Entre áudios e silêncios: justiça em meio ao ruído
Edmundo Siqueira 24/08/2025 21:20 - Atualizado em 24/08/2025 21:33
Foto: Gabriel Silva/Estadão


A quarta-feira, 16 de março de 2016, foi decisiva para o Brasil. As consequências políticas e sociais que advieram desse dia definiram muito das relações de poder que se encontram vigentes, ainda hoje, no país. No início da noite daquela histórica quarta, milhares de pessoas ocuparam a avenida Paulista, e se aglutinavam em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília.
As manifestações se replicaram pelo país, e ao menos 15 cidades registraram atos de rua significativos — tudo transmitido ao vivo pela TV e pelas redes sociais. Os gigantes patos amarelos foram inflados novamente na frente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assim como acontecera no domingo imediatamente anterior àquela quarta-feira.

Os atos de rua do domingo — marcadas simbolicamente em um dia 13 — foram considerados, até então, como os maiores já registradas no período democrático brasileiro, e inflamaram o país a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que cairia alguns meses depois. Na quarta-feira, o sentimento antipetista atingia seu auge. Noticiado à exaustão, um grampo vazado pelo então juiz Sérgio Moro era gasolina no fogo que já estava ateado. Ao telefone, Dilma avisa a Lula que o termo de posse para se tornar ministro estava a caminho, e que ele deveria usar apenas “em caso de necessidade”.

A conversa entre a então presidente do Brasil com o ex-presidente, que estava sendo acusado de diversos crimes, dava um recado claro à população: o documento e a posse como ministro era para proteger Lula de uma eventual detenção. Lula despede-se com “tchau, querida”, o que se transformou em um slogan irônico do antipetismo, ainda hoje presente.

A explosão das ruas em 13 e 16 de março: os símbolos nacionais e a camisa da seleção

Foi ali naquela quarta que bandeiras do Brasil e camisas da seleção brasileira de futebol começaram a ser fortes símbolos antipetistas e anti-esquerda. A Paulista tingia-se de verde e amarelo, multidão que também era composta por pessoas com roupa social de quem havia acabado de sair do trabalho e adiaram a volta para casa. Segundo reportagem do El País, uma ciclista, que pedia calma no meio da avenida, foi xingada de “petista filha da p****” por outros manifestantes.

A Fiesp tratava de soprar mais oxigênio para as chamas com caixas de som viradas para a avenida que tocavam o hino nacional, que era entoado com toda a força pelos manifestantes. O hino também foi se transformando em símbolo político de uma militância que se formava ali. Em imagem aérea — que tratou de ser amplamente divulgada — era possível ver sobre as camisas da seleção uma enorme faixa preta onde se lia Renúncia Já.
Foto: Marcos Alves / Agência O Globo


Os atos do domingo que se estenderam até aquela quarta de 2016 não tiveram causas isoladas. O segundo governo Dilma, que iniciou em 1º de janeiro de 2015, estava muito enfraquecido por uma crise econômica aguda e por diversas denúncias que atingiam em cheio os partidos que a apoiaram. Os índices de popularidade da presidente estavam em níveis muito baixos e a insatisfação era crescente.

Porém, o que era um governo ruim se transformou em uma crise social e institucional que iria abalar profundamente as estruturas da república. Os anos seguidos de governos petistas trouxeram o desgaste natural da permanência, e a ampla corrupção revelada ampliaram a revolta.

A República de Curitiba e seus super-heróis de toga
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional.
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional. / Minervino Júnior/CB/D.A Press


“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos uma Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado”, dizia o ex-presidente Lula na conversa interceptada com Dilma. “Eu, sinceramente, tô assustado com a 'República de Curitiba'”, completou Lula.

A tal “República de Curitiba” foi o termo que se popularizou para definir uma estrutura de uma Vara Federal convertida em órgão judiciário especializado em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro nacional, que ganhou força e elevou os julgadores e promotores para a condição de heróis nacionais. Vestindo togas de super-heróis, Moro e companhia se transformaram em uma força política, mais que jurídica, que determinava os rumos do Brasil naquele período, e pautava todo o noticiário.

