Recortes de um ano/eu velho
27/12/2025 | 11h32
Imagem gerada por Inteligência Artificial.
2025 parece, pelo menos pra mim, uma conversa dessas que você cisma em adiar, mas logo se depara com o momento do confronto. É uma sessão de terapia que, tão incômodo é o assunto, você liga em cima da hora para remarcar, dá uma desculpa, mas é logo atropelado pelos porquês.
Pela primeira vez, fui obrigado a pausar minha rotina em um momento que pedia muito de mim. O corpo e a mente não estavam na mesma sintonia. Chegou o diagnóstico. Ansiedade generalizada. Depressão. E precisei repensar as regras enquanto o jogo corria.
O senhor Inconveniente Inadiável reclamou lugar à mesa, e eu não pude negar, pedir para ele esperar um pouco para que eu resolvesse certa questão ou respondesse alguém no WhatsApp. Precisei calibrar a bússola antes de prosseguir. E isso levou tempo, parte do meu ano.
Ainda era maio quando eu dei o ano por desviado do caminho que eu pretendia, pois não estava na minha lista de metas para 2025 um processo de autoanálise que exigiria a abdicação de tudo ao redor. Então esse processo chegou sorrateiro e abrupto, dando sinais de sua iminência sem que eu pudesse ver.
E só agora, quase em 2026, vejo que esse trem, mesmo descarrilado, tomou a direção certa para seguir seu caminho. Eu devo essa nova rota à minha esposa, aos meus pais, aos médicos que me acompanham e aos amigos que estiveram ao meu lado - todos responsáveis por me guiar em meio ao nevoeiro.
Sem todas as vivências, talvez eu não soubesse ver que a beleza da virada de ano jamais esteve na pirotecnia ruidosa, na solidão serena ou mesmo numa viagem para caçar multidões, mas na liberdade de poder escolher exatamente onde se quer estar - peço licença, pois o clichê tem seu valor, especialmente nessas épocas de fim de ano.
Com isso, desejo a você um novo ano de muitas descobertas e de encontros irremediáveis, cujo único resultado é a profunda transformação.
Até 2026!
 
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor, além de atual presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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Manifesto ao FDP!
03/11/2025 | 05h42
Logo do 6º Festival Doces Palavras
O Festival Doces Palavras é um movimento cultural, mas também é um movimento de protesto - sua sigla não nega esse espírito crítico que pulsa desde a idealização seminal do FDP!.

Mas, para pensar sobre a importância desta sexta edição do nosso Festival, não quero falar de cultura, de identidade, de memória nem de representatividade. Quero falar sobre... gatos.

Não, eu não estou equivocado quanto ao tema. Definitivamente, não se trata de um simpósio veterinário sobre a vida de felinos indefesos, pelo contrário. Trata-se de uma reflexão que surge de uma expressão muito falada em nosso cotidiano.

Qual será o potencial de meia dúzia de gatos pingados? Para ser mais temático, eu preferiria gatos chuviscados, mas não quero perder a linha de raciocínio.

