Cavalhada, manifestação cultural tradicional da Festa de Santo Amaro, com 290 edições. Patrimônio Imaterial de Campos dos Goytacazes, encena a luta entre os Mouros e Cristãos. A batalha é encenada desde 1730.
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Foto: Tarcísio Nascimento/PMCG
O mês de setembro marca o prazo final para as inscrições em dois importantes editais, um ligado à educação patrimonial e outro ao patrimônio imaterial, lançados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura (MinC). Os investimentos somados chegam próximo a R$10 milhões e vão contemplar projetos em todo o Brasil.
Lançado no último dia 25 de julho, o edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) oferece R$ 7,5 milhões para apoio a projetos de proteção ao patrimônio cultural imaterial brasileiro, com prazo final em 15 de setembro. Já o edital de Educação Patrimonial, que propõe R$ 2 milhões em investimentos, finaliza o processo de inscrição em 25 de setembro.
Complementares, os editais são bons exemplos da volta do fomento à cultura pelo Governo Federal, que nos últimos anos teve diminuído tanto os aportes quanto a abrangência das áreas do conhecimento contempladas. O último edital no País para apoio ao patrimônio imaterial aconteceu em 2015.
PNPI
Patrimônio imaterial pode ser definido como um conjunto de saberes, de manifestações culturais de uma sociedade. Em âmbito nacional ou local, um patrimônio imaterial pode dialogar com ofícios e modos de fazer, com celebrações, músicas, arte em geral, e até em lugares, como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas — vivências de um povo que ocupou esses locais historicamente.
Para o edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), podem participar da seleção órgãos e entidades dos governos federal e estaduais, instituições de ensino superior, organizações da sociedade civil, agências de desenvolvimento e organizações privadas ligadas à cultura e à pesquisa.
São propostas três linhas temáticas: projetos de pesquisa e identificação de bens culturais imateriais que tenham como base o novo Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC); em sociolinguística, projetos que tenham como referência o Guia Nacional da Diversidade Linguística (GNDL); e projetos para apoio e fomento de bens imateriais já registrados como patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan, nas diversas localidades do Brasil.
Educação Patrimonial
Já as propostas para o edital de fomento à educação patrimonial devem partir do valor de R$ 200 mil e chegar, no máximo, a R$ 250 mil. Podem submeter projetos as OSCs — Organizações da Sociedade Civil, sem fins lucrativos, que cooperam com o Estado no atendimento ao interesse público - além de órgãos e entidades das três esferas da federação.
Segundo o Iphan, o edital traz muitas abordagens possíveis, articulando o tema da Educação Patrimonial com, por exemplo, sustentabilidade, gênero, culturas afro-diaspóricas e indígenas, grupos minorizados ou qualquer outra pauta de transformação social.
Campos dos Goytacazes e região, e a retomada dos Editais
Carina Mendes - Iphan
Segundo Carina Mendes, arquiteta do Iphan e especialista em patrimônio cultural, que atualmente coordena o Escritório Técnico do Iphan na Região dos Lagos, esses dois editais constituem “iniciativas fundamentais para fomentar as políticas de patrimônio, capilarizando a atuação do Iphan por todo o território a partir da descentralização das ações institucionais. Tanto a retomada dos editais quanto as linhas neles priorizadas são reflexos de um novo momento na cultura”.
Atualmente, o Iphan possui quatro patrimônios materiais tombados em Campos dos Goytacazes: o Solar dos Airizes e o Solar da Baronesa, ambos na BR-356; o Solar do Colégio, na Baixada Campista, prédio que abriga o Arquivo Público; e o Solar do Barão de Carapebus, onde está instalado o Asilo do Carmo.
O edital PNPI é a chance dos saberes e costumes da região Norte Fluminense se tornarem reconhecidos nacionalmente como patrimônios imateriais. Com mais de 340 anos de história, Campos possui diversos exemplos de manifestações culturais próprias que merecem o reconhecimento público como patrimônio.
Tombados pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Coppam), órgão municipal de proteção ao patrimônio, estão o doce chuvisco, o samba de terreiro, a folia de reis, a quadrilha da roça, a lenda do Ururau da Lapa, os bois pintadinhos, a cavalhada, a Mana Chica do Caboio e o jongo.
Todas essas manifestações estão aptas a participarem do edital do Iphan, bastando que órgãos públicos ou instituições da sociedade civil proponham projetos. O caso da Cavalhada e do Laço Campista (manifestação ainda não tombada pelo Coppam), por exemplo, são saberes que foram passados por gerações através da oralidade e representam manifestações culturais que contam o processo de formação da região.
As informações detalhadas sobre os editais estão na página do Iphan e em suas redes sociais, e a submissão de projetos e propostas devem ser feitas através da plataforma TransfereGov. Guias para inscrição e as perguntas mais frequentes podem ser encontradas no mesmo local.
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína.
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Bruno Salles
Campos dos Goytacazes sempre teve vocação para produzir histórias de valor para todo país — um campista negro chegou à presidência, a livraria mais antiga do Brasil, o segundo maior canal artificial do mundo, a primeira energia elétrica pública da América Latina, o terceiro jornal mais antigo e um dos principais abolicionistas da história. E um icônico Solar às margens do rio Paraíba, na BR-356 (Campos x Atafona).
