Deixe a arma e pegue os cannoli
28/01/2024 | 10h41
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Era uma terça-feira, meados de fevereiro. A família se reunia em torno da decisão que iria permitir que continuassem no comando da casa. Era uma casa dividida, mas uma das famílias ainda tinha o comando total. Eram eles que confabulavam naquela tarde.

— Temos a maioria, chefe. Não há como perder — disse um dos líderes do baixo clero, Fredo.
— Pode ser, mas ainda temos que confirmar alguns pontos.
— Quais?
— Acho que é muito cedo para a votação. Preciso confirmar alguns pontos, já disse.

O chefe foi consultar Don Tommasino, um antigo capo que servia de consigliere — uma espécie de consultor.

“Há um traidor entre vocês”, Tommasino foi categórico. Embora o chefe confiasse na avaliação do experiente Don, preferiu arriscar. A consulta foi feita por telefone, e na sala estavam alguns associados, soldados e até capitães. Enquanto Tommasino falava, no viva-voz, e reafirmava a existência de um traidor, o chefe fazia sinal negativo aos seus subordinados, indicando que não aceitaria o conselho. A votação para o comando da casa iria acontecer naquele mesmo dia, no final da tarde.
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imagem criada por IA / edmundo.siqueira@gmail.com

Por volta das cinco e meia, a votação seria iniciada. Os membros da família controladora estavam confiantes, e já não lembravam da ligação que ouviram algumas horas antes. A outra família, os Barzini, pareciam tranquilos, e alguns até esboçaram alguns sorrisos sarcásticos.

Clemenza, um capitão que comandava o território da baixada, pediu a palavra e defendeu que o comando deveria ir para a família Barzini. Mesmo se dizendo independente, e ligado apenas ao território que comandava, Clemenza se aproximava cada vez mais da família Barzini. Após terminar sua fala, o capitão recostou-se na cadeira e abaixou a aba de seu característico chapéu, o que o fez cochilar.

Enquanto Clemenza dormia, a votação terminou. Todos ficaram ansiosos para saber o resultado, e definir quem iria ficar comandando a casa pelos próximos dois anos. Fredo iniciou a contagem dos votos e seu semblante rapidamente se transformou. A eleição estava perdida. Um membro da alta cúpula da família Barzini era o novo presidente eleito da Casa.

“Don Tommasino estava certo, aquele velho carcomido! Alguém me traiu!”, pensou Fredo enquanto todos brigavam, entre gritaria e empurrões.

Os dias que se seguiram depois da votação foram desesperadores para Fredo. O chefe cobrava uma solução definitiva, e que ele fizesse o que fosse preciso para continuar controlando a casa, e que descobrisse quem era o traidor. Uma das alternativas para anular a votação foi tentar comprovar que Clemenza não havia votado, mesmo ele tendo declarado seu voto. Não deu certo, todos sabiam que ele dormia durante a votação, mas era claro sua posição a favor da família Barzini naquele momento.

Sobre o traidor, Fredo logo descobriu:

— Foi o Moe Greene, chefe. Aquele salafrário jurou que votava em mim. Fizemos até uma oração, como eu podia imaginar, pelo amor de Deus!
— Subestimamos a sabedoria do velho Tommasino, Fredo. Pagaremos um preço alto, e agora vamos ter que aguentar as consequências.
— Será? Acho que não vamos ter problema, chefe!
— Teremos, e não vai ser agora. Os Barzini são rancorosos, e tem aquela agressividade que o capo deles sempre traz à tona.
— Então vamos ao Joey Zasa, o Barzini que está na capital. Ele pode reverter isso tudo, ele é o chefe agora! — Fredo estava ficando ainda mais desesperado.
— Deixe de bobagem, homem. Quem você acha que arquitetou tudo isso? — finalizou o chefe.

Quase dois anos depois, o chefe confirmava seu receio. A cidade, mesmo controlada por ele e sem demonstrar que perderá o controle nos próximos anos, quase ficou paralisada por ação dos Barzini. Também como previa o chefe, o capo da família rival o atacou de forma dura e agressiva. Até tapas na cara foram prometidos, aos berros, no chefe e em Don Tommasino.

Mas o chefe tinha aprendido a lição de 2022. Era preciso controlar as crises, e tentar fazer com que os interesses das famílias rivais não fossem mais importantes. Mesmo ele sendo de uma família que há anos controla territórios, com interesses bem definidos. Carismático e com aprovação de suas ações pela maioria da cidade, o chefe sabia que precisava manter os amigos próximos, mas os inimigos mais próximos ainda.

