Às meninas de minha cidade
22/06/2024 | 07h44
Arte digital, criada por IA, por Edmundo Siqueira

Não trago boas notícias, infelizmente. Tentamos todos os dias, mas somos vencidos; violentamente vencidos. Batemos com o pulso fechado nas pontas de facas do atraso e do reacionarismo.

Não nos esqueçamos: mulheres extraordinárias pavimentaram os caminhos que vocês trilham hoje, meninas. Joana, Benta, Simone, Virgínia, Pagu, Nina, Bertha…e tantas outras desconhecidas, mas não menos incríveis, que lutam contra a misoginia e as violências recebidas, diuturnamente. São caminhos pavimentados, mas ainda bastante tortuosos, cheios de curvas perigosas e constantemente embaçado por neblina.

Digo para vocês que não está fácil, e não será fácil vencer esse estado de coisas. Estamos vivendo uma onda de extremismos que faz a gente duvidar da capacidade humana de refletir sobre os miseráveis erros cometidos — de muito antes e de tempos recentes. E isso aflora em algumas pessoas o pior, assim como exige de outras seu melhor e mais determinado lado. Porém, essa onda tem legitimando o que deveria ser banido.

Não vou negar, meu lugar de fala está entre os algozes. Sou homem cis, branco, hétero. Mas jamais estarei ao lado de quem não tem a decência de entender que o lugar da mulher é onde ela quiser. De quem mesmo depois de anos sendo apresentado aos números de feminicídio e violência sexual insiste em descredibilizar e minimizar a importância dessa luta. E nunca estarei no mesmo lado de homens que além de ignorar os fatos, concorrem para agravá-los.

Nos últimos dias, políticos em Brasília e aqui em nossa cidade, mostraram suas piores faces. Escancararam seus desejos de não apenas de manter o preconceito e a misoginia, mas descê-los aos níveis do esgoto. Chegaram a propor uma lei, veja vocês, que pune uma mulher que sofreu uma das piores violências possíveis, o estupro, com prisão duas vezes mais gravosa do que o homem estuprador.

A lei pretende punir também uma menina, como vocês, que decide não continuar uma gravidez indesejada e violentamente imposta, muitas vezes por alguém da família. Violentada, humilhada e emocionalmente destruída, esses homens querem vê-la ainda presa. E repito: com o dobro da pena de quem cometeu o bárbaro crime.

Retrocessos civilizatórios que me envergonho de relatar aqui. Um descalabro: meninas não são mães, estupradores não são pais. Parece óbvio, mas tristemente preciso dizer que ainda convivemos com a necessidade de lutar pelas obviedades e humanidades mais básicas.

Aqui em nossa cidade, um político que sequer é daqui, subiu em um palco armado por outros, esses locais, e agrediu a honra de uma mulher para atingir seu marido. Sem qualquer pudor, sob aplausos incautos e sorrisos omissos. Não se esperava descendência de quem ofendeu gravemente a imagem de uma mulher morta, política como ele, anteriormente. Como todo covarde, age contra quem não pode se defender, contra fragilidades históricas e a favor de vilezas. O que se esperava é que outros e outras no mesmo palco agissem para interromper o absurdo. Pelo menos para tentar se redimir da desonestidade moral de estar no mesmo palanque que alguém com aquele perfil.

Meninas, saibam que vocês estão numa terra onde mulheres se levantaram contra a tirania. Uma delas está no hino da cidade. Campos é um lugar onde as mulheres lutam.

Arte digital, criada por IA, por Edmundo Siqueira
E onde não o fazem? Todos os dias precisam conviver com o medo de saírem sozinhas, ou de mesmo em seu lar sofrer um abuso. Que precisam redobrar os esforços profissionais para não serem descredibilizadas apenas por serem mulher.


Queria poder dizer que estamos indo bem. Que a humanidade passa por um processo evolutivo, e que neste século pessoas não são escravizadas e mulheres não são estupradas. Mas não dá. E mesmo aceitando que essas perversidades sejam inevitáveis, sinto dizer que muitos estão batendo palmas e sorrindo para elas. E outros tantos se omitindo, justamente por medo de perder o lugar de privilégio.