O Solar dos Airizes — ou “casarão da escrava Isaura”, ou “casa dos Lamegos” — é um bem de alto valor histórico e cultural, o primeiro a receber tombamento federal em Campos, ainda em 1940, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Apesar do tombamento e de seu valor nacional, o Solar dos Airizes está em estado de abandono há décadas, e a cada ano perde uma parte significativa de suas paredes e esquadrias. Garantir que ele não venha à ruína completa é uma obrigação legal da prefeitura, do Iphan e da família Lamego, atual proprietária do Solar. E principalmente um direito difuso dos campistas.
A prefeitura e a Ferroport
Para cumprir o que determina o acórdão de número 402-28.2008.4.02.5103 do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região — sentença que não cabem mais recursos ou embargos e determina o restauro imediato do Solar — a prefeitura buscou a iniciativa privada.
Na última terça-feira (4), foi assinado um Protocolo de Intenções entre o ente municipal e a Ferroport, joint-venture formada pela mineradora sul-africana Anglo American e pela Prumo Logística, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. Desde de maio deste ano, a empresa integra o Grupo de Trabalho (GT) criado pelo prefeito Wladimir Garotinho para definir os estudos e ações relativos à restauração do Solar dos Airizes.
Assinatura do protocolo de intenções entre a prefeitura e a Ferroport.
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PMCG
A ação judicial que condenou a prefeitura de Campos a restaurar o Solar foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2008, em face do município e de Nelson Luiz Lamego. Durante o curso do processo foi acatado a incapacidade alegada pelo herdeiro da família Lamego em restaurar o bem, e determinado que a municipalidade promova, não apenas o restauro, como o uso do patrimônio. Mas nada impede que a prefeitura busque parceiros para cumprir a decisão.
“O protocolo tem como objeto envidar os esforços necessários para elaboração de projeto que possibilite angariar recursos por meio dos instrumentos dispostos na Lei 3.813/91, para a realização do projeto e da obra referente ao restauro do Solar dos Airizes, bem como a manutenção de acervo cultural de interesse público”, disse Isabelle Silva, assessora de comunicação da Ferroport, a esta coluna, via e-mail.
Sobre o processo judicial, Isabelle informou que “a minuta do protocolo de intenções já foi juntada aos autos pela prefeitura, como conteúdo informativo ao Ministério Público”, e sobre o uso do Solar dos Airizes após a restauração, disse que “a Ferroport entende que a interseção cultural entre a sociedade e o bem tombado deve ser realizada pela prefeitura”.
Como bem tombado pelo Iphan e ainda de propriedade da família Lamego, qualquer intervenção deve ser feita após anuência de ambos. Embora tenha ciência dessa necessidade, a Ferroport informou que não se envolverá nessa questão, atuando "exclusivamente no auxílio ao patrocínio cultural". Mas lembra que a área foi decretada como de interesse público por meio do Decreto Municipal 473/2021, e que “os próximos passos estão sendo tomados pela Procuradoria do município”.
A família Lamego
A importância do Solar dos Airizes não reside apenas em sua beleza arquitetônica. Por muito tempo o local foi considerado uma “meca” — um local sagrado — de conhecimento e cultura por muitos intelectuais brasileiros. Sendo residência de Alberto Lamego (pai e filho), o Solar foi palco para a criação das mais importantes obras sobre a história de Campos e região, depois de ter sido recolhido um vasto acervo garimpado na Europa, levando a produção de conhecimentos fundamentais para compreender os processos de formação do território fluminense.
Reprodução Foto: João Pimentel
Além do acervo cartográfico e documental, uma incrível pinacoteca conferia ao Solar dos Airizes a condição de guardião da cultura, intelectualidade, arte e conhecimento geográfico do Norte Fluminense. No Solar hospedaram-se nomes como Mário de Andrade e o imperador D. Pedro II.
A família Lamego manteve-se como proprietária do Solar, e tentou vender o Solar em algumas ocasiões, mas tendo o tombamento federal como um dificultador. Para a efetivação do restauro proposto pela prefeitura e a Ferroport, a propriedade do bem deverá ser resolvida.
Também a este espaço, representante dos proprietários informou que pretende doar o prédio à municipalidade:
“O subprocurador nos procurou e nos colocamos à disposição, inclusive para a doação do prédio. Nosso interesse, como o de todos, é a preservação do bem”, informou um dos herdeiros. Perguntado sobre o prazo de concretização da doação, informou que depende da procuradoria do município.
O Iphan
Enquanto era feita a assinatura do Protocolo de Intenções, uma equipe técnica do Iphan vistoriava o Solar dos Airizes. Em Campos para visitas técnicas nos imóveis tombados pelo órgão, o Iphan informou, via e-mail, que “o técnico do Iphan não estava no momento da assinatura”.
Ao menos três processos administrativos, com o Solar dos Airizes como objeto, tramitam no Iphan. Neles há o histórico de todas tratativas do órgão federal com os proprietários e os documentos produzidos pelos técnicos, que evidenciam a evolução da destruição no Solar.
