O avanço pedagógico do mar de Atafona e da decadência campista
14/09/2024 | 07h59
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas.
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas. / Felipe Fittipaldi - National Geographic
 
No início do século passado, ali pelos anos 1920, Campos experimentava um apogeu sucroalcooleiro. Quase três dezenas de usinas operavam no município. Abadia, Barcelos, Caconda, Cambahyba, Outeiro, Sapucaia…eram nomes do cotidiano de Campos, tanto nas áreas rurais como no centro urbano. O açúcar movia a cidade.

Havia diversas cadeias produtivas que as usinas movimentavam: comércio, mercado imobiliário, agronegócio, serviços e até arte e cultura. Elegantes cafés — como o emblemático Café High Life, na 7 de setembro —, teatros — sendo o Trianon como o mais importante —, restaurantes, hotéis, livrarias e o novo prédio de inspiração francesa do Mercado Municipal são pontos de convivência nesse período.

Campos se modernizava, e tentava construir uma elite culta, que se espelhava no Rio de Janeiro, que por sua vez ansiava o modo de vida europeu. Não por acaso, essa elite campista dava vida ao centro da cidade e estruturava a convivência urbana. Mas também, com consequências até hoje, sem se preocupar muito com a desigualdade que vinha a reboque.

Existe uma praia campista: Farol de São Thomé. Contudo, a distância do centro desmotivou a maioria das famílias que buscavam uma casa de veraneio que proporcionasse a ida e vinda para a cidade de modo constante. Isso era possível nas praias do município vizinho, São João da Barra, o que levou a até então bucólica e mágica praia de Atafona, onde o rio encontra o mar, ser um dos principais destinos dos campistas mais abastados, que primeiro alugavam casas de pescadores e depois passaram a construir palacetes à beira mar.
 
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães.
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães. / Podcast Elas tem História


Esse movimento de ocupação das praias sanjoanenses se intensificou na segunda metade do século XX, quando houve uma ascensão econômica de profissionais liberais, comerciantes e comerciários e os proprietários e trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar de Campos. E foi preciso criar núcleos com características urbanas ao redor, com a oferta de serviços públicos como saneamento e asfalto. E também problemas de toda ordem.

Ações, omissões e o inevitável

Não é impossível fazer uma correlação do avanço do mar nesses locais com a ocupação territorial. O aumento da urbanização e da exploração dos recursos naturais — não só em Atafona mas em toda região, ao longo da bacia do Rio Paraíba do Sul — contribuíram para a diminuição da vazão do Paraíba, o aumento do assoreamento e a redução do aporte de sedimentos na foz em delta que tem Atafona como seu estuário.

Claro, não foi apenas isso que levou Atafona a uma situação de dramaticidade apontada pela mídia mundial. Começa a partir da década de 1950, quando o Rio Paraíba do Sul passou por grandes intervenções, como a transposição de suas águas para o Rio Guandu e, mais tarde, para o Sistema Cantareira (maior produtor de água da região metropolitana de São Paulo), com o objetivo de abastecer as metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra. / Rafael Duarte - site Mongabay

O equilíbrio da foz do Rio Paraíba foi rompido por diversos fatores. Não apenas ambientais, diga-se de passagem. Ações ou omissões políticas foram também determinantes. Talvez a ocupação de Atafona pelos campistas fosse inevitável, assim como desviar uma quantidade abissal de água do Paraíba para abastecer grandes e populosos centros urbanos. Porém, mesmo o inevitável pode ser feito mantendo-se um sistema equilibrado, em medidas mais justas, mantendo-se direitos e ordenando quais áreas poderiam ser construídas, tendo os impactos compensados, ao menos.

Muito poderia ter sido feito: controle do assoreamento, recuperação da vegetação ciliar, estruturas de contenção, recuperação da vegetação de dunas, implementação de zonas de recuo, entre outras providências que reduzissem os impactos e contivessem o avanço do mar. Mas pouco decidiu ser colocado em prática.

O avanço de um mar de decadência

É preciso buscar compreender os porquês dos abandonos e qual contexto histórico se impôs à Campos no último século. O açúcar que movia a cidade foi ganhando contornos de amargura administrativa. As usinas, uma a uma, foram desligando suas máquinas e interrompendo um ciclo econômico virtuoso.

