Edmundo Siqueira
09/11/2025 00:19 - Atualizado em 09/11/2025 00:25
Zohran Mamdani em campanha pelas ruas de NY.
/
Reuters
Nascido em Uganda e nova-iorquino desde os sete anos, Zohran é como a maioria dos habitantes da Big Apple: apaixonado por comida de rua. Há nove meses gravou um vídeo para o YouTube (veja aqui) dizendo que Nova York vivia uma crise e, como a boca cheia com uma porção do prato que segurava, explicou que se tratava de “halalflation” (a inflação do halal).
Halal é uma referência aos alimentos permitidos pela lei islâmica (sharia), que devem ser preparados em rígidas regras de abate — segundo a tradição invoca-se o nome de Alá — e manuseio do animal, sem nenhum vestígio de carne de porco e álcool, entre outras adequações.
Zohran, muçulmano, entrevistou durante o vídeo alguns donos de food trucks perguntando sobre o custo dos alimentos, as taxas para vender nas ruas de NY entre outras dificuldades. Com desenvoltura de youtuber e discurso afiado, Zohran termina o vídeo comendo novamente e, quando perguntado pelo vendedor de rua como estava o gosto da comida, disse que estava “com gosto de 10 dólares, mas que deveria ser 8”.
Ele fez história na terça-feira (4). Com apenas 34 anos, Zohran Mamdani será o primeiro prefeito muçulmano de Nova York e o mais jovem em pouco mais de um século a governar a maior cidade dos Estados Unidos. Inimigo declarado do presidente Donald Trump, o deputado estadual democrata assume a gestão de NY a partir de janeiro de 2026.
Woke, imigrante, jovem e socialista
A eleição de Mamdani em uma cidade da importância de Nova York representa mais que uma simples vitória democrata. Ele consegue reunir em sua persona muitos dos elementos atualmente combatidos pelo presidente Trump, principalmente por ser imigrante e de esquerda.
No discurso de vitória, o prefeito eleito de NY deu um recado direto ao presidente: “Donald Trump, eu sei que você está assistindo. Só tenho quatro (turn up the volume) palavras para você: Aumente o volume!”. Eloquente e carismático, Mamdani acabou atraindo olhares do mundo inteiro, e se tornando uma esperança e exemplo para a esquerda — socialista ou não — que segue carente de lideranças assim.
Prefeito eleito de Nova Iorque, Zohran Mamdani, comemora vitória no Brooklyn Paramount Theater. Apelo jovem na retórica, cores, fontes e estilo da campanha.
/
ANGELINA KATSANIS / AFP
Embora se declare como socialista, Mamdani é, antes de tudo, woke— termo que surgiu na comunidade afro-americana, que originalmente significa “estar alerta para a injustiça racial”, mas hoje tem sentido mais amplo, algo como estar “consciente sobre temas sociais e políticos”. No Brasil, o paralelo importado da cultura woke é o identitarismo.
O prefeito eleito de NY é filho de pais cosmopolitas, sofisticados e altamente respeitados no meio acadêmico. Sua mãe, Mira Nair, graduou-se em Harvard e é uma cineasta festejada, ganhou prêmios em Cannes, no Festival de Veneza e foi indicada ao Oscar. O pai, o antropólogo Mahmood Mamdani, é professor de política e antropologia na Universidade Columbia, com vasta produção intelectual, diretamente relacionadas às arrojadas e progressistas propostas que o filho Zohran apresenta.
Nada mais woke, nada mais anti-Trump.
De NY para o restante da América?
Mamdani tornou-se cidadão americano em 2018, e portanto, pela lei americana, não pode ser eleito presidente. Contudo, pode exercer outros cargos importantes ao ponto de alterar o jogo político dos EUA. Porém, é cedo para afirmar.
Nova York é uma cidade-símbolo dos EUA. Uma metrópole moderna, de forte apelo ao poder financeiro e que consegue simbolizar o “sonho americano” e a “terra de oportunidades”, ideais caros ao povo norte americano. Mas ao mesmo tempo, também pelas oportunidades que traz, é uma cidade altamente cosmopolita, construída e vivida por imigrantes. E muitas vezes não representa o que pensa o restante do país.
