Os algoritmos, a liberade e a tolerância
/
Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira
Existem dois conceitos fundamentais quando pensamos em uma democracia liberal: liberdade e tolerância. E até mesmo por seus papéis fundacionais em um sistema repleto de freios e contrapesos, e com a necessidade perene de limitação de poder mesmo quando exercido pelo Estado (este limitado pela Constituição), são conceitos complexos e por vezes contraditórios.
Como a garantia de liberdade, que não pode assumir um caráter absoluto, devendo ser limitada e relativizada quando fere outros direitos fundamentais. Em uma democracia liberal deveria parecer claro que o limite da liberdade é a lei. Portanto, quando o direito de exercer a liberdade fere o ordenamento posto e pactuado coletivamente, essa garantia perde seu objeto; seu preceito.
Pode parecer uma contradição aparente, mas limitar a liberdade individual é papel de uma democracia liberal, justamente para garantir que haja convivência pacífica em âmbito coletivo. O direito de ir e vir, por exemplo, não pode ser exercido plenamente quando há uma situação extrema ou calamidade, justamente para proteger o indivíduo quando este quer assumir uma conduta que cause riscos para si e para seus conviventes. Limitações de direitos também falam sobre proteção.
Quando caminhamos em terrenos políticos, podemos perceber que a liberdade é usada como elemento central de discursos que buscam radicalidade e ruptura; travestidos de defensores da liberdade, subvertem seu real sentido. E por vezes conseguem convencer uma quantidade de pessoas suficiente para criar um movimento significativo socialmente, e é nesse ponto que as democracias liberais passam a ter um problema para resolver.
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas?
/
Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira
Limitar ou ampliar?
A primeira reação dos democratas talvez seja limitar a presença desses transgressores libertários no debate público, bloqueando seus perfis nos ambientes digitais, impedindo que compareçam a debates televisionados ou mesmo dificultando seu acesso a partidos políticos ou candidaturas avulsas. A premissa é de que a voz desses indivíduos seja calada, impedindo que convençam outros de suas convicções deturpadas.
Mas como exercer esse controle de forma equilibrada? O direito, como ciência social, estabelece a intenção, o dolo, como um elemento central para o julgamento de crimes. A mesma conduta pode ter interpretações e punições diferentes a depender da intenção. Para se formar o dolo, o agente causador do ato ilícito precisa ter conhecimento da ilegalidade, vontade de agir e indiferença perante o resultado danoso.
Decisões judiciais que visam impedir que agentes políticos — investidos ou não em mandatos — atuem livremente para descumprir leis de forma dolosa, mesmo quando feito em ambientes virtuais, atendem à premissa da proteção do modo de vida da sociedade, do espírito das leis e da Constituição. Portanto, alguém que possui o dolo evidente de quebrar as vigas de sustentação da democracia precisa ser combatido, e calado quando o resultado danoso de sua conduta estiver em suas palavras.
Porém, mesmo havendo dolo no uso de liberdades individuais fundamentais como a livre expressão, é preciso que seu combate seja feito em bases razoáveis, e temporárias. Não se pode calar alguém na sociedade de forma indiscriminada, tampouco por tempo indeterminado. Caso contrário, estaremos supondo que aquele agente estará sempre cometendo ilegalidade em suas opiniões, e agiremos em censurá-lo previamente.
Karl Popper
/
Reprodução
A tolerância e o debate público
O segundo conceito chave em uma democracia liberal, a tolerância, dialoga essencialmente com a liberdade de expressão nos tempos atuais. Produzimos a maior ferramenta de comunicação humana já vista, a mais global e a mais rápida que já existiu.
A internet não apenas possibilitou essa comunicação como retirou do processo entre emissor e receptor qualquer tipo de mediação ou filtro. Qualquer pessoa pode ser um produtor ou emissor de conteúdo e ele é distribuído para outrem sem passar por qualquer crivo de qualidade ou de senso de credibilidade.
A internet produziu um cenário libertário, mas concentrou em poucos controladores o poder sobre os meios em que as mensagens são produzidas. E criou os algoritmos para direcionar de forma automatizada as predileções e os ódios.
A questão é que “o meio é a mensagem”, como ensinou o filósofo canadense Marshall McLuhan. A forma como recebemos a informação é tão significativa quanto o conteúdo que ela transmite. Esse “meio”, apesar de aumentar significativamente a capacidade de comunicação entre os indivíduos, produziu paradoxalmente um enorme afastamento ideológico, social e afetivo.