A derrocada sucroalcooleira, assim como o avanço do mar em Atafona, não pode ser explicada por um único fator, ou mesmo fatores isolados. A mudança na política nacional de produção de álcool, a falta de matéria prima em Campos, problemas na administração das usinas que configuravam-se essencialmente como empresas familiares de pouca sofisticação organizacional, falta de diálogo entre os industriais, e outros tantos problemas que começaram a se acumular.

Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970.
Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970. / Instituto Federal Fluminense (IFF) - portal2015.iff.edu.br
A decadência das usinas avançou como um mar furioso sobre a região. O fato de se ter descoberto uma bacia de petróleo gigantesca em Campos, durante o mesmo período, poderia ter sido a redenção, mas o dinheiro “fácil” dos royalties e de participação especial acelerou a deterioração do parque industrial campista — como sintoma evidente da chamada de “doença holandesa”, ou “maldição dos recursos naturais”.

O avanço do mar de decadência também não foi contido e deixou ruínas na paisagem urbana de Campos e na praiana, em Atafona. São marcas de um passado recente, visíveis após o recuo de um oceano de desmandos.

Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023.
Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023. / Folha1
O período áureo produziu lideranças políticas, a derrocada também. Com espaços de poder esvaziados pela falta de dinheiro dos prefeitos ligados às usinas, novos grupos políticos surgiram, e não por acaso evidenciando essas mesmas ruínas. Palanques foram erguidos com os tijolos das usinas desativadas e dos teatros e cafés do Centro Histórico.


O mar, o rio, a cana, o açúcar, o álcool e o petróleo são implacáveis. Não coadunam com omissões e pecados políticos. Podem ser elementos de desenvolvimento ou de destruição, a depender do uso dado. As ruínas deixadas podem servir de exemplo, como um aviso do que acontece quando há desleixo e mudanças no equilíbrio entre os recursos.

Mas, o que se vê até agora em Campos, é que nos habituamos com a paisagem, chutando os destroços que ainda estão pelo caminho, sem aprender com eles. E apagando definitivamente o Café High Life e do Trianon. E os desastres, pouco a pouco, vão perdendo o valor pedagógico.
 
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Mulheres de areia: arte, memória e cooperativismo mudam realidades em Atafona
02/06/2024 | 10h16
Atafona, norte do estado do Rio de Janeiro - foz do rio Paraíba e uma praia que desaparece a cada ano.
Atafona, norte do estado do Rio de Janeiro - foz do rio Paraíba e uma praia que desaparece a cada ano. / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/
A praia de Atafona pertence ao pequeno município de São João da Barra, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. Dos cerca de 37 mil habitantes, 17% são atafonenses. Para se manter nessa condição, mulheres e homens da praia precisam conviver com os desafios e belezas de um lugar único.

O local abriga a foz de um dos principais rios do país, o Paraíba do Sul. Trata-se de um estuário em formato de delta que começou sua história em meados de 1630, atraindo pessoas pela pesca, que acabaram por se fixar ali, quando ainda era chamada de “São João da Praia”, em homenagem a São João Batista.

O convívio secular dos moradores com o mar e a foz do Paraíba foi fortemente impactado há pelo menos 60 anos. Em um processo lento e contínuo, a erosão costeira já destruiu 14 quarteirões de Atafona e continua a causar prejuízos e um processo migratório inevitável.

Mas há quem decidiu resistir. Em um constante processo de adaptação, principalmente fortalecido pelo vínculo afetivo com a localidade, um grupo de mulheres foi ouvido pelo projeto “Mulheres de Areia, Memórias de Atafona”, aprovado em edital de 2023 da Lei Paulo Gustavo.

Em abril, uma roda de conversa foi realizada com o tema “Como as mulheres da região afetam e são afetadas pelo território em que vivem?”, como uma das etapas do projeto, que visa mapear essa relação com a localidade por meio de entrevistas, pesquisa, fotografias e vídeos, valorizando a história local pela narrativa de oito de suas moradoras.
Entrevista de Sônia Ferreira para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona". Moradora da praia que resistiu por décadas à erosão e hoje atua na área cultural e social do município.
Entrevista de Sônia Ferreira para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona". Moradora da praia que resistiu por décadas à erosão e hoje atua na área cultural e social do município. / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/

“Receber um debate tão relevante não só valoriza, como reforça o sentimento de pertencimento da nossa comunidade. Atafona é um lugar que encanta com seu cenário emblemático e seu povo apaixonado”, disse na ocasião o secretário municipal de Turismo e Lazer de São João da Barra, Edivaldo Machado.