Reprodução Foto: João Pimentel
Sobre a parceria da prefeitura com a Ferroport, a assessoria disse que “o Iphan celebra as iniciativas para valorizar o patrimônio cultural”, e que o instituto é “o órgão fiscalizador responsável pelo Patrimônio Cultural Brasileiro, cabendo fiscalizar o bem cultural, aprovar projetos de intervenções e orientar o proprietário na conservação do bem tombado”.
No caso do Solar dos Airizes, como patrimônio cultural e propriedade tombada, caberia aos proprietários “promover obras de conservação e restauro, bem como zelar pela manutenção do monumento”, informou a assessoria do Iphan. Porém, por decisão judicial, a prefeitura de Campos assumiu essa condição, pelo entendimento do valor coletivo que o bem carrega consigo.
O Iphan deverá informar, via nota, os resultados das visitas desta semana à cidade.
O Airizes vive — e deve viver
Alberto Lamego, depois de retornar ao Brasil trazendo na bagagem uma rara biblioteca brasiliana e vastíssimo acervo documental acumulado por ele durante os anos de pesquisa, em especial nos arquivos portugueses, passou a viver com a família no Solar dos Airizes. O imponente Solar, construído em sua forma atual em princípios do século XIX pelo comendador Cláudio do Couto e Souza, foi herdado por ele após o casamento com uma das filhas.
Além de todos os fatos e lendas que acompanham o Solar, mantê-lo de pé significa aos campistas — e fluminenses — conhecer os processos de formação da região, o papel das grandes fazendas e a problematização necessária do abuso de pessoas escravizadas.
A despeito da passividade dos campistas e dos governantes sobre a expatriação de acervos e ruínas de diversos patrimônios históricos, o Airizes resiste bravamente, mas dá evidentes sinais que não resistirá por mais tempo. E com ele toda chance de valorização cultural e de educação patrimonial se esvai.
A gestão municipal atual tem a chance e a obrigação de fazer história, e se contrapor ao habitual descaso de Campos com seus tesouros, que são de todo país. A parceria com a Ferroport é um primeiro passo, que deve ser seguido de muitos outros, inclusive da abertura da discussão à sociedade civil. Campos e o Brasil agradecem.
O caseiro jura que a vê na janela, vez por outra. Se for de fato uma mulher branca representada na visão fantasmagórica do homem que vigia o Solar dos Airizes, certamente ela não seria a escrava branca de nome Isaura. A “escrava Isaura” é uma criação do escritor oitocentista Bernardo Guimarães, que apesar de não ter nascido em Campos ambienta sua obra na cidade.
Guimarães escreveu um romance regionalista, em um momento de intenso movimento abolicionista no Brasil. Campos era a cidade perfeita para a ficção ganhar ares de realidade. O escritor chamou o município de “fértil e opulento”, o localizando, não por acaso, “à margem do Paraíba”. Era uma das principais regiões do império português quando se instalou em terra brasilis — uma enorme planície com solo rico, rodeada de água e perto do porto do Rio de Janeiro, que se consolidou como grande produtora de cana-de-açúcar.
A opulência traria casarões e urbanidade para Campos, e uma economia baseada na exploração de pessoas escravizadas. A ideia da abolição foi atacada pela maioria dos senhores e comendadores da época com muita veemência; queriam uma contrapartida para aceitar perder a mão de obra gratuita. Em um desses casarões teria nascido a escrava Isaura, a mesma que o caseiro vê na janela do Solar que vigia.
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína.
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Bruno Salles
No Solar dos Airizes — hoje à margem da BR 356 — teria inspirado Bernardo Guimarães como sendo o local em que Isaura havia nascido. Embora o escritor não dê nome ao local, o descreve: “edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador”. Não fosse pelas "elevadas colinas”, o Airizes estaria perfeitamente encaixado. Guimarães continua:
“Em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da antiga floresta” — o Comendador Claudio do Couto e Souza foi o maior exportador de madeira de Campos, essa plantada nas terras do Solar dos Airizes.
“Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos (...) os fundos eram ocupados por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio” — o Airizes termina suas terras nos barrancos do rio Paraíba.
O caseiro do Solar pode não ver a escrava de “cor clara e tez delicada boca pequena, rosada e bem feita”, como descreveu Guimarães, mas caso fosse ele mesmo sensitivo pode ter visto vultos dos que moraram por lá, inclusive sendo de pessoas escravizadas, que pela violência que viveram não conseguiram seguir para outros planos.
Foto de outra mulher na janela que ficou famosa no Brasil. A Mulher da Casa Abandonada é um podcast narrativo, apresentado pelo jornalista Chico Felitti, da Folha de S. Paulo, que investiga a história de vida de uma figura misteriosa. Uma mulher que mora em uma mansão em pandarecos em Higienópolis, um dos bairros mais ricos de São Paulo.
