Autoimagem
29/07/2025 | 02h02
Imagem gerada por Inteligência Artificial.
Logo depois de vender seriedade, gargalhou. O barulho da risada gorgolejante rompeu a sobriedade com que o público formava suas ficções mentais, mas deixava no ar a dúvida de quem era a figura a gargalhar. As roupas expressavam que quem as vestia tinha algum tipo de preocupação estética, assim como os cabelos - milimetricamente penteados - fio a fio divididos no alto do cocuruto. Via-se triângulo retângulo, mas queria mesmo era ser escaleno. Então a risada desleixada repartia a formalidade em uma imagem dúbia e, ainda assim, categórica. Porque, antes de si, a imagem era uma convenção do outro, uma espécie de contrato a partir do qual se cria uma série de expectativas de ações desaforadas, que se encontram fora de quem é, mas dentro da imagem estampada, vendida como pôster a ornamentar o rol dos julgamentos mentais. Então silenciou a gargalhada, retirou de cena o sorriso, e todos ao redor voltaram a crer que se tratava de uma figura respeitável, que o riso - tão próximo da primitividade simiesca - era algo pontual no emergir das ideias. Só então continuou, olhos sérios, vidrados nos ouvidos atentos, e resolveu quebrar a quarta parede tijolo por tijolo levantada entre quem era e quem pensava ser. Em frente ao espelho, notou que construía sua própria imagem diante do outro que havia em si.
 
