Entre utopias e telas: o que o Festival Goitacá projeta para Campos
30/08/2025 | 12h34
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Há cidades que guardam em seus subterrâneos memórias inteiras à espera de serem reativadas. Campos é uma delas. Não apenas em subterrâneos — com memórias dos povos originários e de pessoas escravizadas —, como em patrimônios erguidos e esquecidos em toda planície. Histórias que clamam pelo pertencimento de um povo que teima em negá-lo. Muitas dessas histórias, dariam filmes e são de “cinema”.

Durante o século XX, Campos teve quase setenta salas de cinema em funcionamento — entre ruas centrais e distritos rurais, uma verdadeira rede de telonas iluminando o interior do estado do Rio de Janeiro. O cinema, como ferramenta poderosa de arte e cultura, trazia imagens projetadas e era parte da vida comum dos fluminenses dessa região: a ida ao cinema era lazer, era ritual, encontro e respiração coletiva (veja matéria sobre o assunto, deste mesmo espaço, aqui).

Esse tempo ruiu. Das dezenas de salas, sobraram duas nos anos 1980. Depois, nenhuma. Capitólio fechado, Goytacá vendido a uma igreja evangélica. Ficaram apenas as lembranças de marquises acesas e do rumor da plateia antes da sessão. Ficou o eco do que poderia ter sido, e na movimentada Avenida 28 de Março, resiste apenas a fachada melancólica do antigo Cine São José.”
Darcy Ribeiro, que acreditava no poder das universidades para reinventar o destino do Brasil, sonhou para a Uenf, em Campos, uma Escola Brasileira de Cinema e Televisão. Escolheu o Solar do Colégio — joia arquitetônica, então em ruínas — para abrigar esse gesto inaugural. O projeto nunca saiu do papel. Mais uma utopia interrompida, mas que possibilitou o Arquivo Público Municipal, instalado no Solar e se constituindo como um importante equipamento cultural da cidade.

O recomeço pelo Festival
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Mas as cidades também sobrevivem de recomeços. E foi nesse espírito que o I Festival Internacional Goitacá de Cinema nasceu (veja matéria do Folha1, com números do Festival, aqui). A primeira edição, realizada neste agosto, trouxe não apenas filmes: trouxe seminários, encontros, e até um sonhado mercado audiovisual. Mais do que uma programação, trouxe uma pergunta essencial: pode uma cidade que perdeu suas salas reencontrar-se com a tela grande e suas boas consequências?

A atriz Fernanda Soares, campista e com trajetória  na TV Globo e no teatro, respondeu a essa pergunta no corpo da própria experiência. Ministrou a masterclass “O ator no mercado audiovisual” e, diante de jovens atores locais, reviu sua própria história:

A atriz Fernanda Soares.
A atriz Fernanda Soares. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra
“Foi especial demais. Me reconheci naqueles jovens, e passou um filme na minha cabeça de quando eu morava aqui, sonhando em viver de arte. Estar no Festival Goitacá em Campos me faz acreditar em como a educação tem um papel importante formativo, de criar talentos e fortalecer a cena cultural no interior, que também é viva, diversa e cheia de possibilidades.”


Havia, em sua fala, um reconhecimento profundo: o festival não é apenas vitrine, é formação. É esse gesto formativo que pode, talvez, ocupar simbolicamente o espaço vazio deixado pela escola de cinema de Darcy Ribeiro.

Fernanda enxergou também o caráter histórico da transformação:

“Ver Campos se tornar oficialmente uma rota cinematográfica mostra como a cidade pode registrar e valorizar sua história, ao mesmo tempo cria oportunidades reais para novos artistas, fortalecendo a identidade local e dando visibilidade a uma cena cultural nova, plural e potente.”
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação"
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação" / Reprodução / Instagram


Essa pluralidade, que Darcy chamaria de “força criativa do povo”, é a chave. Mas, como lembrou a atriz, não basta abrir a porta uma vez. É preciso continuidade:

“O Festival cria um elo forte com a futura escola de cinema da Uenf, e isso me enche de esperança. Mas, para que esse movimento não se repita, precisamos estimular a continuidade da produção cultural, de modo que nossas histórias alcancem públicos em todo o país.”