“A vitória do Mamdani na última terça chamou atenção por ser um candidato com um perfil diferente do tradicional em Nova York. Nas ruas, dá para perceber que ele tem apoio em alguns grupos, principalmente em bairros com populações mais jovens e diversas, mas a cidade é muito heterogênea e as opiniões variam bastante”. Essa é Letícia De Nadai, capixaba que vive em NY há mais de 15 anos. Ela e o marido foram para a cidade americana após um convite de trabalho.
Letícia continua:
“Mas, no geral, há uma certa cautela. É um momento para observar como ele vai se posicionar e o que realmente vai conseguir colocar em prática. Em nível nacional, ainda é cedo para dizer que ele tem um protagonismo forte, mas certamente ele é uma voz importante dentro do que chamam de “woke culture” nos EUA. Nova York abraça isso bastante, mas o restante do país está mais dividido”.
Geração Z, aluguéis e ônibus gratuitos
Assim como o Brasil, os Estados Unidos são um país dividido. Direita e esquerda são definições possíveis para analisar a política, mas, sendo também válido para os dois, até pelo tamanho que ambas nações possuem, há muitas direitas e muitas esquerdas.
Mamdani está mais à esquerda na régua progressista dos democratas. No Brasil, ele estaria filiado ao PSOL, e os democratas seriam o que representa o PT hoje, inclusive em suas vertentes de centro e centro-esquerda. Entre as propostas principais do agora prefeito de NY estão ônibus gratuitos por toda a cidade, uma rede de supermercados públicos administrados pela prefeitura, congelamento de aluguéis e creche gratuita. Também pretende aumentar impostos sobre quem ganha mais de US$ 1 milhão.
A moradora de NY Letícia dá uma boa pista sobre o apelo dessas propostas na cidade, quando indagada sobre questões econômicas do dia a dia: “Sobre a economia, Nova York segue estável, mesmo com crescimento lento. O custo de vida continua altíssimo, especialmente aluguel e moradia, que é um problema constante. Muitas pessoas reclamam dos preços altos de moradia, transporte e alimentação”.
Zohran Mamdani e constante uso da culinária de rua nova-iorquina
/
Getty Images
A motivação de quem saiu para votar em Mamdani (mais de 1 milhão de nova-iorquinos) talvez tenha sido elevada por um desejo de mudança. “Há quem apoie as mudanças sociais, e muita gente está frustrada com a situação econômica e o custo pesado de viver na cidade. A vida aqui é intensa e vibrante, mas cheia de desafios financeiros para a maioria”, continua Letícia.
A campanha de Mamdani atuou fortemente de porta em porta. Segundo o próprio candidato, que utiliza um sistema online para cadastro e registro de ações, foram mais de 90 mil voluntários inscritos, que realizaram mais de 3,6 milhões de abordagens nesse sistema presencial e personalizado. A estratégia também passava pelo digital, com Mamdani publicando vídeos virais, chamando as pessoas para se engajarem, e pedindo que elas comentassem para receber informações da campanha. De forma retroalimentar, os apoiadores nas ruas geravam imagens para serem usadas nas redes.
Assim, Mamdani conquistou boa parte da “geração Z” (nascidos entre meados da década de 1990 e o início dos anos 2010) de NY. Letícia confirma:
“O apoio dos jovens é bem perceptível. Ele se comunica bem, fala de temas que interessam a essa faixa etária e usa muito as redes sociais. Existe uma identificação natural com essa forma mais direta e idealista de fazer política”.
Calor, pressão e poder
Se o Zohran dos vídeos de comida de rua terá capacidade de se concretizar em um líder político influente, o tempo dirá. A sua vitória eleitoral dá um frescor ao campo progressista de toda América, mas precisa provar que será um governo exitoso. As esquerdas andam sedentas de rostos jovens e narrativas autênticas como a de Mamdani, mas é cedo para saber se o frescor sobreviverá ao calor do poder.
Além disso, a cultura woke — seja nos EUA ou no identitarismo à brasileira — é também excludente e promove cancelamentos constantes em quem pensa diferente ou usa termos inadequados. É uma forma de política em que a linguagem importa tanto quanto as identidades e que deve oferecer respostas para além das bolhas criadas pelo próprio movimento e de suas batalhas morais.
Mas por ora, Trump ainda grita e Nova York mastiga. E quando a cidade que nunca dorme volta a ter fome de mudança, o banquete político dos Estados Unidos inteiro pode estar apenas começando.