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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Vários dias em um dia
28/06/2025 | 02h35
Imagem gerada por inteligência artificial.
Você acorda com uma disposição incomum, resolve sair de casa mais cedo para tomar um café na padaria da esquina enquanto vê as pessoas passando de bicicleta rumo ao dia inteiro. Café acabado, caminho do trabalho. Quando nota, já é hora do almoço. Mais um telefonema antes de mais uma garfada, bebe uma água e volta para adiantar as demandas e ver se sai mais cedo. Hoje, pelo jeito, vai ter é que ficar até mais tarde. Chega em casa, já anoiteceu faz algum tempo. A pedida é se jogar no sofá porque - até parece - o dia rendeu.
Você acorda. Zero disposição. Vontade de nem olhar pra xícara do café que a máquina fez depois que você tateou o botão. Talvez a camisa de ontem caia bem, tanto faz. Digitar mais uns relatórios. Uma reunião e outras ligações de sempre. Hora do almoço. Chega uma mensagem que dá vontade de lançar fora o celular. Passa a tarde vagarosa pela penumbra que invade a persiana empoeirada. Chega em casa, é noite recém-caída. Melhor ir direto pra cama antes que outra ligação antecipe o amanhã.
Você nem acorda e já sente que o despertador está por tocar. Só então força pra abrir os olhos. A energia está média, até surpreende. Resolve ir pro trabalho ouvindo música. Quando chega, já vai direto pra cozinha tomar mais um café. O dia passa rápido, sem grandes intercorrências. Chega em casa, resolve ver uma série, mas acaba dormindo antes dos dez minutos.
Você acorda, não precisa sair de casa. Seu trabalho todo está no notebook aberto desde ontem na mesa da sala. Já recebe uma ligação da chefe impaciente porque você não viu as mensagens enviadas às cinco da manhã. O café pode esperar. Quando vê a hora, já é a pausa para o almoço, mas ainda não pode parar, só mais vinte minutos. Entra em outra reunião. Começa a anoitecer quando você finalmente vai comer alguma coisa enquanto rola o feed do Instagram para ler variedades vazias de vidas mais interessantes que a sua.
Você não dormiu. Tem uma apresentação importante para hoje e tudo precisa dar certo, pois o resultado do projeto depende de você. Quando chega, a sala de reuniões está vazia, pois a chefia decidiu que havia algo mais importante do que o cronograma que você apresentou desde o ano passado. Controla a raiva e vai cumprir a nova urgência recém-inventada por alguém que sequer sabe sua função na empresa.
Você acorda, vai ao banheiro lentamente e toma um café na mais plena calma. Seus subalternos - colaboradores - devem estar trabalhando enquanto você finge se importar com as demandas do dia. Chega na empresa quase na hora do almoço, óculos escuros, reclamando do cansaço e do calor que faz lá fora. Toma outro cafezinho para ver se acorda e pergunta qual é a agenda de hoje. Nada? Então resolve, antes de sair para almoçar, fumar um cigarrinho na área externa enquanto os outros adiantam um serviço que você ainda não sabe do que se trata. No fim da tarde, surge um imprevisto. Mandaram mensagem chamando para tomar um chope vendo o pôr do sol. O dia foi duro. Você chega em casa direto pro chuveiro e vai dormir explodindo de dor de cabeça.
Alguém te acorda. Você pergunta o que tem para o café e julga se vale a pena levantar da cama. Resolve aguardar o almoço enquanto liga a TV para ouvir amenidades vindas de um papagaio verde. Pelo celular, seu dia está traçado antes mesmo de sair da cama: a galera está chamando pro cinema. Você volta tarde da noite depois de andar por aí, mas ainda tem disposição para ler um livro enquanto toma um vinho na sua sala, onde pega no sono depois de um ou dois capítulos.
Você nem sabe que acordou, mas já acionou o piloto automático antes mesmo de abrir os olhos e cumprir a rotina que lhe foi ofertada. Ou você pôde escolher qual é a sua?
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
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Enquanto não
07/12/2024 | 01h00
Imagem gerada por inteligência artificial.
Clarão toma a rua. A fumaça começa, pouco a pouco, a invadir minhas narinas. Fecho as janelas. É provável que o vizinho incendiário esteja queimando lixo outra vez. Não ligo.
A claridade parece aumentar. Resolvo olhar pela janela. O fogo já toma parte significativa da árvore frontal à minha casa. Alguém vai fazer alguma coisa. Logo passa.
Na televisão, dezenas de focos de incêndio são registrados pelo país. Troco de canal. O que acontece em outra cidade não me afeta.
Ouço o vizinho gritar algo incompreensível. Após fingir que não escuto, dou ouvidos para me manter informado. O fogo alcançou o terreno baldio, ameaçando as casas ao lado.
Agora que as chamas já tomam o telhado da primeira casa, os bombeiros chegam para conter o avanço da queimada pela vizinhança. Alguém deve ter ligado.
Sinto calor. Ligo o ar condicionado enquanto observo o frenesi ganhar a rua. Luzes, gritos, clarão crescente. Coisa boa para um dia pacato nessa rua morta que quase não vê carro.
A árvore, escondida pelas chamas, parece não estar firme. Espreito como quem se delicia com um acontecimento inesperado, pensando no que virá a seguir. Os galhos desabam e tocam a rede elétrica. Ainda estou com luz, não vejo problema.
Abro o aplicativo. Peço uma pizza. O tempo passa. O interfone toca. Vejo que o caos ainda toma conta da rua. O fogo ainda clareia a noite. Como o homem se recusa a subir para trazer meu pedido, então preciso descer para pegar a comida. Aproveito para espiar os bombeiros, cercados pelos fofoqueiros que assistem ao derretimento do lado ímpar.
Do meu lado, nada de novo. Subo. Estou com fome. Sento no sofá e como metade da pizza de uma só vez. Depois, deixo o prato de lado e me espalho aqui mesmo. Acendo um cigarro. Controlo o fogo que queima lá fora entre dois dedos.
Pego no sono enquanto o fogo ainda não é problema meu.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
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Como se pudesse voltar
02/11/2024 | 11h56
Imagem gerada por inteligência artificial.
No fundo da loja, largado pela força do vento que o levara, um envelope jazia no vão entre o armário e a parede.
 
Não fosse um armário daqueles que nunca são tirados do lugar, não fosse uma parede tão pouco requisitada a ponto de nunca ser vasculhada com esmero, talvez o esquecimento não fosse.
 