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Reprodução
A trama de Bernardo Guimarães foi adquirida pela Rede Globo e se tornou uma novela. A obra televisiva ganhou o mundo e é considerada umas das mais vistas já produzidas. Pela ambiência em Campos dos Goytacazes — o município que seria o Solar é nomeado e definido pelo escritor —, naturalmente a equipe da primeira e da segunda edição do folhetim precisaram conhecer a cidade, se inteirar de suas idiossincrasias e olhar de perto o Solar dos Airizes.
A ficção criada pelo escritor não pode ser considerada fantástica — não no sentido de fantasia, devaneio. A proximidade da trama com a realidade dos fatos, tanto no romance, como na telenovela “A Escrava Isaura”, torna-se um retrato fiel do Brasil escravista e dos comendadores campistas. Descrita como bela, uma “boa figura”, que trajava-se com “gosto e elegância”, tocava piano e cantava com perfeição e que “teve excelente educação”, Isaura foi descrita como alguém que poderia se passar por “uma senhora livre e de boa sociedade”.
Embora o Solar dos Airizes esteja em péssimas condições hoje — pelo desleixo da família que o herdou e dos governos “modernos” que administraram Campos e seus patrimônios históricos —, em nada lembrando o “edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso”, o mesmo preconceito continua vivo e lustrado, em décadas de enraizamento na sociedade.
Pode perfeitamente o Solar dos Airizes ser mesmo o trazido pelo romance de Bernardo Guimarães. As “colinas” e outras diferenças, meros artifícios narrativos, ou propositalmente colocados para descartar a inspiração direta — há mais semelhanças que diferenças.
E a mulher na janela vista pelo caseiro pode não ser a Isaura. Mas certamente ela tem muito para contar.
A estrutura do Solar dos Airizes com sinais claros de fragilidade estrutural. Embora tenha passado por intervenções no telhado há alguns anos, algumas paredes e esquadrias já caíram.
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Foto: Edmundo Siqueira
Em ofício enviado à Prefeitura de Campos dos Goytacazes, no último dia 20, o chefe do Escritório Técnico da Região dos Lagos (IPHAN-RJ), Fernando Eraldo Medeiros, pede informações sobre o cumprimento de sentença judicial que determina o imediato restauro do Solar dos Airizes, importante patrimônio localizado na BR-356 (Campos x São João da Barra).
O processo nº 0000402.28.2008.4.02.5103/RJ, que tramita na 2ª Vara Federal de Campos, impõe à prefeitura obras emergenciais de contenção do Solar e o imediato início do restauro. A decisão tem trânsito em julgado, quando não cabem mais recursos.
Segundo o IPHAN, “até o presente momento não houve manifestação sobre o cumprimento da demanda ou comprovação documental de que a instituição [prefeitura] está de fato envidando os recursos necessários para atingir seu objetivo [obras no Solar dos Airirzes]”.
Medeiros cita a importância nacional que o Solar possui, e pede ainda no mesmo ofício “informações atualizadas sobre as providências a respeito do estado de conservação da edificação”, e se existem “providências em caráter emergencial para minimização de danos ao bem”.
A precariedade atual do Solar vem assustando historiadores e entidades de proteção ao patrimônio. Com paredes e esquadrias já destruídas, o risco de desabamento iminente se agrava no período chuvoso. O próprio IPHAN reconhece a gravidade da situação e alerta que de “21 de outubro a 2 de abril se intensificam as chuvas”, e cita o mês de dezembro como o “mês mais chuvoso em Campos dos Goytacazes, com média de 176 milímetros de precipitação de chuva”.
Há anos sem obras - As últimas intervenções no Solar dos Airizes foram feitas em 2014, empreendidas pela Instituto Federal. A família Lamego, atual proprietária, alega que aguarda reunião com o prefeito de Campos para concluir a cessão do imóvel, que resiste bravamente ao tempo, mas não se sabe por quanto tempo.
A cada vez que se passa pela BR-356 a caminho de São João da Barra, a percepção de que o Solar dos Airizes está muito próximo da ruína, aumenta. Primeira construção de Campos dos Goytacazes tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ainda em 1940, o casarão que é mais conhecido pela lenda da “Escrava Isaura”, agoniza.
A importância do Solar dos Airizes não reside apenas em sua beleza ou tamanho. Por muito tempo foi considerado uma “meca”, um “local sagrado” de conhecimento e cultura.
Sendo residência de Alberto Lamego (pai e filho), o Solar foi palco para a criação das mais importantes obras sobre a história de Campos e região. Os Lamegos recolheram um vasto acervo, que foi garimpado pela Europa, e produziram obras fundamentais para compreender os processos de formação do território fluminense.
Além do acervo cartográfico e documental, uma incrível pinacoteca conferia ao Solar dos Airizes a condição de guardião da cultura, intelectualidade, arte e conhecimento técnico-geográfico de Campos e região. Por lá hospedaram-se nomes como Mário de Andrade e o imperador D. Pedro II.
Porém, assim como os campistas assistiram passivos a expatriação dos tesouros do Solar, estão assistindo sua ruína. O Airizes resiste bravamente, mas dá evidentes sinais que não resistirá por mais tempo. E com ele toda chance de valorização cultural e de educação patrimonial, principalmente sobre os processos de exploração humana que o envolve.