Se a voz de Fernanda recupera a memória dos sonhos interrompidos, a de Fernando Sousa, diretor do festival, projeta o futuro:

“O Festival Internacional Goitacá de Cinema nasce com a força e a grandeza da região Norte-Noroeste Fluminense. A gente teve uma noite de abertura uma programação extensa uma noite de encerramento linda, já apontando pro futuro do festival que na sua segunda edição homenageará também o campista ator campista Tonico Pereira (...) Esperamos que o que o festival se consolide como espaço de encontro de novas conexões e contribua pro desenvolvimento econômico da região norte Noroeste Fluminense, apontando assim para novas vocações e novas possibilidades de crescimento mais sustentável dialogando com a identidade com a imaginação e com a força criativa da população da região (...) Então a gente encerra muito feliz, com o dever cumprido, mas com a certeza de que há muito trabalho pela frente que vai precisar do poder público, em suas diferentes esferas, Municipal, Estadual e Federal, da iniciativa privada, de lideranças da sociedade civil e de toda a população de Campos.” 
A continuidade do sonho
 
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival.
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


O festival já anunciou sua segunda edição, com homenagem ao ator campista Tonico Pereira, com carreira consolidada na TV, teatro e cinema. A primeira edição, a atriz e cantora campista Zezé Motta foi celebrada duplamente: no palco do festival e no recebimento do título de Doutora Honoris Causa pela Uenf.

O gesto de continuidade do Festival Goitacá não é pequeno: em uma cidade onde a memória costuma ser abandonada, a continuidade é quase um ato político.

Em tempos de plataformas digitais e consumo solitário de imagens, o Festival devolveu a Campos algo mais valioso que a exibição de filmes: devolveu a experiência coletiva da sala escura. Rir junto, silenciar junto, reconhecer-se no vizinho que ocupa a cadeira ao lado.

O Festival projeta mais que imagens: projeta uma possibilidade de futuro. Glauber Rocha, lembrado por Darcy Ribeiro no célebre discurso em seu enterro, dizia que seu cinema era um grito, um berro, uma indignação convertida em arte. Darcy, por sua vez, acreditava que a educação era a utopia mais urgente.

O que o Festival Goitacá ensaia é a costura dessas duas forças: o cinema como espaço de consciência e a formação como ferramenta de transformação. Entre as salas que se perderam e as que podem renascer, entre a escola de cinema que nunca existiu e a que pode ainda existir, Campos se vê mais uma vez diante do espelho das telas.

E, se há algo que Glauber e Darcy nos ensinaram, é que a utopia só fracassa quando deixa de ser sonhada.
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival.
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
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A história de Campos com o cinema ainda está aqui
06/02/2025 | 09h49
Um velho e conhecido ditado diz que um cavalo selado não passa duas vezes na sua frente. No caso do cinema brasileiro, talvez seja o melhor momento de passagem de uma montaria encilhada; Globo de Ouro, indicações ao Oscar com direito a transmissão na Sapucaí e “Ainda Estou Aqui” renovando as forças do setor cinematográfico, deixando milhões de brasileiros interessados.
Em Campos, o cinema passou por um momento de auge que — quase — culminou com uma Escola de Cinema na Uenf. Havia na planície 70 salas de cinema de rua, nos anos 1960 e 70, de Santo Eduardo ao Centro, passando por Saturnino Braga, indo até Dores de Macabu.
Apenas três distritos não possuíram registros de cinemas de rua: Ibitioca, São Joaquim e Dr. Matos (estes dois últimos extintos na divisão geográfica atual), como informa Joilson Bessa, poeta e mestre em geografia pela UFF Campos. Em seu trabalho de mestrado, Bessa verificou que a sala de cinema de rua mais antiga foi em Goytacazes, então 2° distrito, em 1930. Por lá o maior cineteatro da área rural de Campos, o Cine Teatro São Gonçalo, projetava filmes e documentários.
Nos anos 1950, mais 14 salas foram inauguradas. Duas décadas mais tarde, somaram-se 68 salas de cinema em Campos — 20 na sede e 48 na área rural. Deste ápice, o declínio levou a duas salas apenas, em meados dos anos 1980. O Cine Capitólio e o Goytacá sobreviviam bravamente, até deixarem de existir. O primeiro em 2001 e o segundo vendido para uma igreja evangélica nos anos 1990.
Cinema, Uenf, Darcy e o Festival Internacional Goitacá

Quando a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) nasceu, havia uma enorme expectativa, tanto dos moradores da região Norte Fluminense, principalmente da população campista que se mobilizou para a universidade acontecer, quanto dos acadêmicos empolgados com a ideia de Darcy de fazer algo do “terceiro milênio”, ainda no início dos anos 1990.