Então não há esperança? Há. O sol vai nascer em um novo dia, e sempre será uma chance de continuar tentando iluminar preconceitos. E dando luz ao ensinamento basilar da civilização: somos todos iguais. Sujeitos de direitos e deveres universais.

Meninas, não trago boas notícias. Mas podemos deixá-las cada vez menos frequentes. E não se sintam, por favor, desestimuladas a participar da política e ocupar cargos de poder. Os esgotos hão de regurgitar e engasgar em seus próprios chorumes. Mas, se ainda estiverem provocando mau cheiro, vocês estarão lá para fechar as tampas do reacionarismo.















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Moïse e a barbárie complacente
01/02/2022 | 09h03
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Moïse tinha 16 anos quando chegou ao Brasil. Em companhia de sua mãe e seus irmãos, o garoto tinha esperança de uma vida nova no além-mar. Como refugiados do Congo, pensavam em deixar para trás o que recebiam como compatriotas do país africano: violência, desigualdade, fome e guerra.
Por aqui encontraram trabalho. Mesmo longe das condições ideais de cidadania, a família via o Rio de Janeiro como sua casa. Cidade cosmopolita, receptiva, de maioria negra e alegre. Foi no Rio que Moïse Kabamgabe conseguiu trabalho, em um quiosque perto do Posto 8, na Barra da Tijuca. Ele trabalhava por diárias no Tropicália.
O Rio igualou-se ao Congo, na segunda-feira da semana passada, 24. Pouco depois das dez da noite, uma discussão envolvendo um funcionário do quiosque terminou com a morte de Moïse. Covardemente amarrado e espancado por cinco homens. Morto a pauladas. O crime bárbaro — todo filmado por câmeras de segurança — foi assistido por outras pessoas que estavam no local e nada fizeram para impedir.
A família do congolês, inconformada com a naturalização que foi tratada a violência extrema, resolver se manifestar no último sábado (29). O protesto, na mesma praia que Moïse foi assassinado, conseguiu que o país tomasse conhecimento da barbaridade. O vídeo do espancamento circulou nas redes sociais e pautou os principais veículos de comunicação.
Pela versão dos familiares, Moïse foi cobrar uma dívida. O dono do quiosque Tropicália estaria devendo dois dias de serviços prestados. Apresentando outra motivação, um dos envolvidos, Alisson de Oliveira, disse que Moïse e um senhor, estavam brigando. “Ele teve um problema com um senhor do quiosque do lado, a gente foi defender o senhor e infelizmente aconteceu a fatalidade dele perder a vida”, disse.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
O fato de uma pessoa ser amarrada e espancada até a morte, por outras cinco, suplanta qualquer explicação. Para a barbárie não há motivação; há sangue e ódio. Segundo o Instituto Médico Legal (IML), Moïse Kabamgabe morreu por traumatismo, com contusão pulmonar. Os pulmões, com áreas hemorrágicas, também tinham vestígios de broncoaspiração de sangue.
Moïse não conseguiu fugir da guerra. Saiu do Congo, mas veio viver em um país que há muito se distanciou do conceito de “homem cordial”, definido no livro ‘Raízes do Brasil’ do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. Talvez nunca tenha sido de fato cordial, basta olhar o histórico recente de escravidão. Não há evidência concreta que o crime contra Moïse tenham motivações racistas. Embora certamente exista relação ali. Os homens que o espancaram não conseguiriam fugir disso; é estrutural.
Nos últimos anos o Brasil se tornou ainda mais violento, cheio de ódio e preconceito, e aprofundou sua desigualdade. É um país que aplaude justiçamentos. Apenas no primeiro mês de 2022, e apenas na Zona Sul do Rio, 12 linchamentos foram registrados. Nas últimas eleições presidenciais, o vencedor vendia a ideia, que foi comprada por muitos, que “bandido bom é bandido morto”. Há cerca de 40 anos, as pessoas davam entrevistas nas ruas do Rio afirmando que homossexuais deveriam ser mortos.
Voltando à barbárie atual, em um depoimento emocionado transmitido aos quatro cantos esta semana, um parente de Moïse desabafa:
“Ele trabalhava! A gente trabalha, duro! Fugimos da África, para sermos acolhidos aqui...ai, Brasil!...Uma mãe, segunda casa...como vai matar o irmão trabalhando? Justiça...vai ter que ser feita”.
Vai ter que ser feita.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com