*Felipe Fernandes
10/12/2025 07:50 - Atualizado em 10/12/2025 07:50
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Filme: "O filho de mil homens" - A literatura sempre foi uma matéria-prima primordial para o cinema. Duas artes que muitas vezes “dividem” espaço, outras se complementam e, algumas vezes essas mais raras, se misturam de forma tão orgânica que as fronteiras entre elas somem e tudo parece se tornar uma coisa só.
Curiosamente, é um filme lançado para o streaming que consegue essa proeza, em um longa de ritmo particular, muito diferente do que geralmente chega à Netflix, mas, sobretudo, um estilo de filme muito difícil de ser realizado nos dias de hoje. Uma obra acolhedora, poética, que abraça sua origem literária, mas transpira cinema em cada imagem.
Baseado no livro de mesmo nome de Valter Hugo Mãe, “O filho de mil homens” é uma daquelas adaptações ditas impossíveis. A obra do escritor português tem um estilo singular, com uma linguagem poética, meio experimental, que trabalha muito o fluxo de consciência em histórias com um olhar profundamente humano.
Com roteiro e direção de Daniel Rezende, o filme é uma adaptação que consegue transpor as principais características da obra original sem perder sua essência, provando-se extremamente cinematográfico. É um longa que transforma poesia em imagens, palavras em sentimentos, literatura em cinema.
Dividido em capítulos, o longa constrói um quebra-cabeça em uma narrativa não linear, que, aos poucos, mistura histórias e intercala personagens na construção de uma família afetiva. O filme tem uma linguagem suave, quase mítica, com tom de fábula, ainda que mantenha um olhar muito humano para dramas dolorosamente reais.
Com uma belíssima fotografia do paulistano Azul Serra, que reforça o aspecto intimista ao narrar a história daqueles personagens, a obra traz uma fotografia evocativa, que se utiliza de luz natural ao mesmo tempo que explora cores e texturas dos ambientes, construindo esse universo que parece no limiar entre o fantástico e o real. Essa beleza estética também destaca o design de produção de Taissa Malouf, que constrói um universo muito particular, extremamente importante nessa construção da poesia em imagens.
O filme tem um ritmo mais lento, com planos mais longos, muitas vezes contemplativos, que parecem saídos de um quadro. Era de se esperar um ritmo condizente com a obra, já que o diretor Daniel Rezende é oriundo da montagem, mas aqui ele prova uma evolução enorme como diretor.
Dono de uma filmografia com outros bons filmes, em “O filho de mil homens” o diretor consegue adaptar uma obra que se mostra uma tarefa das mais complexas, sem perder a essência do material original e, principalmente, construindo uma obra extremamente visual, que traduz poesia em imagens e se prova um exercício de adaptação fascinante, de um diretor muito seguro de sua criação e que compreende todas as etapas do processo.
O filme trabalha metáforas e simbolismos para falar de família, amor, abandono, afetos, traumas e dores, com um olhar terno para seus personagens que sofreram demais com a vida, mas parecem não perder a ternura e a esperança. É um filme sobre a construção de famílias através do afeto, de um amor que transforma, aceita e acolhe.
Todo esse poder narrativo é reforçado por atuações delicadas e viscerais, com momentos singelos, bonitos e dolorosos. A atuação de Rodrigo Santoro é brilhante, um dos grandes trabalhos da carreira de um ator já marcado por papéis memoráveis. Merecem destaque também Rebeca Jamir e Johnny Massaro.
Há uma cena do trio principal gritando diante da imensidão do mar, botando para fora suas dores, em um momento extremamente simbólico e poderoso, que me emocionou profundamente. Uma das cenas mais bonitas produzidas pelo cinema em 2025.
“O filho de mil homens” é uma vitória do cinema. Um filme de características cada vez mais raras no cinema moderno onde, tal qual um livro, se permite momentos de contemplação, de inspiração e, por que não dizer, de transpiração. Um filme tocante, uma poesia em forma de filme, que prova que a família, essa instituição que tentam engessar cada vez mais em moldes pré-estabelecidos, pode ir muito além do que a sociedade costuma estabelecer.
A pluralidade da experiência humana, um filho que traz ancestralidade afetiva, de uma pessoa formada pelas dores e histórias de muitas outras. O amor que salva, acolhe, ressignifica, cura e liberta.