As oito mulheres escolhidas vieram do olhar da jornalista niteroiense Ana Luiza Cassalta, idealizadora do projeto, e pelo fotógrafo carioca Flávio Veloso. Para representar a comunidade foram ouvidas: Carmélia Barreto, Camila Hissa, Izabel Gregório, Joice Pedra, Lúcia de Jesus, Odinéia Pereira, Sônia Ferreira e Fernanda Pires.

Fernanda é líder da “Cooperativa Arte Peixe” e atualmente preside o Conselho das Mulheres do município. Nascida de um grupo de 20 mulheres de Atafona, a cooperativa buscou dar significado e lucro ao papel feminino na indústria da pesca.

No início do ano de 2007, o que era apenas uma ideia ganhou ares profissionais. Abraçando a oportunidade oferecida pelo Programa de Organização Produtiva de Comunidades (Produzir) do Ministério da Integração Nacional, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Estado do Rio de Janeiro (Senar), as mulheres aprenderam a se organizar em uma cooperativa e profissionalizar uma atividade o que já desenvolviam desde muito novas: o beneficiamento do pescado.

“Limpar camarão, filetar os peixes, cortar os filés, enfim, ajudava em casa nesses processos, até que veio esse curso do beneficiamento do pescado”, contou Fernanda Pires.

A ideia do programa Produzir era oferecer cursos de boas práticas de cooperativismo, higiene alimentar, meio ambiente e processamento do pescado, ensinando basicamente dois produtos, linguiça de camarão e hambúrguer de peixe. Mas a Cooperativa Arte Peixe decidiu ir além dos produtos alimentícios.

Na lógica de aproveitamento máximo, as mulheres utilizaram as escamas que sobravam da limpeza do pescado e começaram a produzir bijuterias. “Estou usando um brinco aqui hoje é de escama de peixe, uma bijuteria feita com as escamas”, mostrava, orgulhosa, uma das cooperadas em vídeo no Instagram.

Desenvolvendo a cooperativa
Cooperadas da Arte Peixe, em Atafona, exibindo um dos produtos e matéria prima da empresa.
Cooperadas da Arte Peixe, em Atafona, exibindo um dos produtos e matéria prima da empresa. / Folha1
Depois do programa Produzir, as cooperadas da Arte e Peixe perceberam a necessidade de continuidade do aprendizado e capacitação. A participação em editais governamentais foi um dos caminhos que encontraram para investir na cooperativa e aproveitar os potenciais que viam nelas mesmas.


Em edital da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), a cooperativa adquiriu maquinários e insumos para aumentar a produção, e conseguiram ampliar o número de mulheres cadastradas na cooperativa.

Da ideia inicial, que era apenas criar uma renda extra à atividade da pesca e ajudar no orçamento familiar, as mulheres descobriram que a Arte Peixe podia criar pertencimento, cidadania, empoderamento feminino e significado à atividade. Trazer o porquê de trabalhar com o peixe.

Fernanda conta o relato de uma cooperada que disse ter se sentido “gente” depois da Arte Peixe:

“Antes eu não era gente, agora eu sou uma cooperada”, repetiu, emocionada, a frase que ouviu. “Na cooperativa elas se sentem outra pessoa, outra mulher, se sentem mais fortes. Fomos entendendo cada vez mais nosso papel enquanto empresa. Acredito muito nessa união”, reforçou Fernanda.

Hoje são vários produtos comercializados pela Arte Peixe. Além das linguiças e hambúrgueres aprendidos no início, a cooperativa vende bolinhos, quibes e todo tipo de quitute feito com pescados e camarão. Os peixes do mar e do rio também são comercializados limpos e embalados, inteiros ou processados. A produção passa dos 800 quilos mensais, com mão de obra exclusivamente feminina da cooperativa.

Além dos alimentos, as bijouterias com escamas naturais ou tingidas cumprem um papel de contornar a perecibilidade do pescado.