O educador-sonhador tinha no projeto inicial da Uenf uma escola de cinema. O Solar do Colégio, que hoje abriga o Arquivo Público Municipal, foi parcialmente restaurado e abrigaria o que seria a sede da Escola Brasileira de Cinema e Televisão. O projeto não foi à frente, mas caso esse sonho de Darcy se tornasse realidade, Campos certamente seria um polo de produção cinematográfica de excelência, como é o ensino da Uenf em outras áreas.
I Festival Internacional Goitacá de Cinema

Com a chegada de 2025, vai ganhando forma o I Festival Internacional Goitacá de Cinema, em Campos. Já estão confirmadas uma mostra internacional e uma brasileira, ambas com curtas e longa-metragens, tanto de ficção quanto documentários. O evento vai acontecer em agosto e abrigará o também inédito Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense recentemente aprovado em editais da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atualmente, os organizadores estão recebendo propostas de empresas que possam abraçar o projeto do festival enquanto patrocinadoras, uma vez que ele foi aprovado na Lei Rouanet e está sob análise na Lei Estadual de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei do ICMS (Folha1, veja aqui).

— Nosso objetivo é fomentar o debate a partir de diferentes perspectivas sobre a concepção da Escola de Cinema e Audiovisual na Uenf, considerando as experiências institucionais existentes a partir da perspectiva de professores, pesquisadores, profissionais do setor e gestores públicos — afirma o cineasta Fernando Sousa, diretor geral do festival e doutorando do programa de pós-graduação em Sociologia Política da Uenf (Folha1,, veja aqui).

A história de Campos com o cinema ainda está aqui


A história é um elemento vivo, e seu uso pode ser construtivo e educativo, ou omitido. Seja como for, é sempre uma decisão política e social, e econômica muitas vezes. Omitir que Campos já teve uma história interessante com o cinema pode ser uma forma de omissões em políticas públicas.
O que pessoas como Darcy e Fernando fazem, com apoio ou não do poder público — mas sempre dependendo da boa institucionalidade — são formas de manter vivas manifestações artísticas e culturais tão necessárias, principalmente em tempos sombrios.
Seja no Oscar ou no ortivo Festival Goitacá de Cinema, é preciso festejar o fato de ainda estarmos aqui, e ainda haver arte e história para festejar.
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Expectativas, hesitações e o realismo extremo de Guerra Civil
01/05/2024 | 01h10
Reprodução


Há expectativas para quem vai ao cinema ver Guerra Civil (direção e roteiro de Alex Garland, produção A24), e a principal, ao menos para o público brasileiro, reside na atuação de Wagner Moura como um dos protagonistas do longa, onde vive Joel, repórter da Reuters. Para quem espera a entrega do ator, a expectativa é atendida. Para quem busca um filme de guerra bem escrito e amarrado, talvez saia da sessão tão hesitante quanto o filme.

A hesitação de Garland, que assina direção e roteiro, pode parecer imparcialidade, mas é conformismo cinematográfico. Não há problema algum em um filme não apresentar respostas; pelo contrário. Cinema, como outras artes, cumprem bem seu papel quando promovem debate e instigam mais perguntas do que respostas fáceis. Mas Guerra Civil acaba respondendo essas perguntas mesmo querendo não fazê-lo — hesitando em deixar o espectador incomodado.

O filme é um road movie, ambientado nas estradas devastadas de um Estados Unidos distópico que vive uma violenta guerra interna contra um governo ditatorial. A viagem que os protagonistas levam o espectador termina em Washington DC, mais especificamente na Casa Branca, onde a experiente jornalista Lee (Kirsten Dunst) e seu colega Joel (Wagner Moura) iriam fazer uma entrevista bombástica (literalmente) com o presidente.

A24/Reprodução
O filme faz um tributo ao jornalismo de guerra, reforçando a importância de ter profissionais cobrindo conflitos in loco, e coragem e do senso de missão que eles assumem. Lee e Joel percebem essa “missão” de formas diferentes. Enquanto Lee está visivelmente esgotada e sofrendo as consequências psicológicas de presenciar por anos todo tipo de violência, Joel está ansioso para a próxima.


