O combustível do incêndio no Hotel Flávio é o descaso
19/11/2022 | 05h29
Genilson Soares
Para quem acompanha o patrimônio histórico em Campos dos Goytacazes, o incêndio no Hotel Flávio, nesta madrugada, não foi nenhuma surpresa. O imóvel é apenas um dos muitos em estado de abandono completo na cidade. Alguns surpreendentemente ainda estão de pé.

Invariavelmente, um patrimônio histórico só resiste ao tempo quando lhe é conferido uso. A exploração do espaço — via poder público ou iniciativa privada — oferece acessibilidade, preservação e cumprimento das obrigações exigidas pelos órgãos de controle, como o Iphan. Exemplos não faltam no Brasil e no mundo.

Mas Campos é um caso sui generis. Uma de suas primeiras edificações — um emblemático Solar incrustado na Baixada Campista — tem uso (lá funciona o Arquivo Municipal) e recurso para restauro (R$ 20 milhões em caixa da Uenf) há quase um ano, e mesmo assim corre sério risco de acontecer o mesmo com o Hotel Flávio.

No que assemelha-se às outras cidades que destroem seu patrimônio, Campos não consegue criar a sensação de pertencimento necessária em seus habitantes. Apesar de ser uma cidade histórica, com mais de 400 anos, e ter sido uma das mais importantes do Império, os campistas comemoram seu aniversário em 28 de março, que remete a apenas 187 anos de história, “apagando” os eventos anteriores.
Centro de Campos, anos 1950.
Centro de Campos, anos 1950. / Reprodução

Quem acompanha este espaço, ou teve acesso ao meu livro “Antes que seja tarde”, sabe que o Solar dos Airizes (casarão às margens da BR-356, a caminho de São João da Barra) é outro patrimônio que está em estado calamitoso, mesmo havendo decisão judicial que determina seu restauro.

Prédio da Lira de Apolo em chamas, em Campos, nos anos 1990.
Prédio da Lira de Apolo em chamas, em Campos, nos anos 1990. / Reprodução
No mesmo centro histórico do Hotel Flávio, o campista viu as chamas — do mesmo descaso — quase destruírem o belíssimo prédio da Lira de Apolo. Viu também a emblemática construção da Santa Casa de Misericórdia se transformar em um estacionamento e o antigo Teatro Trianon numa agência bancária.
O incêndio no Hotel Flávio (caso não seja criminoso, situação que precisa ser investigada) foi alastrado pelo combustível do descaso. Do poder público? Também. O Hotel chegou a ser doado para a prefeitura pelo espólio da senhora Zilda Carneiro da Silva, mas devolvido pelo governo Rafael Diniz. Ainda pior: sob os olhos do Conselho de Preservação do Patrimônio Arquitetônico Municipal (Coppam).

Mas o descaso e a culpa pela destruição de mais um patrimônio histórico é de todos nós. É preciso criar identificação e respeito pelo passado. Personagens históricos são transformados em caricaturas e construções em problema. Os processos que trouxeram a sociedade ao tempo presente não são problematizados, não são apresentados às crianças nas escolas. Pelo menos não como deveria.
Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa demolidas em 1961
Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa demolidas em 1961 / Reprodução

Sem esse trabalho, sem educação patrimonial e sentimento de pertencimento, não se resolve a questão dos patrimônios apenas com dinheiro. Os museus vão continuar vazios, os prédios vão continuar caindo e a história vai continuar desvalorizada.
O restauro de um prédio como o Solar dos Airizes por si só não cria nada relevante. Porém, em condições físicas melhores, ele pode ser palco de exposições, de visitas escolares, do recebimento de turistas, da exploração de restaurantes e comércios em geral e aos poucos passar a ser de todos; não “de ninguém”.
Reformar o prédio centenário do Mercado Municipal não resolve se ele continuar invisível, coberto por estruturas metálicas que não deviam estar onde estão. Reconstruir o Solar do Colégio não adiantará se o acervo que ele abriga for queimado pelo descaso de quem tem o recurso.

O descaso — provoque ele incêndios ou não — impede que adultos e crianças entendam que é indo ao museu, visitando uma construção histórica, pesquisando em um Arquivo ou aproveitando uma exposição, que elas vão adquirir a cidadania, a memória, a história, o passado, e valorizar a sua cidade e o seu país.