“Diferente de fazer um alimento para vender, quando fazemos uma bijuteria podemos guardar e esperar uma nova coleção, por exemplo, não precisamos vender naquele momento”, disse Fernanda que é também formada pelo Empretec, programa estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, aplicado no Brasil pelo Sebrae.

Mulheres de Areia

No projeto de memória “Mulheres de Areia”, as personagens reais contam suas vivências e relatam o caso de amor com Atafona, apesar de tanta destruição e abandono.

O mar devorou o farol histórico da praia, bares, mercados, um hotel de quatro andares, mansões de veraneio de moradores das cidades vizinhas, igrejas e uma ilha, a “Ilha da Convivência”. Era lá que morava Carmélia Barreto, hoje com 75 anos e uma das escolhidas para o projeto de memória.
Entrevista de Fernanda Pires, líder da Cooperativa Arte Peixe, para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona"
Entrevista de Fernanda Pires, líder da Cooperativa Arte Peixe, para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona" / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/
Carmélia concluiu seus estudos após os 50 anos de idade, e mesmo acometida por um grave problema auditivo, conquistou o sonho de ser escritora e lançou o livro “A Ilha da Convivência e seu povoado”.
A Ilha ficava a 200 metros da costa e hoje a única coisa que resta é uma estreita faixa de terra com tristes ruínas. Ao todo, os pesquisadores estimam que a erosão tenha contribuído para o surgimento de mais de 2 mil refugiados ambientais no local desde os anos 1960.

Esse cenário inóspito produziu literatura, poesia e outras formas de luta. As mulheres da Cooperativa Arte Peixe ressignificam uma atividade desenvolvida essencialmente por homens, que costumam levar meses no mar, onde a mulher ocupava um lugar de suporte em casa, e de espera.

“A Arte Peixe não pode ser de uma pessoa, tem que ser de várias. As mulheres se fortalecerem, mas os homens também. Chegamos em casa e explicamos por que estamos em um lugar coletivo cheio de mulheres, devemos fazer essa parceria de mãos dadas, não um contra o outro, para que possamos ter um amanhã melhor”, disse a líder da cooperativa.

Além de novos significados, elas entendem que também é preciso levar lucro e independência financeira para as cooperadas. O sucesso e o equilíbrio das contas da cooperativa é encarada como essencial para vencer as barreiras sociais e de um mercado muito competitivo.

“É importante aprender e contribuir nesses espaços, pois acabamos dando uma devolutiva, e comunicamos o município, fortalecemos todas as mulheres daqui. São lutas que participamos, espaços onde as mulheres possam se unir e se fortalecer”, concluiu Fernanda.
Cais do Imperador, em São João da Barra, norte do estado do Rio de Janeiro.
Cais do Imperador, em São João da Barra, norte do estado do Rio de Janeiro. / Reprodução
 
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Os 98 anos de histórias de Mário Barreto Menezes
14/04/2024 | 03h57
Mário Barreto Menezes
Mário Barreto Menezes / Arquivo Pessoal
Marcamos de tomar um café na última vez que nos encontramos, na fila de banco, em São Francisco de Itabapoana. Pouco depois, infelizmente, soube que o encontro não seria mais possível. Confesso que “vamos tomar aquele café” saiu mais na força do hábito naquele dia; não marcamos, nem definimos nada com dia e lugar. E também não seria aquela a primeira promessa automática que faria a ele.


Em minha defesa, queria que o café fosse tomado à três: eu, ele e meu pai. E era mais difícil conciliar as agendas. Era uma desculpa esfarrapada, eu sei, principalmente aos olhos de hoje, depois de sua morte aos 98 anos, na última terça-feira.

Conheci Mário Barreto Menezes por intermédio de meu pai (por isso queria que estivesse presente no café não-marcado), durante o lançamento de seu livro intitulado “São Francisco de Itabapoana”. O livro era uma homenagem à terra que Seu Mário era devoto, e que conhecia como poucos. Enquanto aquele senhor simpático autografava a obra, meu pai me soprou no ouvido que estávamos diante de um profundo conhecedor da história, não apenas de São Francisco, mas de toda a região; o que não demorei para confirmar.