Para dar alívio cômico (que são bem poucos) e trazer para quem está na cadeira do cinema uma sensação de cuidado e identificação, dois outros personagens entram no enredo: Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata Jessie (Cailee Spaeny), que cumprem muito bem esses papéis.

Sammy é um veterano correspondente do The New York Times (do que restou dele) e mesmo idoso e fora de forma física, mostra que está completamente ativo no fazer jornalístico investigativo, de contato com as fontes e na capacidade de entender o jogo para informar. Jessie — com atuação marcante de Spaeny, que viveu Priscilla Presley no filme homônimo de Sofia Coppola, lançado em 2023 — é a novata com ânsia de aprender com os mestres e pronta para viver as experiências que poderiam deixá-la mais próxima deles.

O conflito geracional entre Lee e Jessie é o pano de fundo que o diretor encontrou para discutir o papel do jornalismo em condições normais de temperatura e pressão e em situações extremas. Em um dos diálogos mais interessantes do filme, ambientado na arquibancada de um estádio utilizado como campo de refugiados, as personagens reconhecem pontos em comum em suas trajetórias, e um deles dizia respeito aos pais delas que estavam morando na área rural dos EUA como se nada estivesse acontecendo no restante do país. Mesmo não respondendo diretamente através dos personagens, o filme não se furta em mostrar que enquanto alguns se omitem, outros se arriscam para resolver o problema.

O filme tenta não criar mocinhos e bandidos, e tenta humanizar todos os personagens, principalmente com Joel, em alguns momentos de imaturidade e bebedeira. Mas hesitou em incomodar, não abriu as feridas das causas de uma guerra civil que sempre tem dois lados, pelo menos.

Mas não se furta de usar a violência. Em tomadas bastantes reais com sons de tiros e explosões mais altas que o normal para o cinema tradicional — com direito a expressões de desespero em tomadas bastante reais de Moura e Spaeny —, o road movie se transforma em um filme de guerra perturbador, principalmente com a aparição de Jesse Plemons (marido de Kirsten Dunst que fez uma ponta rápida e aterrorizante no filme) vivendo um perverso guerrilheiro enterrando uma pilha de mortos.
A24/Reprodução

Apesar das hesitações e perguntas respondidas sem querer, o diretor foi muito feliz quando introduziu um diálogo que escancara a burrice de uma guerra, de qualquer guerra.
Em uma das paradas da estrada até DC, o grupo de jornalistas encontra dois snipers que disparavam contra uma casa abandonada, onde outro atirador atira de volta. Joel pergunta de que lado os atiradores estão e de que lado estaria o inimigo oculto no interior da casa. A óbvia resposta contraria o senso comum em um mundo polarizado: “alguém está tentando nos matar; e estamos tentando matá-los”.

Trata-se de um filme sobre polarização sem querer parecer estar polarizado. A expectativa de romper com isso não foi alcançada, mas se for ao cinema buscando reflexões sobre o momento que o mundo atravessa, atuações inspiradas e um road movie de guerra de realismo extremo, verá as expectativas sendo superadas. Vale o ingresso, sem dúvida.


Leia crítica de Felipe Fernandes, publicada no blog Opiniões, de Aluysio Abreu Barbosa, aqui
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The Batman: um filme de canalhas e (quase) anti-heróis
13/03/2022 | 09h27
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A estratégia das grandes franquias, quando estão para entrar em cartaz, é usar os fãs para fazer o trabalho de marketing. Em tempos de redes sociais massificadas, até os haters ajudam no engajamento, e cada elemento do triler divulgado é analisado minunciosamente para achar alguma pista do que vem de novo e quais personagens serão exploradas. No Batman de Matt Reeves não foi diferente. Aliás, de diferente ele tem pouco.
“The Batman” é um noir, um “romance policial de suspense”. Daqueles que a gente fala que é bom. “E o Batman?” — “É bom”. Com ponto final, sem exclamações. Mas sem dúvidas vale o ingresso — estética e trilha inspiradas, enredo bem amarrado e boas atuações. Os exageros na duração da película e no uso de uma textura primitiva acabam por deixar alguns momentos maçantes e arrastados.
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A construção da Gotham City de Reeves é o ponto alto do filme. Obscura, corrupta e chuvosa, com tomadas de luminosidade bem pensadas, faz o espectador imergir na trama principal e nas paralelas. Nesses canários é que surge Zoë Kravitz interpretando uma Mulher-Gato com sensualidade e pés no chão; real e exposta. Personagem construída com maestria pela direção e atuação. A máscara, que a princípio pode parecer amadora e malfeita, logo se mostra condizente com a proposta.