"Gatos pingados" é uma expressão que usamos para retratar, por exemplo, um grupo insignificante de pessoas, reunidas ou dispersas, mas que certamente não possuem qualquer influência ou relevância para mudar determinada realidade.
Será mesmo?
Lembro, em 2014, naquela Bienal do Livro de Campos, quando o saudoso utopista Hélio Coelho - com quem tanto aprendi - e o caríssimo utopista Vitor Menezes - com quem tanto aprendo - firmaram compromisso com Wainer Teixeira, então representante do poder público, a fim de realizar o primeiro FDP! no ano seguinte.
Aqueles gatos pingados se uniram para fazer um movimento ousado. Juntar a cultura literária e a cultura gastronômica de Campos para conceber algo feito por campistas e para campistas. Loucura. E, hoje, iniciamos a sexta edição do FDP!, não sem o espírito combativo que forjou o Festival.
Mas volto aos gatos pingados, tema central deste texto: o que seria de nossa sociedade sem eles? Um pequeno grupo que se debruça sobre utopias, muitas vezes, é capaz de dar significado e até mesmo concretude a elas.
Sem os gatos pingados, ficaríamos sempre nas mãos de felinos outros, que pensam serem donos do mundo apenas porque conseguiram uma pequena e temporária fatia de poder. Tolos.
Mal sabem que os gatos pingados, justamente por sobreviverem de suas próprias utopias, firmam suas patas nos sonhos e não arredam pé até conseguir. São insistentes esses bichos. “São”, não: somos insistentes.
Isso porque não há espaço para omissos nessa gataria. A realidade não nos permite deixar que uma falta de verba, uma ausência de cachê, um planejamento inexistente, uma desculpa esfarrapada forrada com palavras burocráticas ou mesmo a falta de vontade dos outros faça esmaecer o sonho. Pelo contrário: sonhamos mais alto. E nos agregamos ainda mais com tudo isso.
Quem diz que meia dúzia de gatos pingados é insignificante certamente não ouviu os miados insistentes na madrugada ou não imagina a agilidade com que podemos agir diante de injustiças.
Nosso grupo de aparentemente frágeis gatos pingados, que, até domingo, ocupará o Palácio da Cultura - abandonado há mais de 10 anos! -, nunca teve uma briga fácil, pois raramente possui qualquer pedaço de poder. Restam-nos, vira-latas, as migalhas que deixam cair os que se pensam poderosos.
Mas, das migalhas, fazemos um banquete, tanto que o FDP! não deixou de acontecer nem mesmo quando, em 2019, viraram as costas para nós às vésperas de nossa terceira edição.
Esta sexta edição chega com a urgência da sétima, pois cultura se faz com planejamento e com os olhos voltados para o que virá dando a devida importância ao que já passou. Isso quer dizer que não se faz um Festival do dia para a noite como quem tira um coelho da cartola (ou melhor... como quem tira um chuvisco do pote!).
Cultura se faz com métodos e políticas públicas estruturantes, o que exige empenho, boa vontade e pessoas qualificadas. E aqui estou eu, novamente, me desviando do tema deste texto.
Os gatos pingados que estarão no Palácio da Cultura a partir de hoje querem que você, leitor, faça parte do bando, pois, quanto mais gatos, melhor para fazer barulho ao pular de telhado em telhado enquanto pensam que somos apenas uma meia dúzia inofensiva.
Convido você a ocupar o Palácio da Cultura na sexta edição do Festival Doces Palavras, que começa neste dia 05 de novembro. E aproveito para dizer: a pré-produção da sétima já começou. Que venha 2027!
 
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
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Complexo de labrador
11/10/2025 | 05h00
Imagem gerada por Inteligência Artificial.
É parte da minha rotina verificar se deixei espaço suficiente na porta entreaberta para garantir a passagem da pequena Jolie, uma Yorkshire de pouco mais de trinta centímetros – com peso pena de dois quilos e meio – que é a dona do quarto, quiçá da casa onde eu moro.
O vão da porta tem pouco mais de um palmo, largura suficiente para ela atravessar a abertura com sua corpulência de camundongo sem tocar os pelos na madeira da porta.
Ao contrário, ela tem a estranha certeza de que não consegue entrar. Já a observei deitada perto do alizar da porta aguardando alguém que lhe desse passagem, pois aquela não seria suficiente. Isso quando não resmunga para que alguém a perceba mais rápido.
É o estranho caso da cachorrinha que, de tão pequena a ponto de caber em qualquer lugar, se julga grande demais para os espaços que frequenta. Daí cunhei, obviamente baseado no termo rodrigueano, que ela possui o complexo de labrador, quase uma megalomania que a impede de seguir adiante, pois é grande demais para isso.
Por minha falta de noção espacial, compreendo e até me vejo na pequena dona do meu lar, mas não posso deixar de correlacionar esse complexo com a vida real.
Há quem se julgue bom demais para competir com alguém; há quem se pense autossuficiente a ponto de cavar um fosso ao redor de si; há quem se ache gramático a ponto de dizer que “fulano escreve errado”, mas segue usando vírgula entre o sujeito e o verbo; há quem se sinta intocável porque tem proximidade com alguém que ocupa momentaneamente o poder; há quem se rotule dono do mundo inteiro por ter sido eleito para governar um país.
Você pode observar uma aparente contradição nesta teoria furada pelo fato de os labradores serem reconhecidos por sua docilidade e por seu companheirismo quando se relacionam com os humanos. Mas não se engane: o termo utilizado tem a ver com a corpulência típica da raça e com o fato de, diferentemente dos chamados vira-latas (cães sem raça definida), terem uma linhagem que lhes atribui alguma superioridade – pelo menos aos olhos dos humanos.
Sensato ou não, o Complexo de Vira-latas (cunhado pelo Profeta Tricolor em 1958) e o Complexo de Labrador são definidos pelo enorme vão entre quem sou e quem penso que sou, sobretudo em relação ao outro. E isso é uma construção cultural – quando se fala de nacionalismo – ou mesmo subjetiva – quando se trata de autoestima –, sendo ambas entrecruzadas na biografia do indivíduo.
No fim das contas, pendula entre a humildade e a megalomania o bom senso que cada um julga ter. Eu, por exemplo, escrevo achando que sou lido. Não venha me julgar – caso me esteja lendo –, pois tenho o direito de alimentar minhas próprias utopias.
Agora, terei que repousar a caneta. Tem uma microlabradora na porta querendo entrar.
 