A estrutura do Solar dos Airizes com sinais claros de fragilidade estrutural. Embora tenha passado por intervenções no telhado há alguns anos, algumas paredes e esquadrias já caíram.
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Foto: Edmundo Siqueira
A prefeitura é a atual responsável pela manutenção e restauro do Solar dos Airizes, como definido em processo judicial, com trânsito em julgado — onde não cabem mais recursos. A justiça determina que as obras aconteçam de imediato, o que vem sendo descumprido pela municipalidade.
O Solar dos Airizes resistirá às próximas chuvas e a inércia de quem assiste passivo, e principalmente, de quem é responsável? Um tempo curto dirá.
Campos possui muitos prédios históricos. Natural para um município que se constitui há mais de 300 anos (ata de posse da primeira Câmara campista data de 1653). Alguns dos mais significativos estão na Baixada, onde Campos nasce de fato. Porém, está encrustado no Centro uma das construções mais relevantes, e que melhor demonstram as relações sociais. E com grande valor afetivo: o centenário Mercado Municipal.
Não é possível entender os processos de expansão urbana de Campos dos Goytacazes sem levar em conta alguns de seus elementos centrais: a Praça São Salvador, o rio Paraíba e o Mercado. Praça e Mercado como pontos de efervescência social, cultural, política e comercial da cidade. Rio como uma histórica comunicação com os municípios vizinhos, e como via de escoamento da produção.
Sendo uma planície alagadiça, Campos precisou de uma estrutura de canais para drenagem e para auxiliar essa via. O principal deles, o Canal Campos-Macaé — a maior obra de engenharia do Brasil no século XIX, e o segundo maior canal artificial do mundo — foi o motivo do Mercado está onde está hoje.
Os reordenamentos urbanos em Campos sempre obedeceram a uma perspectiva higienista. Em 1902, o então presidente da Câmara, Benedito Pereira Nunes, encomendou a outro campista e engenheiro sanitarista, Saturnino de Brito, um desses planos. Buscando “modernizar” a cidade, com saneamento e remodelação do espaço urbano, Saturnino considerou o Mercado um dos maiores “problemas”.
Foram feitas diversas intervenções e mudança de local, até que em 15 de setembro de 1921, com a presença dos permissionários, o então prefeito Cezar Tinoco inaugura um novo espaço para o comércio de gêneros alimentícios popular. Com uma imponente Torre do Relógio de inspiração francesa, amplos espaços e localização privilegiada, o mercado estava pronto.
Mas, hoje ele atende aos seus objetivos? As bancas dos feirantes possuem boas condições? É um espaço de convivência saudável? O prédio cumpre seu papel de educação patrimonial? Creio que não.
O Mercado como elemento central de real transformação social – As transformações históricas do Mercado foram o exemplo fiel do que é feito em Campos. Seguindo uma política higienista (eu diria até eugenista), também em relação à moralidade e costumes, os reordenamentos urbanos são raros e sem participação popular. Situação comprovada nos primeiros regimentos internos do Mercado, que proibiam “algazarras” e “gestos insultuosos”, e ainda previa a expulsão compulsória de "ébrios e vadios".
Ainda hoje como um elemento vivo, o Mercado trata de manter um “caos amável”, próprio e característico, com dramatizações de quem ali trabalhava e realiza suas compras; as trocas acontecem não são apenas de forma comercial.
As propostas para um possível “Novo Mercado” deve superar essa visão. O objetivo não pode ser criar um ambiente "limpo e organizado" onde as pessoas mais abastadas possam fazer suas compras. Melhorando as condições de trabalho dos permissionários e permitindo que o prédio esteja visível - e acessível -, o objetivo maior deve ser a educação patrimonial e o uso cultural e turístico do local.
Mercado Municipal hoje – Na gestão de Anthony Garotinho foram feitas intervenções no piso, troca de telhado e melhoria das bancas, que passaram a ser de alvenaria e azulejadas, como permanecem até hoje. Em 1991, foi tentada a privatização do local, porém, a proposta foi rechaçada pela Procuradoria do Município à época.
Em 1992, o Mercado recebe no seu entorno outro centro de comércio popular: o Camelódromo. Hoje, o prédio centenário encontra-se espremido entre as construções, e impedido de cumprir seu papel e de ser acessível à população campista.
O Mercado Municipal é tombado desde 2013 pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam) e, há vários anos, vem sendo mapeado para receber tombamento também pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Segundo fontes, o Inepac estará em Campos nas próximas semanas para vistoriar o Mercado.
O Coppam, apesar de sua atribuição principal de defesa do patrimônio, autorizou a descaracterização do entorno e o encobrimento do Mercado (leia mais aqui).
Reprodução
E se fosse aberto? – Uma das propostas mais interessantes (que eu comungo) é a transferência da Feira para a Praça da República, localizada atrás da Rodoviária Roberto da Silveira, que possui o espaço necessário e teve reforma em 2009.
Levando os permissionários para a Praça da República (com anuência e estabelecimento de condições), e criando-se a estrutura necessária (e melhores que as atuais), cria-se mais um ponto de comércio popular onde transitam trabalhadores de vários estabelecimentos e hospitais localizados nas proximidades. E abre-se o prédio do Mercado.