Batman e Mulher-Gato rodam a Gotham de moto durante boa parte do filme, mas essas tomadas em nenhum momento entediam. É onde foi criada a tensão sexual e química entre eles. Ambas as motocicletas estilizadas com ar retrô, também sem exageros, mantendo-nos na garupa de forma deleitável.
O sempre esperado “carro do Batman” também não decepciona. Por homenagem ou inspiração, deixa um tom “Taxi Driver”, de Scorsese. Além disso, Gotham City é — sempre foi — uma alusão clara a Nova Iorque, com arquitetura industrial e com iluminação predominante de neons e telões de LED.
E essa cidade que leva “The Batman” nos apresentar aos vilões — canalhas mafiosos e policiais corruptos, Pinguim e o lunático Charada — diretamente para o estilo setentista de Scorsese. Mas também para o suspense investigativo de “Se7en”, de David Fincher, com um maníaco manipulador cometendo crimes bárbaros e deixando pistas direcionadas ao investigador. Nesse caso, Batman.
De forma proposital ou não, os “caras malvados” assumem o protagonismo da trama do primeiro ao segundo ato. Com destaque para John Turturro, que nasceu no Brooklyn e trouxe para o mafioso Carmine charme e frieza ao estilo italiano de Michael Corleone. E destaca-se também um irreconhecível Colin Farrell, que deu vida a um Pinguim assustadoramente real.
Apesar do grande vilão do filme ser o Charada, esse não atendeu as expectativas como antagonista principal. O tom excessivamente fetichista, com direito a máscaras de couro e gemidos de prazer quando matava, contrastou negativamente com uma atuação fraca de Paul Dano. Com pistas infantilizadas que foram deixadas nas cenas do crime, e os diálogos que estruturavam o jogo de palavras do vilão pueris, Charada não entrega o esperado.
Ainda é um Batman?
Mas o que mais incomoda é o Batman, propriamente dito. A escolha arriscada em Robert Pattinson, que se mostra ainda muito preso à saga Crepúsculo, vem agradando uma parcela significativa dos fãs — e trazendo novos —, mas é difícil aos acostumados com um Batman forte, estrategista e com veículos especiais. E apela ao fetichismo, também de forma exagerada. Saindo das sombras fazendo barulho ao estilo do Urso Judeu, do Tarantino “Bastardos Inglórios”, ou em tomadas que focam nas botas, o barulho do ranger do couro é quase ensurdecedor aos ouvidos mais puristas.
The Batman entregou um noir bem amarrado, trazendo as referências que agradam quem gosta de cinema. Agradou público e crítica. Mas é um filme sobre canalhas e o submundo da política e do crime. Um filme policial clássico. Traz um tom crítico necessário em um mundo apodrecido pelas relações de poder. Mas não é um filme para fãs. Tem pouco de Batman, e os vilões se destacam abertamente. Pattinson não entrega uma atuação brilhante e enfraquece demasiadamente o personagem.
Mas ele ainda se nega ao julgamento precipitado e a justiça com as próprias mãos. Mesmo se denominando com “vingança” logo no começo do filme, permanece sem cruzar linhas sem volta, mesmo sendo levado ao limite. Ainda é um Batman. Quase um anti-herói. Não se deixa corromper e não permite que aliados se corrompam. Consegue manter a expectativa para o próximo filme, e uma necessária ponta de esperança. Sim, ainda é um Batman.
 