Durante a crise mais recente, e após os ataques que recebeu, o chefe foi novamente ao encontro de Don Tommasino, desta vez disposto a seguir seus conselhos. “Nunca odeie seu inimigo, isso afeta seu julgamento”, disse o velho Don. O chefe logo entendeu como uma orientação valiosa, e decidiu acatar. Mesmo sabendo que pessoalmente Tommasini não agia assim, na maioria das vezes.

O chefe fez uma autocrítica, e percebeu que havia quebrado um acordo feito com o capo dos Barzini. Mesmo relativamente novo, sabia do peso de uma palavra dada e descumprida. Se arrependeu, mas conseguiu reverter, dada a reação descabida do capo. “Ele pensa que ainda estamos no tempo dos Bórgias”, pensou o chefe.

Após algumas batalhas, e mesmo tendo ficado ferido, o chefe conseguiu sair fortalecido do mais novo embate com a família Barzini. Seu braço direito, e agora subchefe, Tom Hagen, mesmo sem ser um familiar, ajudou a apaziguar os ânimos e pacificar novamente as brigas entre as poderosas famílias.

A casa continuou sob o comando dos Barzini, mas o chefe conseguiu a maioria dos votos. Até o astuto Clemenza hoje é aliado de primeira hora dele. Fredo saiu da casa, e hoje está tocando as obras da cidade. Don Tommasino mantém-se apenas como consigliere, para a alegria do chefe. Moe Greene ficou desacreditado por todas as famílias, mas ainda é protegido pelos Barzini.

Depois de mais uma batalha finalizada, o chefe aparenta cansaço. E faz uma proposta irrecusável para Tom Hagen: “cuide da cidade por um tempo, para mim”.

Enquanto isso, Vincent Mancini, filho de outro antigo capo da cidade, esse já aposentado, confabula mais uma traição, sedento por um lugar à mesa. Perguntado sobre como ficaria o acordo que fez com o chefe, Mancini finaliza: "Não é nada pessoal. São apenas negócios”.




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Cana e desespero
27/08/2023 | 08h08
Quando ele nasceu, já faz muitos anos, tudo em volta era cana e desespero. Havia algumas casas no centro, e alguns comércios atuavam no salvamento de suprir as necessidades de quem tinha começado a viver em urbanidades, e aproveitar delas as amenidades. Mas havia muitas plantações de cana-de-açúcar, havia muito desespero das pessoas que eram forçadas a trabalhar nesses canaviais de gente gananciosa. A maioria deles, dos gananciosos, não eram gente daqui, que nasceu por perto. Vieram de cidades outras construídas ainda antes, lá depois do oceano. Chamavam de ouro branco o que era produzido aqui. Acho que é uma forma correta de chamar, por que a retirada do doce da cana recebe o mesmo pesar da retirada do ouro nos garimpos e minas. É preciso muita gente para fazer o amarelo do ouro ir parar em jóias, e o doce no pó branco.


Apesar de provocar dor, todos se favorecem do mesmo pó branco que sai das terras da planície, das áreas que o rio não toma conta. A riqueza fez as casas começarem a ficar mais vistosas, as ruas ganharam árvores bonitas e calçamento de pedra, e algumas placas são erguidas onde se vende roupa, livro, panela e lampião. As coisas melhoram lá no centro, parece que mais gente anda e as pessoas começam a ficar mais educadas umas com as outras. Mas em volta ainda é cana e desespero.

Ele foi colocado dentro de uma estrutura oca de madeira que cobria um cilindro de latão que girava em seu próprio eixo. A mãe, seja lá quem ela for, o colocou ainda bebê na boca de lata que ficava para a rua, e girou a manivela até que ele ficasse exposto para o outro lado. Depois de um tempo ele soube que a freira que o buscou no cilindro ficou surpresa, pois ele, ainda bebê e abandonado, não chorava. Talvez já tivesse tomado consciência da vida difícil que teria. Depois de ser recebido pelas freiras da Santa Casa, uma família do outro lado do rio decidiu ficar o bebê, que estava espertinho. Ele cresceu sabendo que não havia nascido daquelas pessoas, mas nunca soube quem o colocou nesse mundo violento, onde já foi obrigado a trabalhar nos canaviais das terras da usina, assim como seu pai de criação.