O Hotel Flávio foi apenas mais um que sucumbiu pelo descaso em Campos. Outros tantos anunciam o mesmo fim. A tragédia é perdermos o pouco da identidade construída e não criarmos condições para aumentá-la.
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Defensoria Pública na mira da PGR - a quem interessa enfraquecer a defesa do cidadão mais vulnerável?
12/11/2021 | 01h05
(Photo by Dursun Aydemir/Anadolu Agency/Getty Images)
(Photo by Dursun Aydemir/Anadolu Agency/Getty Images)
“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”. Assim trata a Defensoria o caput do artigo 134 da Constituição Federal, estabelecendo, portanto, o caráter democrático e a necessidade do Estado assegurar o bom funcionamento do órgão.
Mas não é o que propõe a Procuradoria Geral da República (PGR). Em 22 ADIs (Ação Direta de Inconstitucionalidade), a PGR questiona o direito dos defensores de solicitarem documentos de autoridades e órgãos públicos — prerrogativa do órgão garantida em lei há mais de 27 anos.
Com julgamento marcado no Supremo para esta sexta-feira (12), a ADI 6.852 pede que seja declarada inconstitucional a possibilidade de requisitar diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à atuação da Defensoria Pública. O argumento da PGR para ajuizar as ações é a existência de uma suposta disparidade no mundo advocatício, onde existiram prerrogativas que conferem ao defensor público um atributo que advogados privados não têm.
Os defensores públicos defendem o caráter distinto da atuação como instituição pública, e reforçam a necessidade de atendimento à população mais vulnerável. O Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Pacheco, explica essas prerrogativas à reportagem:
Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Pacheco. Foto Agência O Globo.
Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Pacheco. Foto Agência O Globo.
— O poder de requisição é fundamental para o trabalho da Defensoria na garantia de direitos da população mais pobre. Com ele, é possível obter documentação mais rapidamente para resolver extrajudicialmente ou judicialmente um problema. A perda do poder de requisição fará com que a Defensoria perca um instrumento fundamental de trabalho, além de abarrotar o Judiciário com ações para obtenção de simples documentos.
Lúcio Campinho, defensor lotado no interior do Rio, em Campos dos Goytacazes, também comentou as ações da PGR no Supremo:
Lúcio Campinho, defensor público.
Lúcio Campinho, defensor público.
— A Defensoria Pública não é advocacia, e os defensores públicos não são advogados. A Defensoria Pública é instituição autônoma, com regulação própria pela Constituição Federal e distinta da advocacia, seja pública ou privada. Recentemente, o próprio STF reconheceu a autonomia da Defensoria Pública e decidiu que é inconstitucional a exigência de inscrição nos quadros da OAB às defensoras e defensores públicos — explica Campinho.
Com a missão de acolher a população mais vulnerável, a Defensoria Pública é o órgão que possibilita o acesso à justiça para pessoas que não teriam condições de buscar seus direitos. Com o poder de requisição é possível ajudar as pessoas de forma mais igualitária, considerando que muitas vezes elas estão enfrentando o Estado ou empresas privadas com muitos mais recursos.
A quem interessa o enfraquecimento da Defensoria Pública?
Falando ao blog, Campinho faz uma indagação importante; “afinal, quem teme a Defensoria Pública?”. E reforça quais interesses são afetados quando a atuação do órgão é efetada:
— As requisições são legais e defende direitos dos que precisam da Defensoria Pública. Nas causas de pessoas comuns contra pessoas comuns, as requisições pela Defensoria Pública não são questionadas. As preocupações vieram quando a atuação da Defensoria Pública atingiu as grandes corporações, inclusive econômicas, empresas muitas vezes multinacionais e atos arbitrários do poder público. A Defensoria Pública ser impedida de requisitar é impedir que quem é pobre economicamente possa se defender e ser defendido.
A Defensoria também exerceu e exerce um papel fundamental no enfrentamento ao Covid-19. O órgão, além de tratar questões como a posse de quem foi aprovado em concurso e não foi nomeado, de quem quer regularizar o imóvel, foi vítima de violência, ou não conseguiu ser matriculado em escola pública, é muito demandado para requisições que tratam de saúde, como medicamentos, exames e cirurgias.
Em um momento que mais grave pandemia de nossa era assola a população, levando à morte mais de 610 mil pessoas em números atuais, enfraquecer a Defensoria torna-se não apenas uma aberração jurídica, que afronta a constituição, mas também um insulto aos direitos humanos.
“A Defensoria Pública precisa requisitar certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos na defesa do direito coletivo, como implantação de núcleos de terapia renal substitutiva, além de obrigar os poderes municipais a apresentarem plano de contingência no combate à COVID-19 e a fornecer fórmulas nutricionais às crianças carentes que precisam garantir o atendimento odontológico nas UPAS, dentre várias”, finaliza Campinho.
Em um momento de calamidade social, sanitária e econômica, instituições como a Defensoria Pública devem ser fortalecidas; não o contrário. Em uma realidade de mais de 14 milhões de desempregados, mais seis milhões de desalentados, e uma histórica e brutal desigualdade de renda e acesso à serviços públicos mesmo entre quem possui emprego, retirar a requisição como atributo da Defensoria Pública é excluir a única possibilidade de defesa legal ao menos metade da população brasileira.
 
 
 
 
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com