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
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Ponciano e suas faces expostos no palco
10/09/2025 | 08h39
Foto: Ana Paula Lopes.
Só no último domingo, 07 de setembro, quando a primeira temporada da comédia musical "Ponciano de Amores Furtado" se encerrava, tive a oportunidade de ir ao Teatro de Bolso Procópio Ferreira para, da primeira fila, presenciar e aplaudir de pé esse espetáculo baseado na obra de José Cândido de Carvalho.
A querida e admirável autora Arlete Sendra e o também admirável diretor Fernando Rossi - ambos acadêmicos da ACL - levaram ao palco do Teatro de Bolso a leveza dos causos contados à porta de casa, com fidelidade ao linguajar meticulosamente retratado por José Cândido em seus contos, crônicas e romances.
O Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, vivido pelo primoroso Pedro Fagundes, é pura hesitação e casmurrice para demonstrar um coronel que só sabe fazer alarde da honra que herdou do avô Simeão.
Os demais integrantes do elenco - Katiana Rodrigues, Liana Velasco, João Velasco, Nathan Silva, Valdiney Mendes, Luciana Rossi, Almir Júnior, Geovane Crisóstomo, Renato Arpoador e Vânia Navarro - dão o tom de uma comédia que apresenta o Coronel por si mesmo e pelos olhos dos outros, com a imagem contrastante entre o que sente e o que mostra para os que o rodeiam.
A trama, delineada em torno das histórias causídicas de Ponciano, é cantada em diferentes ritmos, que ficaram a cargo do músico e compositor Renato Arpoador – que fez uma luxuosa parceria com a autora, Arlete Sendra, e, para a música de abertura, com Gualter Torres -, contando com execução do próprio Renato, da multifacetada Katiana Rodrigues e da instrumentista Vânia Navarro, que dão cadência ao andamento da história de acordo com o passar dos acordes.
Voltando à trama, considero que o ponto alto da peça se dá com a presença do advogado e político frustrado Pernambuco Nogueira - vivido pelo hilário Almir Júnior - e sua esposa Esmeraldina - vivida pela talentosa Katiana Rodrigues. O casal arranca ótimas risadas da plateia ao fazer críticas ácidas à política campista enquanto a esposa do candidato se insinua para Ponciano, de olho em suas posses.
Outro destaque é o figurino assinado por Luciano Moreira, que já demonstra seu preciosismo desde a entrada dos três músicos - trajados de acordo com Mouros e Cristãos da tradicional Cavalhada de Santo Amaro -, algo que se estende ao elenco e se evidencia nos figurinos de Ponciano, sendo um deles pintado à mão pela artista Andréa Barcelos.
A ficha técnica conta, ainda, com cenografia de Vanderlei Machado, fotografia de Patrícia Bueno, iluminação de Marco Antonio Almeida e produção executiva de Aucilene Freitas.
Ao expor as fragilidades da vida de aparências de Ponciano, Arlete Sendra nos instiga, com veia cômica afiada, a repensar os hábitos do povo de nossa planície, a hipocrisia de quem fala uma coisa e vive outra e os impactos psicológicos dessas contradições.
A autora, sem dúvidas, enriquece o texto de “O Coronel e o Lobisomem” ao trazer à tona sua leitura sobre a solidão amorosa do protagonista, mantendo a riqueza linguística popular e a precisão geográfica contidas na obra, que é um passeio pela Baixada Campista.
A peça, é importante dizer, contou com verba da Lei Paulo Gustavo, que viabilizou a execução de um espetáculo de tamanha qualidade com preços populares.
Ressalto que não sou técnico em teatro, mas, por ser um apreciador dessa arte e por trabalhar com literatura, saí do Teatro movido a escrever este texto com impressões sinceras de um espetáculo que merece ser divulgado Brasil afora.
Para quem não pôde comparecer na primeira temporada da peça, fique sabendo que a próxima apresentação ocorrerá no domingo, dia 21 de setembro, às 18h, na Santa Paciência - Casa Criativa, localizada na Rua Barão de Miracema, 81, no Centro de Campos.
Mais informações podem ser obtidas no Instagram @ponciano.furtado.