Sem a Feira, apesar de ainda manter-se o Camelódromo, por inviabilidade de seu deslocamento, abre a possibilidade do belo e centenário prédio do Mercado se tornar visível e permitir a exploração e vivência em seu entorno. Exemplos como os Mercados de São Paulo e Belo Horizonte demonstram como por ser bem sucedida a iniciativa.
Mercado Municipal de São Paulo
Mercado Municipal de São Paulo
Mercado Central de Belo Horizonte
O prédio seria visível de outros elementos históricos, como o Canal Campos-Macaé e Parque Alberto Sampaio, neste permitindo outras tantas possibilidades. Além de ser possível pensar em navegabilidade do Canal, instalando-se outro modal de transporte em Campos, e uso social e turístico.
Existem alternativas. Porém, elas precisam ser trazidas de forma ampla e democrática, com a participação de quem vive o Mercado, da academia e da sociedade civil. Para, quem sabe, ele não passe a ser apenas memória
Foto: Rodrigo Porto
As questões que envolvem o Solar dos Airizes — construção histórica às margens da BR-356 Campos-Atafona — são essencialmente de cunho cultural e de formação de identidade. Mas que há anos transcenderam e foram parar na justiça. O Solar, desde 2013, é um caso de descumprimento de decisão judicial transitada em julgado. Explico.
O tombamento de uma propriedade privada sempre é um ato extremo. É, na prática, o Estado impedindo alguém de exercer plenamente seus direitos sobre uma coisa. No caso em tela, um imóvel. Porém, além do fato de ser regulamentado em lei, tombar algo significa (ou deveria significar) proteger um bem que possui alto valor cultural, histórico, arquitetônico ou artístico. O Solar dos Airizes possui todos esses elementos encrustados em suas paredes e ruínas.
Um dos maiores marcos patrimoniais da nossa região, o Solar foi inicialmente ligado aos jesuítas, transformado em um grande engenho pelo comendador Claudio do Couto e Souto, e depois veio a ser residência de um dos campistas mais ilustres, Alberto Lamego. O edifício guarda ainda a lendária história da Escrava Isaura, do romance homônimo de Bernardo Guimarães.
Mantê-lo de pé é essencial para que possamos entender a história regional. Usá-lo como estratégia de educação patrimonial é primordial para formamos o pensamento crítico sobre nosso passado. Transformá-lo em um museu é fundamental para que gerações entendam os processos que construíram a região, em suas glórias e mazelas. E tudo isso pode ainda gerar alto valor turístico.
Mas voltemos à questão jurídica. Como imóvel tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde os anos 1940, a exigência era preservar — acervo, arquitetura e entorno. Com a morte do patriarca Lamego, e com o fim do uso econômico ou residencial do Solar, o abandono foi inevitável. O Iphan procurou exigir dos proprietários à preservação do bem tombado, inclusive com a imposição de multas pesadas. Mas é preciso levar em conta que preservar e restaurar uma construção daquelas proporções envolvem custos altos. Ora, se o valor é coletivo, cultural, é possível que seja justo que o Estado preserve. Mas não é o que diz o ordenamento jurídico sobre o tema. A responsabilidade é do proprietário.
Crédito: Secretaria de Estado de Cultura
Mas há uma previsão no próprio Decreto-lei nº 25, de 1937, que regulamenta os tombamentos, que abre uma possibilidade. Diz o artigo 19 que “o proprietário de coisa tombada, que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação” deverá levar ao conhecimento do órgão que tombou e, caso confirmado essa incapacidade financeira, passará a responsabilidade ao ente estatal.
O processo
O Solar dos Airizes passou por todas essas etapas. Um processo envolvendo os proprietários, o Iphan, a 2ª Vara Federal de Campos e o Ministério Público Federal teve fim em junho de 2013. A decisão foi tomada e o transito em julgado declarado. Ou seja, não cabe recurso. Cumpre-se, somente. Mas na prática isso não aconteceu.
A decisão do judiciário, após ouvir todas as partes, e examinar todas as provas, foi de responsabilizar a Prefeitura de Campos pelo restauro do Solar. Apesar de entrar com apelação, negada pela Vara Federal, a municipalidade é a responsável por restaurar de imediato a construção. E sobre sua ruína, caso aconteça. Apesar de concluído em 2013, o processo continua intimando a prefeitura, que por sua vez age “em nítido intuito protelatório”, como diz o despacho.
A negativa do juízo à apelação foi clara: “não há que invocar a responsabilidade concorrente, com efeito, não se sustentam os argumentos do executado no que tange a perda de receita, queda na arrecadação, gastos emergenciais e comprometimento com demais obrigações”. E vai além: “não obstante este juízo reconhecer o atual momento de dificuldades decorrentes de crise econômica nacional e da pandemia (...), convém destacar que a sentença (...) traçou cronograma razoável para o cumprimento da obrigação”. Cita ainda que não foi encontrada nenhuma ação da prefeitura "no sentido de cumprir o julgado”.
