A polarização afetiva e as armadilhas coletivas
28/01/2024 | 12h47
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira

Não seria impossível — talvez tenha existido de fato — ver um vendedor de rua em qualquer capital brasileira expondo suas camisas de time de futebol em um varal, e entre elas estivessem camisas da Palestina e de Israel. O Brasil atravessa um tempo de polarização extremada e de pensamento binário, que mesmo sobre qual lado você está em conflitos no Oriente Médio são determinantes para formar identidades.

Vivemos, por vários motivos, o que está sendo chamado de “polarização afetiva”, que é quando as discussões e ideologias deixam de ser políticas e passam a ser formadoras de identidade e de pertencimento de grupos sociais. Em outras palavras: a depender da opinião sobre um tema, alguém pode ser aceito ou expulso de uma tribo, de um grupo de pessoas que radicalizaram suas posições.

Relacionar identidade e pertencimento com posições políticas, transformam o jogo democrático em algo tribalizado, essencialmente emotivo e afetivo, portanto. Podemos culpar as redes sociais, mas determinar qual raça ou tribo alguém pertence sempre foi um instrumento poderoso para o ódio, esse significativamente mais antigo que as redes.

A grande contribuição que o mundo virtual trouxe para esse jogo antipolítico foi a gamificação. Uma armadilha que traz ao manipulado uma sensação de prazer e satisfação quando oferece recompensas imediatas por cumprir determinada tarefa ou agir de determinado jeito. Os “likes” e “cliques” se multiplicam por posições radicais, ou por conteúdos que geram discórdia.

Os algoritmos não estão interessados em posições moderadas, principalmente políticas. Mas, de novo, não podemos culpar os instrumentos. O algoritmo responde aos estímulos dados pelas pessoas, que mesmo manipuladas, refletem suas próprias posições extremadas.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina. / Folhapress - Folha de S. Paulo
Essas armadilhas modernas são eficazes e massificadas. Instrumentos virtuais que utilizam-se de sensações e instintos humanos, esses universais. Portanto, mesmo que tenhamos consciência desses fatores, não é humanamente possível nos colocarmos alheios a esses estímulos, e possivelmente nos reconhecemos caindo em algumas dessas armadilhas.


Voltemos ao caso das camisas de time misturadas às predileções na guerra do Oriente Médio: embora seja um conflito importante, de contornos milenares e envolto em questões religiosas, assumir uma posição neutra ou mediadora não é aceitável nesse jogo antipolítico. Defender a solução de dois estados — Israel e Palestina — não é uma posição que gera “engajamento”. É preciso que você defina de que lado está, mesmo em uma situação de alta complexidade.

Além de permitir que mais e mais pessoas se engajem, estimular posições binárias permite que as soluções sejam de fácil entendimento. Ora, basta eliminar Israel para que o povo palestino deixe de sofrer com o genocídio. Ou, fortaleça o domínio de Israel na região e terá a paz.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. / Folhapress - Folha de S. Paulo

O maniqueísmo proposital estimulado pelas redes simplifica decisões complexas, a ponto de pessoas determinarem que um semelhante está do lado do bem ou do mal por suas posições políticas. Se alguém é a favor de dois estados no conflito Israel e Palestina, está do lado do mais forte, portanto configura-se como mal na visão de alguém pró-palestina. E vice-versa.

Política e conflito - Radicalizar os temas se tornou crucial para os políticos que buscam visibilidade e engajamento virtual, e é preciso que um conjunto de posições seja pré-estabelecido para que esse representante seja aceito. Temas como aborto, armas e vacinas se tornaram dogmas definidores nos últimos tempos, no Brasil. Não há meio termo, é preciso que um combo decisório seja apresentado pelo político. Ou se é contra, ou se é a favor.

Há pouco mais de 80 anos, o mundo assistia tropas alemãs marcharem pela Europa em nome de dominação ideológica, maniqueísmo, radicalismo e tribalismo. Há pouco mais de 135 anos o Brasil açoitava e comercializava pessoas por questões raciais. Fatos que, historicamente, foram "ontem".

Discursos de ódio podem ser ouvidos hoje em mesmo tom, assim como camisas e bandeiras tremulam em varais e varandas ideológicas, esperando que o próximo manipulado as comprem e as exponham como sua identidade. São armadilhas perigosas. E repetidas. 

Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos.
Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos. / Holocaust Encyclopedia



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ONU, reféns e ajuda humanitária: especialistas falam sobre a situação atual em Gaza
22/10/2023 | 07h02

“O conflito em Gaza escancara o que já se sabe há muito: o sistema global multilateral inaugurado a partir de 1945 com a criação da ONU não se demonstrou apto a manter suas promessas de paz e ordem na governança global através do tempo”.