Quando iam ao centro, comprar sal e querosene, o que ele via não condizia com o outro cenário, do outro lado do rio. Era perto, separado apenas pela água turva e amarela do Paraíba, mas a distância de sua vida para a vida deles, do centro, era brutal. Quando a rua era mais lisa, com as pedras mais homogêneas, a carroça que o pai conduzia até o armazém ficava um pouco mais estável e ele podia ver as lojas e o casario do centro. Com as canelas nuas balançando para fora, pés calçados com borracha e um dos braços abraçados à grade de madeira, ele ficava maravilhado com aquela gente bem arrumada, de chapéu e terno, ou vestidos compridos escuros com colares de pérola, que atravessava a rua de um comércio ao outro, ou esperavam pelo bonde que ele só conhecia à distância e o percebia quando a carroça passava pelo trilho. Do assoalho, segurando no último fueiro, olhou para o homem que o criava guiando a carroça, e pensou em pedir para que parasse um pouco para que pudesse observar a rua. Desistiu. Não conseguiu vê-lo com nitidez; a imagem do homem curvado, de chapéu de palha e camisa de manga comprida, de botão, ficou caleidoscópica com o sol que brilhou por entre os beirais.
Quando finalmente pararam no secos e molhados da rua direita, não teve tempo de observar as coisas que ele gostava — o homem obrigava que ele o seguisse até o balcão. No interior do estabelecimento, o português anotava os pedidos do homem e ele olhava por cima da tampa de madeira que cobria uma vitrina com face de vidro. Enquanto os homens acordavam os preços e quantidades, ele viu um casal de crianças, mais ou menos da mesma idade, brincando. Não perceberam o olhar dele, mas caso vissem, perceberiam não inveja e tristeza, mas perplexidade.
Não entendia como haveria de ser a vida sem as dificuldades que passava. Viu que atrás do menino havia uma pequena pilha de livros, e algumas folhas de papel com rabiscos com tinta colorida. Ele tinha inclinação para as artes e para as linhas da arquitetura da cidade, não sabia bem o porquê, mas gostava de imaginar como aquelas casas e comércios bonitos eram criados a partir do primeiro tijolo. Queria entender como aquelas linhas e detalhes trabalhados nas paredes eram pensados. Pensou que a cidade, a urbanidade, trazia tantas oportunidades, e que daria para muitos ali naquele cotidiano. Ele não percebia, mas a cidade ia crescendo de forma desordenada, e as soluções buscadas iriam atender os que tinham poder e recurso para propô-las. E que os periféricos tinham lugar na urbanidade, mas mantinham-se periféricos e invisíveis.

Indo para casa, agora ao lado do homem que o criou, sabia que voltaria para a cana e o desespero. Mas já não era permitido o trabalho forçado e violento, e mesmo sem ele ter a menor noção, ares republicanos tentavam convencer os que ainda lutavam pela manutenção daquele sistema perverso. O desespero iria diminuir, e até a cana iria ser substituída. Mas ele não percebia.
PABLO PORCIUNCULA/AFP/JC
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Antes das cinzas
18/02/2023 | 09h26
Era o quinto ano que o bloco saía. A pequena cidade passou a conviver com um grupo de 100 ou 150 pessoas, de todas as idades, cantando e bebendo pelas ruas. Teve ano que chegou a ter mais de 200 foliões. Dona Aurora já estava acostumada com o barulho que começava na sexta-feira de carnaval; sua casa era face de rua, exatamente onde o bloco se reunia para sair.

A cidade que Aurora morava, desde criancinha, começou a mudar desde que descobriram que o velho casarão do centro tinha valor histórico, e mais afastado de lá foi achado um sítio arqueológico importante. Pesquisadores do país inteiro vieram para a cidade, um centro de estudos foi criado e um campus da universidade federal foi implantado. O antes estático município, foi se transformando em um movimentado polo universitário.

Daí para o carnaval de rua foi um pulo. Quem morava na cidade e não podia viajar no feriado resolveu comemorar a maior catarse popular do brasileiro por lá mesmo. Primeiro os estudantes, depois alguns professores e por fim gente da cidade toda se juntou à folia.

A família de Aurora era tradicional, nascida e criada, toda, na cidade. A casa que construíram ficava em uma rua de paralelepípedo, que contornava o rio. Não tinha varanda, chegava-se ao interior dela através de uma porta de madeira de duas bandas, com maçanetas redondas, com tinta descascada. O janelão ao lado esquerdo de quem vê, era onde Aurora debruçava-se para olhar como estava o rio, ou para conversar com a vizinhança que passava. No carnaval, a rotina mudava. “Só vou sair na janela depois do bloco” — os foliões acabaram por determinar o horário da casa.