*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
**Texto publicado na coluna Folha Letras do dia 10 de setembro de 2025.
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Sensação de refazer
01/03/2025 | 03h41
Imagem gerada por inteligência artificial.
A íngreme encosta de panos estava sempre prestes a cair enquanto eu me via ao centro de um forte reforçado por cores que exalavam sabão em pó. Ao menor movimento, qual um gigante devastador, tudo mexia, ameaçando desfazer o trabalho de um dia inteiro. Era assim que eu acompanhava, ajudava, atrapalhava, o trabalho da minha mãe na véspera de uma viagem.
Olhos atentos em flagrante inquietação enquanto, em cima da cama, as pilhas de roupas dobradas se formavam e logo eram postas na mala. As mãos ágeis da minha mãe ditavam o ritmo de um dos serviços mais detestados por ela: fazer as malas.
Depois de crescido, já no centro dos afazeres, não tenho a mesma agilidade - nem a mesma precisão - que admirava em minha mãe. Eu dobro, desdobro, redobro, e a assimetria da peça mostra o quão vacilante é minha habilidade com os tecidos.
A sensação é de permanecer horas na mesma camisa, na mesma calça, até alcançar uma falsa perfeição inexplicável diante da banalidade de uma mala que logo será chacoalhada e revirada como se centrifugasse as roupas a seco.
Percebo no refazer um retrato do meu perecimento. É a vida que passa na peça de roupa dobrada. É o dente a ser reescovado. A louça novamente suja. O lixo a ser posto para fora. A gasolina que acaba a procurar um posto. A lâmpada que pisca exigindo troca. O cabelo que cresce à espera de uma tesoura. A conta que, sucessivamente, vence no mesmo dia todo mês.
A roupa e sua imperiosa necessidade de ser dobrada - para a mala ou para o armário - faz parte de um ciclo extenuante de busca pela conclusão que cisma em não acontecer. Fica só a sensação temporária do acontecido para, em seguida, reacender em obrigação.
Diante do cansaço, as passagens já sobre a mesa, olho as roupas separadas e me imagino jogado entre os tecidos para reviver a sensação de estar no forte com aroma de sabão em pó sob a proteção de não compreender o significado prático da palavra rotina.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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A árvore que eu via da janela
29/12/2024 | 01h37
Imagem gerada por inteligência artificial.
Aconteceu abruptamente, sem cerimônias. Ela estava lá, frondosa, alta, com as raízes eclodindo pela calçada da vizinhança. A casa do velho de poucas palavras tinha sua entrada coberta pelas folhas, que ele fazia questão de juntar e queimar ao menos duas vezes na semana.
Amanheci com o encontro entre as serras e a madeira. Vários uniformes andavam pela rua separando os galhos para jogar num triturador que jorrava pedaços de árvore para todo lado.
Deve ser uma poda para evitar que os galhos caiam com o vento, era o que eu justificava. Mas o simples corte de galhos atravessou a tarde, deixando a árvore sem qualquer resquício de verde.
Dia seguinte, o trabalho seguiu. A árvore está, desde então, reduzida a um toco que mal serve de banco. Se foram a sombra, as folhas espalhadas, o farfalhar que anunciava qualquer mínimo vento, as pequenas flores brancas que choviam em certos dias do ano e o rangido – qual porta entreaberta em filme de terror – que ditava a saúde da madeira.
Por um momento, pensei no primeiro encontro do jornalista com a mulher da casa abandonada, narrado em podcast, e cheguei a idealizar que, ao contrário, o vizinho que varria as folhas seria um defensor da derrubada da árvore, mesmo não tendo, aparentemente, nada melhor para fazer além de varrer e incendiar folhas na sarjeta.
Não havia, porém, nada a ser feito. A árvore estava reduzida ao chão. Argumentariam, é provável, que a madeira estava podre, com risco de queda iminente. A árvore que compunha o mundo que eu compreendia através da janela, na verdade, valia muito menos que um poste erguido a cada tantos metros de calçada.
Aquela árvore arrancada vorazmente numa tarde do meio do ano representava uma violência incompreensível contra a paisagem. Exceto para o vizinho que se irritava com as folhas. Exceto para o pedestre que tentava trafegar pela calçada. Exceto para a própria calçada, deformada pelas raízes incertas. Exceto para a árvore, incrustada no meio da cidade, isolada entre asfalto e muro, obrigada a dividir sua existência com quem a considerava descartável.
A árvore foi extraída no meio de 2024, e, ainda hoje, eu olho pela janela e vejo um vazio, sem compreender espacialmente a rua onde moro, sem compreender a falta de importância, sem compreender que a árvore - a falta dela - atravessaria a forma como eu enxergo minha própria casa.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
Aviso: Este blog retornará em fevereiro de 2025. Boas festas!
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Como identificar os extremos
19/10/2024 | 01h45
Imagem gerada por inteligência artificial.
Na sala de espera de uma clínica, dentre todos os lugares disponíveis para sentar e aguardar, resolvi escolher o assento mais distante, não apenas para evitar interações indesejadas, mas também para conviver com a ansiedade pré-consulta que teima em aparecer nesses momentos.