Esse é um trecho da resposta de Letícia Haertel, mestre em Direito e especialista em Direito Internacional, dada a este espaço no Folha1 quando perguntada sobre um possível enfraquecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) caso não consiga assegurar um cessar-fogo em Gaza ou garantir a chegada de assistência humanitária. Letícia continua:

— O principal exemplo se dá no âmbito do Conselho de Segurança, concebido como instância máxima na garantia da paz e segurança internacionais, mas que já nasceu falho pela inclusão, na Carta da ONU, do poder de veto dos membros permanentes. Sua incapacidade de contribuir para a resolução de conflitos e garantir o respeito ao Direito Internacional, em especial, ao Direito Humanitário, em parte significativa dos conflitos após a Segunda Guerra como já havia se tornado incontestável no contexto da Ucrânia, bem como da situação em Nagorno-Karabakh e outras com menos atenção midiática.

No conflito atual na Faixa de Gaza, depois que terroristas do grupo Hamas fizeram o pior ataque em 50 anos contra Israel no último dia 7, o governo israelense convocou um número recorde de 300 mil reservistas e mantém bombardeios intensos contra Gaza.
Crianças em escola no campo de refugiados Al-Maghazi, no centro da Faixa de Gaza, onde seis pessoas morreram após um bombardeio de Israel (Folha S.Paulo)
Crianças em escola no campo de refugiados Al-Maghazi, no centro da Faixa de Gaza, onde seis pessoas morreram após um bombardeio de Israel (Folha S.Paulo) / Foto: Mohammed Faiq/AFP


Israel prepara uma ofensiva terrestre, e em movimentos recentes mísseis atingiram os dois principais aeroportos da Síria neste domingo (22), e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, disse que uma eventual frente de batalha aberta pelo grupo Hezbollah levaria "devastação" ao Líbano.

O mundo vê crescer o risco de uma conflagração regional no Oriente Médio, e os EUA, através do secretário de Defesa, Lloyd Austin, avisou que o país não hesitaria em agir para se defender na região. Os Estados Unidos são declaradamente a favor de Israel.

Enquanto a situação geopolítica da região se agrava, os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza tiveram suspenso o fornecimento de energia, alimentos, água, medicamentos e combustível por Israel.

— Para formar um corredor humanitário para Gaza, hoje a opção mais viável é pelo Egito, pela passagem de Rafah, por uma série de motivos, mas principalmente porque Israel não abriria suas passagens com Gaza, por uma questão de segurança, principalmente. Então a principal opção é pelo Egito, até porque existe a questão de que a ajuda entrando por Israel possivelmente não seria bem aceita pela própria população de Gaza. — disse Filipe Figueiredo, graduado em história pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do podcast Xadrez Verbal, também a este espaço no Folha1.
Ontem (21), após dias de impasses e disputas diplomáticas, os primeiros caminhões com toneladas de suprimentos entraram no território palestino, pela primeira vez desde o começo da guerra. Após um ultimato feito por Israel para que deixassem o norte, muitos moradores de Gaza estão aglomerados no sul do território, temendo o início de uma invasão terrestre pelas forças israelenses.

Apesar da entrada do primeiro lote de ajuda humanitária que aconteceu um dia após o Hamas libertar duas reféns americanas — Judith Raanan e sua filha, Natalie —, há muita resistência do Egito em formar o chamado corredor humanitário em Gaza.

O historiador Filipe explica que há mais em jogo:

Filipe Figueiredo
Filipe Figueiredo / Reprodução
— O Egito está disposto a fazer essa operação inclusive para ganhos políticos próprios, nós tivemos imagens de caminhões que entraram em Gaza recentemente e eles levavam artes com a bandeira egípcia e o rosto do Al-Sisi, que é o presidente/ditador egípcio. O Egito, que é um país que já ocupou a faixa de Gaza até 1967, não vai agir de maneira unilateral, até para não alienar suas relações com os EUA e Israel. Vale lembrar que o Egito não é aliado do Hamas, sendo um país que também vê o Hamas como ameaça, mas que precisa que Israel e EUA aprovem a entrada de ajuda humanitária.


Enquanto o Hamas vem utilizando civis inocentes como escudo humano, e constantemente acusado de cometer diversos outros crimes de guerra, Israel, por outro lado, vem sendo acusado de tentar promover uma limpeza étnica contra o povo palestino e também de crimes de guerra em Gaza.