O pastor, o ex-presidente denunciado e a influência do governo americano

A história teima em se repetir no Brasil — seja como farsa ou tragédia. Também numa quarta-feira — desta vez no ano corrente, em 20 de agosto — o Brasil acompanhou como novela os áudios liberados pelo STF, oriundos do recente inquérito em que Eduardo e Jair Bolsonaro, entre outros, são investigados.

Em áudios e mensagens trocadas via WhatsApp, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o seu filho Eduardo Bolsonaro discutem, e entre xingamentos e acusações revelam sérios desentendimentos no núcleo duro do bolsonarismo. Em outras conversas, Eduardo critica o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Mas a mensagem em áudio mais repercutida na quarta foi com outro personagem importante do bolsonarismo, o pastor Silas Malafaia, que foi proibido pelo STF de se comunicar com Bolsonaro e deixar o país. Na mensagem, Malafaia chama Eduardo de “babaca” e que ele teria falado “merda” e feito um discurso “nacionalista”. Segundo o pastor, o filho de Bolsonaro estaria dando declarações que atrapalharam as intervenções do governo americano para defender o ex-presidente. “Toda arrombada que o Trump deu no mundo é sobre economia. Com o Brasil é sobre você, cara. A faca e o queijo tá na tua mão”, dizia Malafaia à Bolsonaro antes de outro xingamento e das críticas a Eduardo.

O direito à intimidade, o dever de informar e o interesse público

Não é uma exclusividade brasileira o uso de conversas interceptadas para alimentar investigações criminais e, em muitos casos, o debate público. Mas a divulgação ampla dessas mensagens — para além do processo e da persecução penal — coloca em choque dois princípios constitucionais: de um lado, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da Constituição Federal); de outro, a liberdade de imprensa e o direito da sociedade à informação (art. 5º, IX, e art. 220 da CF).

No caso dos áudios de Lula e Dilma, em 2016, juristas e acadêmicos denunciaram a violação de garantias fundamentais, pois a publicidade extrapolava a finalidade processual e assumia caráter político-midiático. Agora, em 2025, o vazamento dos diálogos de Bolsonaro e Malafaia revive esse dilema: o interesse público em conhecer articulações que podem envolver obstrução à justiça e até relações internacionais se sobrepõe à reserva da intimidade privada?

A resposta pode parecer fácil: saber sobre tramas golpistas que ameaçam a democracia, e tomar conhecimento de como personagens públicos dialogam com interesses estrangeiros, sobrepõe o direito à intimidade. Porém, o uso desse “poder” de forma indiscriminada e usada para uma evidente espetacularização da investigação pode fragilizar as instituições e transformar terrenos jurídicos em pântano de justiçamentos.

A divulgação irrestrita de conversas particulares tem o poder de criar um tribunal paralelo da opinião pública. É nesse espaço, instigado por algoritmos que adoram a radicalização, o conflito e a polarização cega, que se fragiliza a confiança nas instituições e acaba mostrando que a fronteira entre justiça e política fica difusa.

Em países como os Estados Unidos, Alemanha e França, casos semelhantes foram tratados de forma diversa, mas sempre com um ponto em comum: a proteção da imprensa quando há interesse público relevante. O precedente norte-americano Bartnicki v. Vopper (2001) reforça essa lógica, ainda que reconheça o desconforto de expor conversas privadas.

A história que insiste em se repetir

Assim como em 2016, os acontecimentos de agosto de 2025 revelam uma engrenagem política que se move também pela exposição midiática de conversas privadas. Os protagonistas mudam, mas os dilemas constitucionais permanecem. A cada nova divulgação, a sociedade brasileira é convocada a refletir sobre até que ponto se admite sacrificar direitos individuais em nome da transparência e do interesse coletivo.

O Brasil, que ainda não resolveu todos os contenciosos jurídicos e históricos da Lava Jato, pode estar plantando as sementes de novas nulidades e disputas judiciais para o futuro. O risco é que, entre direitos fundamentais e o clamor das ruas, prevaleça novamente a lógica do espetáculo.

Talvez o que nos falte não sejam mais áudios, mas silêncio — o silêncio das instituições sólidas, que cumpram a lei sem depender de vazamentos ou espetáculos. Até lá, continuaremos reféns de uma história que insiste em se repetir. Não precisamos de novos heróis nem de velhos vilões. O que o Brasil precisa, enfim, é de uma realidade séria.

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