Edmundo Siqueira
24/02/2023 22:42 - Atualizado em 24/02/2023 22:46
A pequena cidade de Lajes, no interior do Rio Grande do Norte, se orgulha de já ter sido notícia no The New York Times. A notoriedade internacional não teria sido por acaso, viria do fato de ter sido o primeiro município da América Latina a ter eleito uma mulher como prefeita. Em nota, o NYT informava que o local estaria sob o risco de se “americanizar”, já que os movimentos sufragistas por lá estavam a todo vapor.
Nota do NYT noticiando a eleição de Alzira Soriano.
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Alzira Soriano foi eleita prefeita de Lajes em 1928, aos 32 anos. Filha mais velha de Miguel Teixeira, um legítimo coronel nordestino, dono de terras e poder político, integrante da Guarda Nacional e comerciante importante. A sede de sua maior propriedade — a Fazenda Primavera — era palco das reuniões políticas mais significativas da região, e foi onde Alzira tomou gosto pelo assunto.
Apesar de a ter aprendido pela vivência na fazenda do pai, a política não foi a primeira escolha de Alzira. Aos 17 anos, casou-se com um promotor de justiça da cidade vizinha de Ceará-Mirim, e lá foi viver. Teve quatro filhas, e estava grávida da quarta menina quando o casamento acabou, não pela vontade dos cônjuges, mas pelo marido ter sido acometido pela Gripe Espanhola e ter falecido. Viúva, três filhas para criar e grávida, em uma sociedade muito (ainda mais que os dias atuais) preconceituosa em relação a participação feminina, Alzira não teve escolha, a não ser voltar a residir na Fazenda Primavera. Porém, apesar do preconceito, começou a liderar as atividades da propriedade de sua família — ganhando fama de ser pulso firme — e conseguindo uma voz ativa nas atividades políticas que seu pai desenvolvia.
Em uma dessas reuniões na fazenda, estava o presidente do Estado do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, que além de político era advogado e jornalista, alguém já envolvido na luta pelo voto feminino. Em companhia dele estava ninguém menos que Bertha Lutz, que viria a ser uma das maiores ativistas do movimento feminista. Bertha e Juvenal foram à casa do coronel naquele dia sem maiores expectativas, até conhecerem Alzira Soriano.
A liderança que ela desempenhava — que ia muito além do papel de filha mais velha do coronel — encantou Bertha. Administrar uma fazenda no sertão nordestino, em uma época de forte misoginia, não era algo trivial. Era preciso saber equilibrar o que Alzira possuía: gênio forte, o pouco apego ao medo e liderança.
Bertha Maria Júlia Lutz, nascida em São Paulo, em 2 de agosto de 1894, foi uma ativista feminista, bióloga, educadora, diplomata e política brasileira.
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O governador e a ativista logo viram a oportunidade única de fazer a primeira prefeita da América Latina ali em Lajes, no Nordeste Basileiro. Além das características pessoais, ela possuía a retaguarda política. Não podia ter uma chance melhor.
Com amplo apoio político, o deslumbre do movimento feminista que ganhava força em todo país e a permissão legal de se candidatar — a Lei Estadual 660 de 1927, garantia que “no Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos” —, Alzira Soriano foi eleita prefeita de Lajes, com mais de 60% dos votos. Na icónica foto de sua posse, aparece de chapéu clochê — com bordas viradas para baixo remetendo a um sino, muito usado nos anos 1920 — em meio ao seu secretariado exclusivamente masculino.
ARQUIVO PESSOAL/RUDOLFO LAGO/BBC
O mandato de Alzira enfrentou resistências. E foi curto. Apesar de ter sido convidada pelo governo federal para permanecer como interventora municipal após a Revolução de 30, ela decidiu renunciar ao cargo por não concordar com os desdobramentos da Revolução e o governo de Getúlio Vargas. Mesmo com oposição forte e tempo exíguo de governo, Alzira Soriano construiu escolas, obras de infraestrutura e melhorias na iluminação pública a gás. Ela voltaria à política após a redemocratização do país, em 1945, elegendo-se vereadora em Lajes por três mandatos.
Primeira prefeita e primeira eleitora
A lei que permitiu que Alzira Soriano fosse eleita também possibilitou que a primeira mulher tivesse o direito de votar no Brasil. A professora Celina Guimarães Viana, de Mossoró (RN), requisitou seu título eleitoral com base na lei estadual e em 5 de abril de 1928 pode preencher a cédula eleitoral em um país que ainda não permitia o sufrágio feminino.
O governador potiguar José Augusto Bezerra de Medeiros, que foi sucedido por Juvenal Lamartine, justificou a assinatura da lei com base em uma leitura atenta da Constituição vigente, de 1891, que não fazia distinção entre homens e mulheres em relação ao direito ao voto. “A Constituição fala apenas em cidadãos, não distinguindo se é homem ou mulher”, dizia o governador.
O Nordeste foi reconhecido por um dos maiores jornais do mundo pela proeza de eleger e dar o direito de votar para as primeiras mulheres da América Latina. Quase 100 anos depois, nas últimas eleições, os eleitores da região foram perseguidos pela candidatura presidencial perdedora, mas seguiu dando exemplo de cidadania e democracia.
A participação das mulheres na política ainda é pequena, e espaços de poder ainda são ocupados por homens, em sua maioria. Em algumas cidades, como Campos dos Goytacazes, a Câmara de Vereadores, com 25 cadeiras, está ocupada exclusivamente por homens. Alziras, Celinas e Berthas abriram caminhos, mas eles precisam ser trilhados sempre, para que a vegetação da "caatinga do preconceito" não cresça novamente.