio do acesso. Arte, literatura, educação formal, esportes, música, cinema. Herdei dele e dos hábitos cultivados, o amor por história e cultura. A liberdade concedida expandiu (em muito!) as cargas repassadas pelo sangue. Agradeço, todos os dias. Liberdade e educação que forma, quando emancipadora, como foi, senso crítico, para fazer entender e questionar cotidianamente como isso é determinante para manter desigualdades.
As contradições fazem parte da existência. Como muito bem ensinava Arthur Schopenhauer (aquele pessimista contumaz), descrevendo essa coisa de “bem” e “mal” da forma mais coerente e real — o homem é um macaco cego, robusto e irracional, que carrega um macaco aleijado que enxerga.
O menino é sim, o pai do homem. Espero ser um pai que cultive valores, família, liberdade, compaixão e amor pelo trabalho, mas sempre mantenha o menino vivo — no meu pai, em mim, no meu filho. Feliz Dia dos Pais!
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com