A pilha de correspondências recebidas era um amontoado de propagandas talões boletos carnês cartas bilhetes, todos em formatos papéis cores selos de diferentes tipos, deixados sobre a mesa, sob o vento que entra pela vidraça esquerda sempre que a árvore da rua range.
 
Papel perdido, informação pretérita. A briga ficou por isso. Um acusou. O outro não respondeu - exceto pelo envelope lançado pelo vento. O dito foi consumado pelo suposto não dito.
 
E a palavra escrita, não lida, esquecida, fez cristalizar as convicções, pois o silêncio, quando não acompanhado, é um intransigente catalisador de fissuras.
 
Suposições para cada lado, cada um tem certeza de que sabe quando tudo se perdeu - na lacuna diante da acusação ou na indiferença diante da resposta.
 
Como um pequeno traço escondido, capaz de resolver todo o enigma, a carta permanece irresoluta a amparar teias de aranha e tufos de poeira pouco a pouco inseridos naquele diminuto espaço, qual peças tétricas que se amontoam para contar a história de uma fase.
 
A carta, por mais fina que fosse, demarcava o afastamento provocado pela alegoria do destino. Para ambos os lados, melhor assim.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Depois da curva, o esquecimento
09/03/2024 | 02h29
Fonte: Pixabay.
Virou a esquina justo naquele instante.
 
Pé brusco no freio, impacto contra o volante, olhares desesperados, estrondo no chão.
 
O prédio que caía no meio da rua poderia ter caído sobre seu carro. Poderia, sob os escombros esquecidos, ter virado apenas um pedaço de tijolo ou concreto ou madeira ou janela. Uma coisa que se mistura para erguer uma construção.
 
Mas estava ali, pensando no que poderia ter acontecido no relance instantâneo do que passou, ainda na névoa poeirenta que vendava a rua, com o estrondo que se dispersava, mas que permanecia a ecoar pelos arredores encobertos.
 
Caiu a história de uma família. Caiu um pedaço do centro da cidade que era também centro de negócios e memórias e interesses e atenções e trajetos. Caiu um pedaço - caco sobre caco - dos tantos prédios que formam a cidade. Caiu mais que um tijolo, uma viga, uma janela carcomida. Caiu uma história inteira que só o Google Maps vai contar, congelado no tempo passado, borrando rostos e placas, como se aquele prédio fosse uma espécie de realidade virtual, dessas efêmeras que passam quando rolamos o feed.
 
Pessoas se amontoavam para fotografar. Sensacionalistas filmavam para compartilhar nas redes sociais. O prédio caído era, antes de memória, um clique passado. Desses que esquecemos depois de clicar.
 
Atrás, o trânsito começava a ficar tumultuado. Carros se enfileiravam enquanto pessoas saíam para ver o que estava acontecendo imediatamente após a curva. Mas aquele primeiro carro permanecia na perplexidade, imóvel, como se tivesse sido atingido pela memória de quem colocou suor e força para construir a obra decadente.
 
Dois guardas surgiram para tentar organizar o que se passava. Começavam a afastar os curiosos, com medo de um novo desabamento. Tudo dependia de laudos, inspeções, palavras da defesa civil, fechamento da rua para retirada dos escombros, interdição da área para avaliação dos prédios laterais.
 
Passada a perplexidade do solavanco, um pensamento prático. Não perdi nada com isso, não era meu. Deu de ombros enquanto subia com o carro na calçada indicada pelo guarda e ia seguir sua vida. Deixava ali, porém, um importante capítulo da casa que não perdera só porque não habitava.
 
Mas o esquecimento, talvez ignorasse, também é uma forma de perda.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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Arredores
27/01/2024 | 01h41
Fonte: Pixabay.
Aqui, detrás desses painéis que não te permitem me enxergar, dou as últimas pinceladas nas imagens para as quais pretendo olhar pelo resto dos meus dias - não que sejam muitos, mas são tudo que tenho.
 