Meu pai me acompanhava nessa desagradável empreitada, e nós conversávamos para ocupar o tempo falando sobre qualquer assunto que não tivesse relação com exames ou consultas médicas.

Sem que eu me desse conta, sentou ao nosso lado um senhor distinto – camisa verde, maço de cigarro apoiado sobre a pasta de exames cardiológicos -, mas um tanto inconveniente.

Eu comentava com meu pai sobre as eleições municipais na capital paulista, especificamente sobre a notícia que atribuía o segundo lugar do candidato Guilherme Boulos a uma confusão de seus eleitores quanto ao número de seu partido, fazendo com que ele perdesse cerca de cinquenta mil votos.

Foi nesse momento que me dei conta da presença do paciente que poderia, dentre diversos assentos ociosos, não ter escolhido justo aquele ao nosso lado.

Ele resolveu interagir, primeiro questionando o que eu achava sobre o Boulos. Depois, querendo saber o que eu achava sobre o presidente Lula. Terminada a sabatina, ele já tinha uma conclusão. Olhou fixamente para mim e disse algo que, em todos esses anos, eu curiosamente não tinha ouvido – apesar de estar ciente da recorrência do termo:

-Então você é comunista!

Envaidecido diante da ignorância gritante dessa alcunha inédita para mim, resolvi usar meu direito de fazer ao menos uma pergunta:

-E o que é comunismo pra você?

Diante do que ouvi, de pronto, qual resposta decorada:

-É tudo isso que está aí.

Tentei, me esforcei, para considerar essa conceituação tosca, mas não suportei continuar a conversa com a pessoa que, em seguida, disse que a fonte do comunismo era a universidade pública.

Olhando para a memória desse momento, penso que o velhinho de aparência simpática, prestes a levar um esporro do médico pelo uso excessivo de cigarros, poderia ter me poupado de identificá-lo no extremo de sua ideologia cristalizada em meio àquela pequena multidão.
Isso serviu para identificar um extremo. Quanto ao outro, só fui ver quando, já em casa, me olhei no espelho e, pela primeira vez, lembrei que viram em mim um comunista. Logo eu, tão avesso aos extremos. Tudo culpa da universidade pública.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Metas de ano novo
30/12/2023 | 02h58
Fonte: iStock
É muito possível que você só tenha voltado a me ver neste mês de dezembro, em meio às festas, confraternizações, pausas nas atividades. Essa já vencida lista não esperava visita sua em outro momento do ano, nem mesmo para marcar os feitos de março, agosto ou outubro, meses em que as promessas estão diluídas nos compromissos cotidianos.
 
Eu seria ingênua se esperasse que você abriria o bloco de notas – ou estou em um grupo privado no seu Whatsapp? – para anotar que fez aquela tatuagem ou que apenas se matriculou na academia da esquina sem estímulo algum para ir.
 