Apresentações curtas, livro debaixo do braço, alguns apertos de mão, e fomos embora. A partir daquele dia, Seu Mário se tornou um amigo e uma fonte de conhecimento — empírico e historiográfico. Mário Menezes foi servidor do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e por dever de ofício e por amor tinha uma enormidade de informações, que iam desde a topografia do Norte Fluminense até os dados sociais e econômicos.

Mas era o amor pela história o que tínhamos em comum, mais que tudo. E eu gostava de fazer com que ele me contasse qualquer passagem de sua vida, nos encontros que tivemos depois daquele lançamento de livro. Seu Mário escreveu mais algumas obras e era colaborador de jornais de São João da Barra, Campos e São Francisco. Foi citado em algumas teses acadêmicas, como fonte, personagem e divulgador da história oral de uma gente que se adaptou a viver em uma planície alagadiça.

Mário nos deixou numa terça-feira modorrenta, enquanto dormia. Até o último suspiro era dono de uma lucidez invejável e praticante de um humor ácido e veloz; e carismático que só. Estava sempre disposto a contar sobre a segunda grande guerra, as mudanças do mundo, o começo da urbanização de Campos, a vida na roça, os elementos culturais materiais e imateriais da região, ou qualquer outro assunto relacionado com história, cultura, arte, literatura e geografia. Até os mais chatos, das ciências exatas, ele sabia conversar e ensinar, como poucos.

Se tivesse chance de completar um centenário, Seu Mário ia gostar. A esposa, filhos, netos e amigos que deixou certamente gostariam de soprar as 100 velas acima de seu bolo. Mas, nos 98 anos que esteve neste plano, ele nos ensinou muitas coisas, e a principal delas foi que o conhecimento compartilhado não morre jamais.
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Oferecendo porquês - as mulheres de São João da Barra que deram significado à pesca
04/06/2023 | 01h46

Cooperativa Arte Peixe
Cooperativa Arte Peixe / Reprodução

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A praia de Atafona, no município de São João da Barra, interior norte do Rio de Janeiro, abriga a foz do rio Paraíba do Sul. Um estuário em formato de delta que começou sua história com a pesca ainda em 1630, quando um grupo de pescadores vindos de Cabo Frio se fixaram ali. Homens e mulheres que criaram seus filhos onde antes era batizada de São João da Praia, pela devoção que tinham a São João Batista.

Da rústica vila de pescadores até a cidade, muito foi transformado, mas sempre tendo a pesca e as águas como os elementos principais. O mar, o rio, o porto e os barcos sempre deram tudo que os atafoneses precisavam. Mas um grupo de 20 mulheres entendeu que era preciso fazer mais com tudo aquilo. Era preciso dar porquês ao papel feminino na indústria da pesca.
Foz do Rio Paraíba do Sul, no Norte Fluminense.
Foz do Rio Paraíba do Sul, no Norte Fluminense. / Foto: Zig Koch / Banco de Imagens ANA
Em fevereiro de 2007, as mulheres de Atafona abraçaram a oportunidade oferecida pelo Programa de Organização Produtiva de Comunidades (Produzir) do Ministério da Integração Nacional, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Estado do Rio de Janeiro (Senar), onde aprenderam a se organizar em uma cooperativa e profissionalizar uma atividade o que já desenvolviam desde muito novas: o beneficiamento do pescado.

— Limpar camarão, filetar os peixes, cortar os filés, enfim, ajudava em casa nesses processos, até que veio esse curso do beneficiamento do pescado”, contou Fernanda Pires, presidente da Arte Peixe, cooperativa e coletivo de mulheres.

A ideia do programa Produzir era oferecer cursos de boas práticas de cooperativismo, higiene alimentar, meio ambiente e processamento do pescado, ensinando a princípio dois produtos: linguiça de camarão e hambúrguer de peixe. Com esses ensinamentos, as mulheres fundaram a Cooperativa Arte Peixe e foram além dos produtos alimentícios. Com as escamas que sobraram da limpeza do pescado começaram a produzir bijuterias. “Estou usando um brinco aqui hoje é que de escama de peixe, uma bijuteria feita com as escamas”, dizia, orgulhosa, Fernanda.

Desenvolvendo a cooperativa

Depois do programa Produzir, as cooperadas da Arte e Peixe perceberam que era necessário que o aprendizado e a capacitação fossem contínuos. A participação em editais governamentais foi um dos caminhos que encontraram para investir na cooperativa e aproveitar os potenciais que viam nelas mesmas.