Aproveitei para, numa pausa entre a observação e a mistura de tons, relatar o que faço como forma de explicar para mim mesmo os anseios por trás dessa que já considero minha principal obra.
 
VanGogh pode ter retratado a si mesmo, Michelangelo pode ter expressado a divindade, Picasso pode ter dado forma ao indizível, mas eu pinto para compor o que desejo vivenciar.
 
Não me refiro à imaturidade de pintar meus desejos ou paixões juvenis. Já passei disso há anos. Na verdade, falo de pintar minhas ficções pessoais, com as quais convivo e nas quais acredito a cada amanhecer.
 
A ideia de me dedicar a isso surgiu quando passei um tempo na casa do meu irmão, podendo olhar de perto a rotina da família e, em especial, do meu sobrinho mais novo. Parei para ter uma conversa com ele, saber de suas questões particulares e de sua formação, ter um contato com a juventude, mas fui surpreendido com uma realidade paralela.
 
Ele, assim como o restante da família, tinha uma perspectiva distorcida de acontecimentos históricos, descobertas científicas e até mesmo de fenômenos da natureza. Suas convicções chegavam a níveis de creditar fatos singelos ao divino ou mesmo explicar coincidências com teorias conspiratórias.
 
Faz alguns meses, saí de lá para procurar um canto e viver sozinho. E fiz isso convicto de que algo faltava em minha vida. Passar quatro décadas me dedicando a ilustrar, pintar e projetar murais fez com que eu nunca olhasse para o que havia de cor dentro de mim.
 
Se bem que, devo dizer, eu me encontrava simbolizado em cada pincelada que dedicava durante os meses de execução de um trabalho. Mas nunca tive algo meu, voltado para mim. Então resolvi fabricar meu próprio ópio, modelar a ficção absurda com a qual convivo em meus pensamentos e dar, enfim, uma explicação para tudo que fiz até hoje.
 
Aluguei este cubículo que me leva quase toda a aposentadoria e dediquei os últimos meses a idealizar o meu lugar nos painéis que agora me cercam. Penso, olhando agora, que pintei uma espécie de deserto, no qual sou eu mesmo o escaldar do sol e o refletir da lua, sou o centro.
 
Estou cercado de uma imensidão que pode ser infinito vazio ou abastado preenchimento, depende do dia em que observo. Nunca pisei num deserto nem nunca me detive a pensar em um, mas não havia outro motivo para esses painéis que não fossem tornar acessíveis os grãos de areia - ora cortantes como vidro, ora macios como flocos de espuma - que eu trazia em mim.
 
E assim, a partir dessa mensagem que escrevo antes mesmo de concluir as pinceladas, explico por que me isolei de todos e resolvi viver na misantropia da reclusão: tenho um deserto inteiro a percorrer todos os dias, às vezes em jejum, às vezes em um oásis. Foi essa a realidade em que escolhi acreditar e, nela, você me encontra enquanto lê estas palavras.
 
Você já encontrou a sua?
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
A partir de 2024, escreve mensalmente no blog Extravio.
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Com atraso
02/12/2023 | 12h19
Como se dia fosse, desligou o motor – faróis apagados, lua alta no escuro denso -, abriu a porta sem olhar se vinha um carro repentino e foi até a calçada como se dependesse daquilo.
 
Não ligava para a madrugada alta nem para as poucas horas até o início do expediente de entregas entre bairros. Levava, naquele turno extra, um envelope que não passara pelo centro de distribuição. Era uma carta pendente há muito.
 
Mas quem manda uma carta nestes tempos em que envelopes no correio trazem apenas dívidas, negativações, avisos de corte, notificações judiciais?
 
Depositou lentamente o envelope como se esperasse uma reação imediata, ouvindo o solene ruído do papel ao dar com o fundo metálico da caixa de correio. Estava feito, sem volta e talvez até sem o que esperar.
 