Outro filósofo, contemporâneo de McLuhan, mas nascido em Londres, Karl Popper, ganhou notoriedade mundial ao descrever outro paradoxo: o da tolerância. Esse conceito é descrito por Popper em uma nota de rodapé em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, e sua essência está na primeira frase: “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”.
“Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, continua, na mesma nota de rodapé.
O que Karl Popper está dizendo é que as democracias liberais têm o dever de suprimir as tentativas intolerantes, e mesmo que “pela força”, pelo poder coercitivo do Estado, impedir que cresça na sociedade um sentimento de intolerância, de ódio ou de incapacidade de convívio.
Caso optamos por permitir, estaremos dando passos temporais largos para um passado incivilizado, e portanto destruindo o que chamamos de sistema democrático. Portanto, o debate público não pode acontecer à margem da lei, e jamais em bases intolerantes.
Se não defendermos a tolerância com firmeza, permitiremos que a liberdade, ao invés de um direito, se torne uma arma nas mãos de seus maiores inimigos.
Chico Buarque e a autocensura da música "Com Açúcar e com Afeto".
/
Reprodução
A censura começa assim: por um bom motivo.
Seja na direita ou na esquerda, censurar alguém, escolher o que pode ou não ser dito ou publicado, com base em critérios morais ou políticos, é um fetiche quase irresistível aos autoritários. Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido parece passar a ser um censor.
Nestas últimas semanas, dois episódios de “cancelamento” — nome moderno para o ato de calar alguém — tiveram como justificativa a “justiça” e “bons motivos”. O primeiro foi sobre um artigo publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo, de autoria do antropólogo e poeta Antônio Risério. O segundo cancelamento recaiu sobre uma música de Chico Buarque — “Com Açúcar e com Afeto”.
Antropólogo e poeta, Antônio Risério.
/
Reprodução
Dizer se um trabalho artístico ou informativo é digno ou não de ser publicado, é um poder perigoso. No caso de Risério, o pedido de censura foi formal. Em um manifesto assinado por jornalistas, calar o antropólogo foi solicitado. Ele e a Folha não se deixaram intimidar pelos propensos censores, receberam apoio, mas o cancelamento nas redes sociais foi inevitável. Possivelmente, Risério teria grandes dificuldades hoje em escrever para um veículo de grande circulação.
O artigo dele é ruim. Levanta uma tese um tanto quanto descabida; citando exemplos estrangeiros para fazer da exceção uma regra, traz uma possível ameaça relacionada ao racismo de negros contra brancos. Risério foi acusado (com justiça aqui) de defender o indefensável: “racismo reverso” em um país como o Brasil. Mas não escreveu nada que pudesse ser acusado de crime.
Defender Antônio Risério de seu cancelamento não significa concordar com sua tese. Tampouco significa dizer que a liberdade de expressão é um direito absoluto. Há limites. E eles estão definidos em lei. Não em censores.
O caso de Chico foi uma autocensura. Ele afirmou que não cantará mais a música "Com Açúcar e com Afeto" que foi considerada machista por alguns grupos de feministas. A música é de fato machista, embora tenha sido encomendada por uma mulher, Nara Leão. Mas é arte, e como tal serve para marcar um entendimento da época, explica contextos, e as problemáticas vividas. Se hoje é ofensivo, jogar debaixo do tapete do identitarismo não mudará realidade alguma.
Uma obra de arte é um organismo vivo. Ela passa a mensagem que passa, independente da vontade futura de seu autor, mesmo genial como Chico. A arte é atemporal. “Com açúcar e com afeto” é um retrato artisticamente belíssimo da sociedade sexista brasileira. E afinal, ela foi uma denúncia ou uma apologia ao machismo?
Reprodução
Se afirmarmos que não houve escravidão, por exemplo, não reconheceremos a necessidade premente de lutar contra suas causas. Tudo parte de identificar que temos um problema. A partir daí, enfrentá-los. E deixar a história cumprir um dos mais importantes papéis: ensinar. Ou então cairemos na “Tese Morgan Freeman”, que basta deixar de falar em racismo que ele desaparece.
Não há harmonização facial identitária na sociedade brasileira que passe a produzir um rosto sem marcas. Elas são profundas demais. Marcas de escravidão, violência contra mulher, homossexuais, índios, pretos... não há maquiagem que resolva o machismo entranhado em qualquer rosto feminino mascado pela submissão.
Esconder e cesurar podem resolver. Mas apenas se vierem acompanhadas de ditadura. Assim, os assuntos proibidos, ou que machucam, ou mesmo a história, serão contados como o censor quer, construindo a sociedade que um grupo deseja. Isso já foi tentado na história, e não terminou bem. Ou o nazismo é tabu?