* The Batman está em cartaz no Kinoplex, em Campos e no Cine Araújo.
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Campos e o Cinema
11/03/2022 | 10h36
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Campos é uma cidade de cinema. Não só por sua história — que certamente daria um filme —, mas por ter sido território ocupado por quase 70 salas de cinema de rua, nos anos 1960 e 70. E com uma característica primordial: a descentralização. De Santo Eduardo ao Centro, passando por Saturnino Braga, indo até Dores de Macabu; praticamente em todos os distritos era possível ver uma sala de cinema.
Hoje, Campos conta com modernas e confortáveis salas de cinema em shopping centers. Nesse fevereiro que passou, Guarus recebeu uma delas, no também recém-inaugurado Plaza Shopping. O primeiro cinema daquele que é um dos bairros mais populosos do município. Cinema com os padrões comerciais. Mas já nos anos 1950, lá estava instalado, e projetando a sétima arte, um charmoso cinema de rua.
O período de crescimento econômico que Campos experimentou, trazido pela indústria sucroalcooleira, propiciou que vários espaços culturais na área central do distrito-sede fossem abertos — e vivenciados. Cafés, livrarias, teatros, bandas de música e cineteatros efervesciam a cidade. A imprensa era ocupada por profissionais gabaritados e dava espaço à intelectualidade campista. O Café High Life e o Cine Teatro Trianon eram palcos elitizados de convivência e cultura. Os distritos levavam cinema aos moradores, servindo como equipamentos culturais descentralizados.
Apenas três distritos não possuíram registros de cinemas de rua: Ibitioca, São Joaquim e Dr. Matos (estes dois últimos extintos na divisão geográfica atual), como informa Joilson Bessa, poeta e mestre em geografia pela UFF Campos. Em seu trabalho de mestrado, Bessa verificou que a sala de cinema de rua mais antiga foi em Goytacazes, então 2º distrito, em 1930. Por lá o maior cineteatro da área rural de Campos, o Cine Teatro São Gonçalo, projetava filmes e documentários.
Nos anos 1950, mais 14 salas eram inauguradas. Duas décadas mais tarde, somavam-se 68 salas de cinema em Campos — 20 na sede, 48 na área rural. Deste ápice, o declínio levou a duas salas apenas, em meados dos anos 1980. O Cine Capitólio e o Goytacá sobreviviam bravamente, até deixarem de existir. O primeiro em 2001 e o segundo vendido para uma igreja evangélica nos anos 1990.
Sem cinema algum entre os anos de 1996 a 1999, a cidade começa a receber as salas de exibição modernas nos anos 2000. Em 2012, o shopping Avenida 28 inaugurava o Kinoplex, uma das maiores redes do país, depois de ter no mesmo local o Cine Ritz e o Cine Magic.
Vale lembrar que a Casa de Cultura Villa Maria tinha uma videoteca charmosa, que ficou acessível a qualquer campista em 1995. Com mostras de cinema e apresentação de filmes que não estavam no circuito comercial de cinema, a Villa foi uma espécie de cinema popular por quase seis anos.
Campos voltando a ser uma cidade de cinema
Os três principais shoppings da cidade contam com grandes salas de cinema, hoje. Ainda há muito para ser trabalhado em descentralização de arte e cultura em Campos, mas “o outro lado do rio” já pode comer pipoca e assistir projeções com padrões modernos. As grandes estreias cinematográficas são exibidas na cidade, sem qualquer prejuízo em comparação com as capitais.
O que não significa dizer que os ditos “cinemas de rua” não tinham qualidades; tanto na escolha das películas como nos equipamentos de exibição. O Trianon e o Goitacá suportavam mais de 1000 cinéfilos iluminados apenas pelos raios de projetores 35 mm — o mesmo utilizado no Capitólio, Coliseu, São José, Drive In e Dom Marcelo, que poderiam acomodar mais de 500 pessoas.
O cinema em Campos também passou também pela academia. Ou quase. A Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que foi projetada por Darcy Ribeiro para ser uma universidade do terceiro milênio, tinha em seu projeto inicial uma escola de cinema. O Solar do Colégio, que hoje abriga o Arquivo Público, seria a sede da Escola Brasileira de Cinema e Televisão. O projeto não foi à frente, mas caso esse sonho de Darcy se tornasse realidade, Campos certamente seria um polo de produção cinematográfica de excelência, como é o ensino da Uenf em outras áreas.
Mesmo não sendo possível a realização do "sonho de cinema" de Darcy, a sua Uenf foi o local escolhido para a pré-estreia do curta-metragem campista “Faroeste Cabrunco”. Na última quarta-feira (9), o curta foi projetado no Centro de Convenções da Universidade. Com um nome “da gema”, o faroeste é estrelado por Tonico Pereira, ator de renome nacional, também campista.
Um cinema, seja de rua ou grandes salas comerciais, não são políticas públicas culturais. Estas são complexas e devem obedecer a parâmetros abrangentes, emancipatórios e democráticos. Mas voltar a ser uma “cidade de cinema” é fundamental para a formação de identidade e fortalecimento da cultura campista. Que a cidade, que ainda não realizou um dos sonhos de Darcy, possa ser (voltar a ser, ou ser ainda mais) uma cidade com cinema “pra cabrunco”.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com