Dia seguinte, a cidade acordava com os baques das engrenagens a atritar os dentes em pleno asfalto, e o envelope foi tocado. Com alguma curiosidade, o lacre sutil foi rompido com a passagem das pontas dos dedos.
 
Dentro, uma folha em branco, mas não por completo: ao rodapé, constava uma assinatura, feita às pressas, com letra de forma, revelando um nome próprio, uma identidade até então resguardada em tantos anos. Agora, sabia quem era.
 
Olhando o papel em branco, chorou.
 
Afinal, antes mesmo de uma palavra lançada, pode ser o silêncio o grande responsável por dizer.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Aposentadoria
18/03/2023 | 10h46
Fonte: Pixabay.
Na ponta do nariz, a fina armação repousava sobre a quina das orelhas do homem. No início do dia, mascarados os cansaços da noite anterior, pequenas trincas quase invisíveis permeavam toda a xícara branca amarelada pelo café cotidiano: hábito tedioso a se repetir.
 
Ao lado da xícara, em cima da toalha plástica que grudava a mão num toque-instante, estava o aparelho substituto do velho jornal de domingo lido demoradamente ao longo de toda a semana, todos os dias, naquela mesma cadeira. Tudo enquanto a mulher ainda dormia um pouco mais.
 
A pequena televisão falava sozinha com a pia, a mesa e as cadeiras desocupadas enquanto o homem ali não estava mais para ouvir os acontecimentos futuros narrados quando já pretéritos.
 
Dentro do carro, ele cumpria trajetos não programados ao longo do dia, levando passageiros e reclamando da vida do trânsito do tempo do preço da gasolina do sujeito que, na sua frente, parou sem sinalizar e quase bateu.
 
Sentia seu peso espalhado pela cadeira como se estivesse em casa, fora das necessidades da rotina, usufruindo das décadas trabalhadas com as contas pagas. Mas precisava sair para ganhar o que o salário não pagava até o final do mês.
 
Da televisão, poderia ouvir a notícia de que a avenida principal, fechada em razão de um grande acidente, não seria aberta tão cedo. O lugar era próximo a ponto de a casa vibrar com a explosão que levou o posto os carros as bicicletas o cachorro passante os pedestres desavisados, fazendo voar a bomba de combustível que, visor esfacelado, ainda queria marcar o consumo instantes depois.
 
Ligou o rádio antes de virar a chave. Sem saber que seria a última, deu a partida. Saiu de sua garagem virando à esquerda. Manobrou o carro até entrar na fila. Andou de pouco em pouco até chegar na bomba. Pediu que o frentista completasse o tanque. Acelerou o coração quando ouviu o estrondo. Perdeu a consciência no clarão espontâneo. Deixou pra trás as necessidades as contas as memórias não vividas os minutos a mais na cama como dívida em aberto que o trabalho não permitiria quitar.
 
Já não havia carro nem homem nem celular nem óculos sobre o nariz quando ele se via sentado em casa – memória idealizada no devir– a expandir seus passos depois da explosão ocorrida enquanto abastecia seu carro. Sua breve retrospectiva não acontecida gerava imagens enquanto não podia se perguntar por que não dormira um pouco mais.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados, quinzenalmente, no blog Extravio.
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Há vagas
18/02/2023 | 01h28
Fonte: Pixabay.
Ela fez a curva logo depois de descer a ponte. Através das décadas, o rio ainda se mantém a dividir a cidade em metades desiguais. Logo na descida, a igreja resiste – concreto e história – a narrar o povoamento nascido ao seu redor.
 
A atual situação desse espaço de terra teve início, eu bem lembro, com um visionário que alegava não compreender a função daquele tanto de prédio velho e inútil para a cidade. Esse terreno dá um estacionamento dos bons, garantia o homem à frente do seu tempo.
 
Espaço apropriado pela propriedade privada que se sobrepõe à memória pública. Muito eu posso relatar sobre o que vi, mas resolvi me ater à mulher que veio do outro lado do rio.
 