Capacitadas pelos cursos de empreendedorismo e pela própria experiência adquirida, conseguiram que um projeto da Arte Peixe fosse contemplado no Edital de Apoio ao Desenvolvimento de Modelos de Inovação Tecnológica Social, da Faperj. Com os recursos do projeto investiram na compra de maquinários e insumos para aumentar a produção, e ampliaram o número de mulheres cadastradas na cooperativa.

Da ideia inicial, que era apenas criar uma renda extra à atividade da pesca, ajudando no orçamento familiar, as mulheres descobriram que a Arte Peixe podia criar pertencimento, cidadania, empoderamento feminino e significado à atividade. Trazer o porquê de trabalhar com o peixe. 

Fernanda Pires conta o relato de uma cooperada que disse ter se sentido “gente” depois da Arte Peixe. “Antes eu não era gente, agora eu sou uma cooperada”, repetiu emocionada a frase. “Na cooperativa elas se sentem outra pessoa, outra mulher, se sentem mais fortes. Fomos entendendo cada vez mais nosso papel enquanto empresa. Acredito muito nessa união”.
Reprodução/Redes Sociais
Hoje são vários produtos comercializados pela Arte Peixe. Além das linguiças e hambúrgueres aprendidos no princípio, são vendidos bolinhos, quibes e todo tipo de quitute feito com pescados e camarão. Os frutos do mar e do rio também são comercializados limpos e embalados, inteiros ou processados. A produção passa dos 800 quilos mensais, com mão de obra exclusivamente feminina da cooperativa.

Além dos alimentos, as bijuterias com escamas naturais ou tingidas cumprem um papel de contornar a perecibilidade do pescado. “Diferente de fazer um alimento para vender, quando fazemos uma bijuteria podemos guardar e esperar uma nova coleção, por exemplo, não precisamos vender naquele momento”, disse Fernanda que é também formada pelo Empretec, programa estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, aplicado no Brasil pelo Sebrae.

Os porquês coletivos, familiares, econômicos e sociais

As cooperadas da Arte Peixe se reconhecem hoje como empreendedoras da pesca — com toda razão de ser. Conseguiram transformar organicamente uma vontade, um sonho coletivo em ideias e planos de negócios, em uma realidade transformadora.

Mas nem tudo foram flores. Não é raro ouvir relatos de cooperadas contanto episódios de preconceito e desconfiança por parte dos maridos. A pesca marítima é uma atividade desenvolvida essencialmente por homens, que podem levar meses no mar para trazer a quantidade de pescado que precisam. A mulher ocupava um lugar de suporte em casa, e de espera.

A invisibilidade feminina na pesca produzia preconceito, e a união das mulheres na cooperativa foi vista como algo que não iria à frente. “A Arte Peixe não pode ser de uma pessoa, tem que ser de várias pessoas, as mulheres se fortalecerem, mas os homens também. Chegamos em casa e explicamos por que estamos em um lugar coletivo cheio de mulheres, devemos fazer essa parceria de mãos dadas, não um contra o outro, para que possamos ter um amanhã melhor”.

Reprodução Arte Peixe
Um dos braços da empresa é oferecer educação financeira para as cooperadas. Elas entendem que é preciso oferecer reconhecimento e pertencimento, mas é essencial levar lucro e independência financeira para as mulheres. O sucesso e o equilíbrio das contas da cooperativa é encarada por elas como essencial para vencer as barreiras sociais e de um mercado competitivo.

Além da participação na cooperativa, Fernanda Pires é atualmente vice-presidente do Conselho da Mulher em São João da Barra, representando a Arte Peixe. A organização participa ativamente das decisões do município através de Conselhos.
Prefeitura SJB/Reprodução
— É importante aprender e contribuir nesses espaços, pois acabamos dando uma devolutiva, e comunicamos o município, fortalecemos todas as mulheres daqui. São lutas que participamos, espaços onde as mulheres possam se unir e se fortalecer”, relatou Fernanda.

O delta do Paraíba, a foz e o mar de Atafona são recursos naturais importantes, mas que também produzem inspirações para educação, literatura, música, história e arte. As mulheres atafonenses da cooperativa Arte Peixe são, coletivamente, a prova disso.

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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com