Não quero faca, nem queijo. Quero a fome.
Edmundo Siqueira 11/02/2023 23:42 - Atualizado em 11/02/2023 23:48
O dia já estava no fim quando tateava o celular em busca de notícias. Era uma sexta-feira, quando os jornais costumam divulgar os eventos culturais do fim de semana, e por isso acreditei que o nome de Adélia Prado aparecendo em várias manchetes tinha relação com isso. Ou alguma homenagem, pensei. Afinal, a escritora mineira — 87 anos, ainda morando em Divinópolis, interior de Minas — é um dos principais nomes da literatura brasileira, vencedora de prêmios importantes e dona de uma obra atemporal.

Mas as notícias não estavam relacionadas à cultura. E sim, sobre a falta dela. O governador do Estado em que Adélia nasceu — e onde um orgulho e cultuação mútuos são nutridos há tempos —, Romeu Zema, do partido Novo, foi agraciado ,enquanto concedida uma entrevista, com um livro da autora mineira. Uma coletânea com 150 de seus poemas. Zema, demonstrando falta de prática no (prazeroso) manuseio de um livro físico, agradeceu o mimo, e em sua primeira observação sobre a obra, disse ser “muito bonito”, e que “iria fazer bom uso”.

O entrevistador tentou informá-lo sobre Adélia, disse ser uma “escritora muito conhecida” e a chamou de “nossa”, parecendo orgulhoso da conterraneidade. Mas não adiantou. O governador, com pinta de executivo de empresa, segurou o livro com uma das mãos como se mostrasse o título para a câmera, e com a outra bateu o indicador na mesa, querendo reforçar o local que estava. E fez a vergonhosa pergunta, referindo-se à Adélia Prado:

Ela trabalha aqui?

O interlocutor gaguejou. Fez rodeios para tentar livrar a autoridade pública à sua frente do escárnio. Sem sucesso. O total desconhecimento do governador de Minas Gerais sobre Adélia virou notícia no mesmo dia. Para completar a esquete de humor trágico, o vídeo divulgado mostrava o entrevistador afirmando que Zema seria um leitor voraz. “Sei que o senhor lê muito”, dizia. Não tinha como saber que alguém que governa o Estado de Adélia Prado a desconhecia. Menos premonição e mais uma coincidência irônica.

Um dia antes, uma outra notícia, sem relação com a gafe — pode-se chamar assim, mas existem nomes mais apropriados — do governador mineiro, se mostrou mais uma coincidência, mas dessa vez sem ironia, porém muito emblemática. Uma tradicional livraria paulista fechava as portas. A Livraria Cultura, fundada em 1947, teve sua falência decretada como o golpe fatal de um processo de recuperação judicial que iniciou em 2018.

A Cultura representava mais que livros na estante e prateleiras promocionais. Trouxe ao paulista inúmeras memórias afetivas, com seu carpete quadriculado e o dragão que pendia do teto, e os bichos de madeira no chão que disputavam espaço com leitores, apreciando o folhear de uma obra literária — certamente Adélia Prado foi lida muitas vezes ali.
Livraria Cultura, SP.
Livraria Cultura, SP. / Reprodução


É claro que há outras tantas livrarias em São Paulo, outros bons endereços onde memórias de afetividade literária podem ser criadas. Onde, possivelmente, as obras recolhidas da Cultura estarão à venda em um futuro próximo. Esses pontos manterão viva a cultura. Mas não é possível assistir ao fechamento de uma das livrarias mais icônicas da maior cidade brasileira sem melancolia e tristeza. Quando permitimos que elementos da nossa memória — e da memória de uma nação — morram, estamos aceitando que um pouco de nós também se esvaia.

Até mesmo o juridiquês da sentença demonstra melancolia: “é com certa tristeza que se reconhece, no campo jurídico, não ter o grupo (proprietário da Cultura) logrado êxito na superação da sua crise”.
*
Adélia Prado disse, através de um de seus poemas, que o importante não era possuir os instrumentos para a realização de vontades. Era preciso ter vontade, desejo ou obstinação; ou mesmo teimosia. Para consumir um livro, por exemplo, seria preciso apenas servir-se das palavras. Livrarias e bibliotecas seriam apenas um meio, um talher para que pudesse alimentar o leitor melhor.

Ter — e principalmente criar — a vontade de conhecimento é uma missão coletiva, da sociedade. Em uma realidade extremamente desigual, popularizar os livros, construir escolas e ampliar o acesso à academia é uma forma de dar os talheres.

“Não quero faca, nem queijo. Quero a fome”, disse Adélia no poema “Tempo”.

Um governador possui todos os instrumentos necessários para saber quem escreveu esse verso, e ainda tantos outros que permitam salvar livrarias em dificuldades. Talvez lhe falte a fome.
"A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome".
Adélia Prado. 

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