Mais adiante, na avenida principal, ela se deparou com um vazio que toma conta dos cantos: o que outrora historiava as esquinas agora é escampado sem chão. Nem os prédios mais robustos resistiram à inovação. A alegação era que o centro comercial estava à míngua porque as pessoas não tinham onde estacionar, mas ninguém percebia um sutil movimento: as pessoas preferem não ter que sair de casa, já que podem encontrar tudo num aplicativo.
 
A percepção disso, no entanto, chegou tarde: as construções já tinham sido demolidas – ou espontaneamente incendiadas - para dar lugar a modelos de negócio em espaço aberto, sem custos estruturais e com máxima automatização, nada que pudesse resolver a penúria do centro que recebia milhares de pessoas no início do século XXI.
 
Agora, raras são as pessoas por aqui. Ela, por exemplo, não viu um único passante a caminhar sob o duplo sol que invadia o céu refletido nas calçadas cinzas. Sem árvores, sem prédios, tudo cimentado para contar a história do que um dia nunca mais, dando espaço a um futuro movido pelo lucro em detrimento do passado.
 
Em tempos digitais, nada se faz de perto: não há comércio, agências bancárias ou escritórios nesses arredores. Nem teatros e templos foram poupados, restando apenas uma construção para cada necessidade presencial remanescente – o mínimo de contato humano possível.
 
As esquinas são inexplicáveis dobras no vazio a contrastar com os bairros distantes, por onde ainda perambulam pessoas. Aqui, porém, o antigo comércio deu lugar a um projeto de tudo abaixo para causar renovação, quase não poupando a igreja central. Shopping garagem, disseram que ficaria incrível no lugar. Sorte que o bispo embargou e conseguiu preservar a igreja – agora ilhada por estacionamentos.
 
A mulher – assim mesmo, inominada – manobrou o carro em uma das centenas de vagas ladeadas pelo centro histórico que se mantém nas placas turísticas obrigatoriamente colocadas. Isso porque a prefeitura certo dia decretou: artigo primeiro, cada estabelecimento pertencente à região definida como “novo centro histórico” deve afixar em sua entrada uma placa contendo as informações do imóvel demolido; artigo segundo, este decreto entra em vigor na data de sua publicação.
 
As tantas vagas, ironicamente, costumam ficar vazias, não havendo quem queira visitar esse espaço abandonado – estacionamentado – que nada tem a oferecer. Só um ou outro galpão se mantém erguido nas distâncias para distribuir os milhares de pacotes que chegam todos os dias para os bairros.
 
Ela estava ali na única função de buscar um produto em um desses galpões de distribuição após frustradas tentativas de entrega. Na saída do estacionamento – logo do lado de fora -, ela deu uma pausa para olhar a placa que falava de um prédio em estilo eclético datado do século XIX que ficava bem ali. Notei no olhar dela que o edifício tinha algo de afetivo para trazer à tona, talvez um parentesco, um nascimento, uma lembrança não vivida. Por isso ela sempre estaciona aqui, pela lembrança de um passado demolido.
 
Apagamento em cinza demarcado - vaga por vaga – a vagar pelos esquecimentos de quem nada é por não lembrar quem um dia foi: assim é o centro que conta a história pelo ouvir dizer porque, entre o velho e o histórico, priorizou-se o agora a urgir por interesses explorativos. Há quem veja lucro na destruição da memória – talvez por falta de lembrar quem um dia nunca foi.
 
Eu a acompanhei a cada curva espreitando pelas ruínas impalpáveis do que um dia chegou a ser mais que mera placa contando história. Notei a lágrima seca em sua bochecha quando voltou e releu a lápide de um edifício importante para ela. Inexplicável sensação de se identificar sem nada poder fazer.
 
Os antigos ainda me invocam enquanto lenda de um ser que vaga pelos descampados a estardalhar o ruído de destroços pela madrugada. Como parte das lendas que atravessam os imaginários, vago por esse vazio inumanizado pelo apagamento de seus traços e histórias. Por isso, sigo a guardar o que nem todos lembram e o que se forçam a esquecer.
 