O novo despacho exige que seja elaborado um projeto completo de restauração do Solar no prazo de 60 dias, e que este seja encaminhado ao Iphan para autorização. As despesas para o restauro devem estar contidas no plano plurianual e nas leis orçamentárias do município. E tudo deve ser comprovado documentalmente nos autos do processo. Em caso de descumprimento, a multa diária pode chega a 15 mil reais, a ser paga diretamente pelo prefeito.
A culpa é de quem?
Não interessa a qualquer gestor minimamente sério que um relevante patrimônio histórico-cultural de sua cidade vá ao chão. As perdas seriam bem maiores que os custos de restauro e manutenção. Políticas, inclusive. Pode-se argumentar que o problema é antigo e que vem se arrastando por diversos governos sem solução. Sim, embora tenha uma premissa verdadeira, a omissão do mandatário atual não será justificada pela tese. É preciso resolver.
Com o agravante de que, diante dos fatos e decisões judiciais, não é mais uma questão de “é preciso”, ou “se”. É uma questão de como e quando. Seja de quem for a culpa.
A intimação proferida é de conhecimento da prefeitura. Em ofício enviado ao Iphan em outubro deste ano, a prefeitura diz que o município e a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (Fcjol) “foram intimados do cumprimento de sentença, onde determina, num lapso temporal de 60 (sessenta) dias, a apresentação de um projeto para a restauração do Solar dos Airizes”. Alegando não possuir “em seu quadro de servidores, tal profissional para elaboração de tal projeto”, pede que o prazo seja aumentado.
Caso o Iphan concorde em aumentar o prazo, e seja peticionado à Vara Federal de Campos, e ela aceite, não haverá garantias do novo prazo ser cumprido. A celeuma pode continuar se entendendo até que não seja mais necessária sua existência, a não ser para responsabilizações. O Solar dos Airizes resiste bravamente de pé, mas não se sabe por quanto tempo.
Para que se garanta o que foi decidido, em tempo hábil para cumprir seu objetivo, o caminho mais coerente é a elaboração de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), onde seriam estabelecidos os prazos necessários para execução, mas que sejam tempestivos. Com acompanhamento do Iphan e da sociedade civil campista (veja um exemplo de TAC aqui).
De quem é a culpa - ou a quem interessa a ruína - são questões menores, pois a justiça já cumpriu seu papel julgador. Cabe agora ela cumprir seu papel coercitivo e criar as condições de cumprimento da sentença.
Nesta semana, foram publicados dois tombamentos no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro: o Antigo Hangar do Zeppelin, em Santa Cruz, na capital, e o Mosteiro de São Bento de Mussurepe, na cidade de Campos
De acordo com a nova diretora do Inepac, Ana Cristina Carvalho, que assumiu a direção geral no último dia 13 de outubro, a proposta da atual gestão é estabelecer procedimentos que recomponham as atribuições de proteção e fiscalização conferidas legalmente ao órgão.
“Estamos trabalhando para viabilizar os casos de compensação, restauração e conservação do patrimônio histórico e cultural, seja para manutenção do bem pelo proprietário, seja para utilização e fruição pelo particular, conferindo atividades econômicas ou culturais que permitam a sustentabilidade do bem tombado. A troca da gestão também foi pensada no sentido de priorizar o diálogo com a Casa Civil e ampliar o entendimento da importância do tombamento, dando mais celeridade aos processos”, explica Ana Cristina Carvalho.
Para a Secretária de Estado de Cultura e Economia Criativa, Danielle Barros, estes tombamentos são de vital importância para a preservação e manutenção da memória fluminense:
“Esperamos que estes espaços sejam ocupados de forma que valorizem a importância histórica e cultural de cada um. São construções ímpares, com uma qualidade arquitetônica singular e que fazem parte da história do Rio de Janeiro”, destaca Danielle Barros. (Fonte: SECEC-RJ)
Mosteiro de São Bento de Mussurepe
Situado no distrito de Mussurepe, em Campos, o Mosteiro de São Bento é um símbolo histórico da presença dos monges beneditinos em Campos. Uma das construções mais antigas do município, que ainda mantém-se de pé, a construção foi fundada pelo Frei Bernardo de Montserrat, em meados do século XVII. O conjunto arquitetônico é formado pelo convento, a igreja, uma oficina e o cemitério.
A efetivação do tombamento pelo Inepac era muito aguardado pelo setor cultural de Campos (veja aqui). O Mosteiro já era protegido em âmbito municipal, pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Coppam), e em 2018 o prédio histórico recebeu uma etapa de restauração. Mas, ainda necessita de obras estruturais emergenciais. Com o processo de tombamento estadual, a esperança de "salvar" o Mosteiro é reforçada.
Agora, campos passará a ter 10 bens tombados pelo Inepac. Receberam tombamento em períodos anteriores a Serra do Mar, o coreto do Jardim do Liceu, o Canal Campos-Macaé, os hotéis Amazonas e Gaspar, a sede da Lira de Apollo, o Solar do Visconde de Araruama (onde atualmente funciona o Museu Histórico), o Colégio Estadual Nilo Peçanha e o Liceu de Humanidades.