Isso já vem de muito tempo. Minhas antepassadas, feitas à mão, algumas em papel de pão, outras em guardanapo de barzinho, eram deixadas no fundo da gaveta, passando por todo esse esquecimento e muito mais. Por isso eu consigo até me ver como privilegiada por existir nesses dias tecnológicos.
 
Talvez até guarde uma ponta de inveja das listas que ficam expostas o ano inteiro, afixadas num quadro do escritório ou na porta de uma geladeira, adornadas com um ímã decorativo. Mas me satisfaço com o celular onde estou quando olho para minhas primas, listas de compras, que têm uma função única e são jogadas fora ou excluídas no mercado mesmo. Eu, pelo menos, ainda sou renovada a cada fim de ano.
 
Esse sentimento mesquinho que acabei de expor diz muito sobre a minha razão de existir. Sinto que sou feita, muitas vezes, por ambição, cobiça ou inveja. Os itens que escrevem em mim são metas motivadas por uma constante insatisfação de ter, de poder ou de conquistar, raramente estão pautados no sentir.
 
Se eu pudesse, numa lista minha – que eu chamaria de filha -, escreveria que tenho como meta apagar essas promessas pragmáticas para deixar livre o tempo da contemplação e do nada. Nunca vi uma lista assim, o que me colocaria na vanguarda de mim mesma.
 
Enquanto nada disso é possível, fico aqui aguardando ver o item “ganhar na Mega” ser riscado. Essa meta é renovada anualmente, longe de sair de mim.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Quinze anos depois
04/11/2023 | 01h17
FOTO DE MARCELO GONÇALVES / FLUMINENSE FC
Se, assim como eu, você torce pelo Fluminense ou tem alguma simpatia pelo clube, este não é um sábado qualquer. Quatro de novembro guarda uma conexão direta com o dia dois de julho de 2008, pouco mais de quinze anos atrás.
 
Naquele ano, quando o time tricolor jogou sua primeira final da Copa Libertadores da América, eu tinha doze anos de idade, e o futebol era mais uma emoção inconsciente do que uma compreensão racional – não que hoje tenha mudado muito, mas o tempo me permite olhar o atual momento de forma diferente, sem dúvidas.
 
Na época, o fator social tinha um peso para mim: o que os onze jogadores do Fluminense faziam em campo impactava diretamente no meu dia seguinte, na escola, quando os assuntos eram focados na rodada do campeonato, e eu era zoado – ou me colocava na posição de zoar os rivais – de acordo com a atuação do time. Tudo acontecia como se eu e meus amigos fôssemos os responsáveis por vestir a camisa, entrar em campo, acertar passes e fazer gols.
 
Hoje, sem fatores sociais que me lembrem da adolescência – e isso não é um convite para virem me zoar depois de qualquer jogo -, sinto que muito permaneceu em mim nesses anos: o frio na barriga pelo início da partida, o sonho do título e a intuição de que é chegada a hora de ver meu time levantar essa taça.
 
Há quinze anos, durante a segunda partida da final, na fatídica noite de julho de 2008, eu acompanhava o jogo enquanto minha temperatura era monitorada de perto pelos meus pais, uma vez que eu estava febril – sem qualquer sintoma infeccioso aparente, com exceção da partida contra a LDU.
 
O Fluminense ganhava o jogo, numa noite iluminada de Thiago Neves, e minha temperatura seguia alta. Bastou que, já nos pênaltis, o atacante Washington perdesse a cobrança para que eu começasse a suar, restabelecendo minha temperatura corporal. O antitérmico, pasme, foi o apito final, apesar do resultado. Ainda agora é muito viva a imagem do goleiro adversário agarrado na rede do Maracanã, entre uma e outra cobrança de pênalti, como se lançasse sobre ela algum poder sobrenatural.
 
Neste sábado, apesar da lembrança, a sensação é outra, mas certamente é difícil ver prazer na partida de hoje. É jogo brigado, tenso do primeiro ao último apito. O exaurimento só virá quando tudo passar. Por enquanto, ficam as comparações, superstições, provocações e as tantas justificativas que tentamos encontrar para explicar a magia do futebol.
 
Quem vai ganhar, não sei. Só penso que o Flu tem mais time e joga em casa, mas vai precisar quebrar a retranca e a catimba dos argentinos, que jogam pelos pênaltis desde as oitavas de final. Se a história se repetirá ou se o dinizismo encontrará a glória, só saberemos depois das 19h.
 