Na derrubada aleatória do que se considera velho, a novidade pode ser apenas uma vaga (lembrança?) que não se deseja ocupar.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Melodia de despertar
13/05/2022 | 10h59
Foto: Ana Paula Lopes
A luz entrava em penumbra pela fresta deixada na cortina do quarto, e todos ainda dormiam prostradamente – o casal e a pequena Yorkshire com um ano de amabilidade recém-completado.

Numa repentina vibração, a tela do celular se acendeu e começou a tocar uma ligeiramente aguda e repetitiva melodia acompanhada pela trepidação do aparelho apoiado na mesa de cabeceira.

Com isso, arregalaram-se as duas pequenas jabuticabas da cadelinha Jolie, que se encontrava delicadamente espalhada no meio do edredom. A questão era que a música – incapaz de despertar o casal de imediato – causava na pequena uma euforia inquietante, com pulos e lambidas e leves impulsos com a pata dianteira para acordar seus humanos.

Eles, sonolentos pelo excesso de trabalho que varara madrugada adentro, acabaram por acordar com a alegria do entusiasmo de Jolie, incapaz de conter os impulsos diante daquela música. Ela pulava pelo edredom e lambia a mão, o braço e o rosto deles, alternando a euforia entre um e outro até que alguém acordasse e fizesse cessar o som e a animação.

As horas passavam com a exatidão pontual de sempre, e Jolie se detinha em sua pequena cama, no sofá da sala ou mesmo brincando com seus humanos, mas sempre a melodia tornava a ecoar pelo ambiente – por qualquer ligação ou alarme -, trazendo novamente à tona a euforia da Yorkshire.

Nada a deixava tão feliz e inquieta, apenas a melodia – e banana, é claro. Aquela atitude, além de amável, era também digna de curiosidade: por que nenhuma outra melodia a deixava tão feliz? Seria necessário fazer experiências musicais a fim de descobrir.

Tentaram Chico Buarque, Tom Jobim, mas nenhuma reação surgia. Resolveram ouvir Marcelo D2, Paulinho Moska e Lenine, mas nada: ela dormia, inalterável. Chegaram até a se expor aos extremos pelo bem da experiência, indo do pagode ao heavy metal, mas somente a melodia do toque padrão do celular tinha tão peculiar efeito.

Então os humanos – esses seres esfaimados pela explicação e pela utilidade de tudo – resolveram ir mais a fundo, levando a tal melodia para um entendedor de música a fim de tentar desvendar o mistério.

Junto com eles, a pequena Jolie deu ao musicista – um humano que a fazia tremer de medo, uma vez que não convivia com ela - sua demonstração de afeto melódico enquanto ele ouvia atentamente aquela música que nada tinha de especial.

Ele até tentou explicar, apontando aspectos sonoros capazes de despertar tanta alegria na cachorrinha, como algumas notas agudas e o ritmo. Mas não conseguia dizer o porquê de outros sons similares não despertarem suas emoções.

Chegou a dizer que lera estudos sobre a relação entre a música clássica e o estado de relaxamento dos cães, mas, definitivamente, não era o caso: era exatamente o contrário, uma música causadora de euforia.

A questão, Jolie guardava para si, estava muito distante dos estudos feitos e das rasas explicações humanas. Aquela música, todos os dias executada, despertava nela uma reação performática incontível, e ela precisava expressar – performar – muitos sentimentos com sua euforia.

Tudo porque aquela fora a primeira música ouvida na manhã seguinte ao dia em que seus humanos a levaram para casa, na noite do dia dezesseis de dezembro.

A melodia era seu hino de descoberta do mundo a partir da nova família. Algo inefável para os humanos, mas simplesmente exprimível em sua espontaneidade.
 
*Conto publicado originalmente na antologia virtual “Meu amigo bicho” (2021), organizada por Welington Cordeiro e Cristiano Pluhar, com a colaboração de diversos autores.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

rhbj@outlook.com

Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.