Foto: Ralph Braz
O caso do Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes é apenas mais um exemplo em uma cidade que despreza a sua riqueza histórica e cultural. Apesar de encoberto (sua fachada e lateral sofreram um emparedamento, para usar um termo técnico), a construção histórica — essencial para compreensão da formação de Campos —, resiste. E mantém, apesar dos ataques e obras indevidas, a sua relevância especial, imponência e centralidade. Sim, o Mercado foi tombado em âmbito municipal, reconhecendo esses atributos. Porém, o órgão que o protegeu — o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam) — foi o mesmo que autorizou, em 2014, um projeto que o descaracterizava. Com a aprovação, as obras iniciaram, mas não foram concluídas. Nesta semana, foram retomadas, após decisão monocrática do desembargador Agostinho Teixeira, da 13º Câmara Cível.
Desde que o Shopping Popular Michel Haddad foi removido do entorno do Mercado Municipal para que ocorressem “reformas”, a Prefeitura vem insistindo em executar uma obra que, na prática, encobrirá o prédio histórico, um dos mercados mais belos e antigos do Brasil, inaugurado em 1921. O esforço de escondê-lo retira do campista o orgulho de pertencê-lo — ou pelo menos a sua possibilidade.
Os comerciantes são a alma do entorno – é preciso encontrar soluções, não amputações
Em meio a uma discussão técnica e da necessária valorização histórica, estão os permissionários — camelôs e feirantes — do local. A questão é que uma coisa não exclui a outra. Permitir que o Mercado viva em sua plenitude não significa amputá-lo de uma tradição e relação afetiva daquele comércio popular. Pelo contrário. Mas não foi apresentada pelo governo qualquer solução para o caso que permitisse, por exemplo, um raio mais amplo do entorno, aumentando, portanto, o complexo do Mercado.
A conservação, restauração, uso e principalmente visibilidade do prédio histórico, em um projeto contemporâneo e contemplativo, deixaria o local mais confortável, seguro e atraente — podendo assumir todo seu potencial turístico, inclusive.
Não podemos nos acostumar com a visão completamente errônea que o “progresso” deve destruir a história. O desprezo à memória e a negação da beleza que o prédio do Mercado possui, falando especificamente, parece ser proposital, em nome de interesses econômicos. E aqui não se fala em desvios ou malversações. Mas sim da falta de visão e do aproveitamento das suas potencialidades. Inúmeras, diga-se de passagem.
O Coppam poderá reparar erros do passado?
Em reunião extraordinária, realizada em 16 de dezembro de 2014, que teve por finalidade apreciar e julgar o projeto de revitalização do entorno do Mercado Municipal, o Coppam decidiu — por 7 votos a 4 —, por aprová-lo. Cabe dizer, que aqui não se discute o mérito técnico do projeto, ou mesmo sua legalidade. Seu autor, o arquiteto Cláudio Valadares, parece ter seguido o que o “cliente pediu”, e dentro das possibilidades e especificações impostas.
O que espanta é um órgão colegiado, criado para proteção ao patrimônio histórico e cultural, aprovar um projeto que colide frontalmente com seu motivo de existência. Conforme informa ata da reunião, publicada no Diário Oficial do município, foram contrários ao projeto os representantes: Vitor Menezes, pela Associação de Imprensa Campista (AIC), Luiz Gustavo de Souza Xavier, pelo Rotary Clube de Campos, João Pimentel, pelo Instituto Histórico (IHGCG) e Mary Jane Araújo, pela Uniflu-Fafic.
Os outros sete votos foram dados por representantes de instituições “governistas”. O voto de minerva, em caso de empate, seria dado por Orávio de Campos Soares, que presidia a então Superintendência de Cultura e Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural. Segundo fonte que estava presente na reunião, votou a favor, contrariando o nome da pasta que estava à frente. Assim também votou o autor do projeto, mas foi anulado por suspeição.
E não foi por falta de “aviso” que Coppam e prefeitura seguiram no projeto. O órgão estadual Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), enviou, à época, ofício à Prefeitura, ao Coppam e ao Promotor de Justiça Marcelo Lessa, informando sobre o “inegável interesse cultural do Mercado Municipal de Campos para o Estado do Rio de Janeiro”. e pedindo que o projeto fosse “enviado para apreciação" antes da execução das obras.
O Coppam pode reparar seu erro do passado e intervir para que a retomada da obra seja ao menos discutida novamente. Assim como a Câmara de Vereadores que, através da Comissão de Educação e Cultura, pode realizar Audiência Pública para que a sociedade civil seja ouvida e apresente alternativas. O Ministério Público deve agir na defesa do patrimônio histórico, como já fez no caso do Mercado e outros. Já foi, inclusive, (re) motivado por nove instituições, em ofício recente.
Espera-se das obras feitas com dinheiro público, no mínimo, responsabilidade maior com o futuro. No caso do mercado, respeito ao passado, também. Da sociedade, espera-se envolvimento para que crimes contra a história de Campos não continuem a acontecer, como o antigo Trianon (derrubado para construção de uma agência bancária), a Santa Casa de Misericórdia (destruída para dar lugar a um estacionamento) e tantos outros, inclusive com ruínas anunciadas como o Solar dos Airizes. O problema, é que muitas vezes não dá para esperar.