Agora com a serenidade que esses quinze anos me permitiram ter, posso dizer que, feliz ou frustrado pelo placar do jogo, o resultado não vai alterar a história escrita pelo Fluminense na competição. O título é sonhado, mas ver tudo que o time construiu diz muito sobre o seu futuro e resgata muito de seu passado glorioso.
 
Para mim, fica a convicção de que, mais tarde, esses jogadores – do mais experiente ao mais novato - vão honrar os outros tantos que já vestiram a camisa tricolor, tendo a chance de lavar a alma dos que estiveram em campo naquela noite de 2008.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Uma desculpa e uma reflexão
29/09/2023 | 11h37
Fonte: Pixabay.
Meses passados desde a última publicação aqui no blog, volto com a sensação de novidade de quem perdeu a prática do que faz. Escrevo enquanto aguardo as últimas notas do curso de Letras serem publicadas no sistema, apesar de já ter comemorado o fato de que tudo acabou – pra ser bem exato, na última quinta, por volta das 20h, logo após uma análise comparativa do “Ensaio sobre a cegueira”, do Saramago.
 
Foi um último semestre intenso e, por isso, em branco no que se refere à criação de textos e a leituras não acadêmicas, o que serve de justificativa acanhada para o meu sumiço repentino deste espaço, “extraviando” minhas ideias para outros rumos.
 
Acontece que, enquanto eu escrevia os parágrafos anteriores, ainda sem saber ao certo o caminho que este texto poderia tomar, notei uma incongruência no meu relato: um (quase ex) aluno do curso de Letras acabou de justificar sua pausa na escrita em razão do curso, que é focado justamente em Língua Portuguesa e suas Literaturas.
 
Fato é que, em parte, é coisa minha esse negócio de suspender meu processo criativo enquanto me ocupo com a seriedade dos compromissos paralelos. Mas, para além das razões pessoais, sinto que foram raros os momentos de verdadeiro estímulo criativo ao longo da graduação, algo que, ao olhar em retrospecto, me surpreende.
 
Você pode pensar: é claro que não há esse tipo de estímulo, já que não é um curso voltado para a escrita e seus processos criativos, mas ao estudo analítico da língua e da literatura. Tudo bem, concordo.
 
Mas, sem qualquer pretensão de atribuir esse desestímulo ao curso de Letras do IFF, digo que não foram poucas, desde que entrei no curso, as vezes em que ouvi colegas falarem sobre a perda do prazer da leitura ou mesmo relatarem um bloqueio na escrita literária em razão do curso.
 
Reitero: não tem nada a ver com a qualidade da instituição nem com a abordagem dos gabaritados profissionais que compõem o colegiado de Letras: tendemos a desprestigiar a criatividade nos diversos níveis de ensino, independentemente de idade, curso ou instituição. Tanto é que raramente uma resposta criativa, capaz de revelar a ambiguidade de um enunciado avaliativo, vai ser pontuada por um professor que busca a gloriosa e objetiva resposta correta.
 
Isso diz pouco sobre o curso que fiz, mas fala verborragicamente sobre nossos processos pedagógicos de maneira geral. E é por isso que lamento por ter escrito, dentro das disciplinas do curso, apenas um poema para cada dez análises ensaísticas solicitadas pelos professores.
 
Os pragmáticos que chegaram aqui ao acaso podem dizer – cenho franzido e óculos na ponta do nariz – que escrever poemas não aprova ninguém em um concurso público e que dissertação de mestrado não se escreve em versos. Mas o que pouquíssimos vão dizer é que não se forma um profissional sensível apenas com a frialdade dos textos acadêmicos.
 
Me dói, portanto, constatar o que ouvi de alguns colegas, que se viram obrigados a substituir o prazer da leitura pela obrigatoriedade, assim como o estímulo criativo por respostas fundamentadas nos autores A ou B, pois é fato que a profissão e a academia tendem a nos afastar de certos processos empíricos – por razões óbvias, mas não menos lamentáveis.
 
Desses quatro anos, contudo, levarei os tantos ensinamentos e os grandes amigos que o curso de Letras me proporcionou. E digo que só aprofundei a imensa admiração que tenho pelo campus Campos Centro do Instituto Federal.
 
Por aqui, vou retomando a prática de experimentar com palavras, algo que eu espero jamais perder.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

rhbj@outlook.com

Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.