A especialista em Direito Internacional, Letícia Haertel, explica como a ONU vem se posicionando sobre esse assunto:

— O Conselho de Segurança da ONU ainda não logrou adotar uma resolução compreensiva sobre a situação em Gaza, mas diversos outros órgãos e agências da ONU já se pronunciaram e identificaram a ocorrência de violações do Direito Internacional e do Direito Humanitário em uma base diária, clamando por um cessar-fogo. De forma geral, há uma condenação dos ataques do dia 7 perpetrados pelo Hamas e outras de suas práticas, como a tomada de reféns e execuções. A censura ao Hamas costuma ser acompanhada de uma inequívoca condenação de condutas por parte do Estado de Israel, como a punição coletiva contra a população palestina na Faixa de Gaza, a falta de discriminação de alvos e proporcionalidade nos ataques aéreos, a coação a deslocamento forçado sem fornecimento de abrigo seguro, a continuidade dos ataques aéreos ao sul da Faixa de Gaza mesmo após Israel ter indicado diretriz de deslocamento de civis para lá e a falta de condições para provisão de recursos básicos como água, alimento e suprimentos hospitalares, entre outros. É importante destacar, contudo, que a identificação de violações graves ao Direito Internacional pelo Estado de Israel nos territórios ocupados não é um fenômeno recente.


Na última quarta-feira (18), o Brasil conseguiu 12 votos no Conselho de Segurança da ONU, mas os Estados Unidos vetaram a proposta brasileira que pedia, principalmente, a criação de um corredor de ajuda humanitária para Gaza. Entre os membros do Conselho, houve duas abstenções — Reino Unido e Rússia —  e apenas um único voto contrário: dos Estados Unidos. Os cinco integrantes permanentes do conselho têm poder de veto, entre eles, os americanos.

— Tivemos uma demonstração clara da ineficiência do Conselho, com o veto dos Estados Unidos impedindo a aprovação da resolução apresentada pelo Brasil com grande concertação multilateral. A resolução condenava a violência contra civis e atos de terrorismo, demandava a imediata soltura de reféns, reforçava as obrigações do Direito Internacional aplicáveis, demandava a abertura de fluxo para provisão de bens e serviços essenciais aos civis em Gaza, demandava uma pausa humanitária para a entrada de agências da ONU e encorajava o estabelecimento dos corredores humanitárias e enfatizava a importância de conter o spillover (ramificação) do conflito pela região. Assim, as instituições internacionais multilaterais continuam sendo perigosamente enfraquecidas.

Reféns e ajuda humanitária - Neste domingo (22), um  segundo comboio de ajuda humanitária entrou em Gaza, de acordo com informações da mídia estatal do Egito. Foi permitida a entrada de 17 caminhões com alimentos, água potável e suprimentos médicos por Rafah, cidade palestina que faz fronteira com o Egito.

Ainda segundo informações vindas da fronteira de Rafah, mais seis caminhões-tanque com combustível também entraram em Gaza, essencial para manter os geradores de energia elétrica de dois hospitais no local.
Caminhão com ajuda humanitária fotografado dentro da Faixa de Gaza, após passagem pela fronteira com o Egito (G1).
Caminhão com ajuda humanitária fotografado dentro da Faixa de Gaza, após passagem pela fronteira com o Egito (G1). / Foto: REUTERS/Ibraheem Abu Mustafa


Ontem (21), porém, a facção radical Hamas afirmou que não vai discutir o destino de mais reféns em troca de ajuda humanitária, principalmente os militares capturados pelo grupo. O Hamas pretende usar os reféns como moeda de troca para que Israel pare com os ataques em Gaza.

Filipe Figueiredo também falou sobre a situação dos reféns e as dificuldades políticas na entrada de ajuda humanitária:

— Algumas questões são postas, e as principais são que uma pausa nos combates, e a própria ajuda humanitária fortaleceriam o Hamas, também por ainda termos dezenas, talvez centenas de pessoas tomadas como reféns dentro da faixa de Gaza, então como mandar ajuda humanitária com essas pessoas lá, pois ela pode servir exatamente como forma de barganha para a devolução delas. Além do parecer que essa ajuda humanitária transformaria o Hamas, não a população de Gaza, mas o Hamas como uma eventual vítima de agressão, sendo que tivemos os brutais atos terroristas do dia 7 de outubro. Esses seriam esses os principais empecilhos para a má vontade política em relação a entrada dessa ajuda humanitária.

Este domingo ainda foi marcado por manifestações em diversas partes do mundo. Na avenida Paulista, dezenas de pessoas levaram bandeiras em apoio à causa Palestina, e outras dezenas apoiavam Israel. Na França, cerca de 15 mil pessoas marcharam pelas ruas de Paris, no primeiro protesto em apoio à causa palestina desde o início do conflito entre Hamas e Israel.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

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