— Dona Aurora! Ô-ô-ô-ô, Aurora! — gritava um folião que saiu do seu grupo e veio de encontro à Aurora, que contrariava a si mesma, e já estava na janela — Dessa vez você vai sair com a gente, não tem desculpa!

Alberto era professor da universidade, daqueles que se transformava em folião nos dias que antecedem a quaresma, sete domingos antes do equinócio de primavera. Desde que o bloco começou, ele se incomodava com dona Aurora, por ela só assistir a festa. Alto, bonachão, calvo, cavanhaque bem aparado, costumava se vestir com austeridade para lecionar. No carnaval, se entregava ao bloco de corpo e alma. Naquela ano saira de sunga que estava coberta por uma saia rodada de fita, e na cabeça um arco, que sustentava a frase “educação salva”.
— Vou não, meu filho! Tem um monte de coisa aqui para fazer! — respondeu Aurora.
— Ah, deixa disso! Vem dona Aurora, quando a gente espanta já é quarta-feira de cinzas.
— Aproveita aí seu Alberto, eu tenho que arrumar as coisas aqui em casa. Um dia eu vou!
— Tá bom, então. Deixa eu ir que já, já é cinzas!

O bloco saiu e Aurora seguiu para sua rotina. Arrumava a casa como se recebesse visitas todos os dias. Impecavelmente limpa, mesa posta, quintal arrumado. Aposentada como professora do Estado, tinha os afazeres domésticos como única atividade que se permitia. A arrumação desse carnaval tinha certa razão de ser. Seu filho mais velho iria passar uns dias com ela, em companhia de sua nora e seus dois netos. Manter tudo em ordem parecia ainda mais uma obrigação para ela.

No domingo, Alberto passou na casa de Aurora novamente, dessa vez com sua esposa. Ambos vestiam camisetas do bloco, com cores vibrantes e brilhos de paetês. Alberto aproveitou a janela aberta e gritou para dentro da casa:

— Dona Aurora! Dona Aurora!
— O que foi, meu Deus? — Aurora veio da cozinha preocupada, secando as mãos no pano de pratos.
— Venha conhecer minha esposa, e passamos aqui para buscar a senhora.
— Como vai, moça? — disse Aurora sorrindo — esse rapaz aí insiste em me levar. Mas não posso, meu filho chega hoje, vai trazer as crianças. Já lhe disse que um dia eu vou, mas não será dessa vez.
— Aurora, Aurora...vamos que já, já serão as cinzas, já avisei a senhora.
— Ele tem razão, dona Aurora. Vamos aproveitar o carnaval! — a esposa de Alberto insistia.

Mas não foi suficiente. Mais algumas palavras trocadas e Aurora conseguiu fugir dos apelos. Tudo deveria estar pronto, as visitas prometeram  chegar antes do anoitecer. Café e alguns bolos prontos, dispostos em uma mesa cuidadosamente organizada com as louças de cada familiar que viria. Depois de um tempo, tudo estava finalizado, e Aurora sentou-se no sofá para assistir a única programação que lhe interessava. Até que na mesinha ao lado, o celular acende a tela, havia chegado alguma notificação. “Mãe, resolvemos ficar mais um pouco aqui no Rio. Vai ter um bloco aqui incrível e queremos ir. Desculpe, mas vamos ver a senhora em breve, tá?”, dizia o filho pela mensagem.

Aurora ficou desolada. Embora morasse sozinha por opção, naquele entardecer a solidão havia ficado pesada. Não sabia o que fazer, ou o que pensar. Alternava em achar um desaforo a desistência da família em visitá-la, com o entendimento de que eles deveriam mesmo aproveitar e curtir o carnaval. Depois de passar um tempo com o cotovelo na guarda do sofá, apoiando o queixo com a mão, refletindo com olhar perdido, voltou à arrumação, começando pelo desmonte da mesa.

Enquanto guardava os pratos no armário, ouvia o barulho do bloco da cidade. Lembrou-se de Alberto, de sua esposa, e das muitas vezes que reclamava para ela mesma da bagunça que o carnaval promovia. Como se uma ideia nova iluminasse seus pensamentos, deixou a mesa como estava e foi para o quarto rapidamente. Havia tomado uma decisão.

Algumas horas depois, Alberto tomava uma lata de cerveja, sentado no meio fio, exausto da folia. Olhou para o bloco que ainda estava animado e não acreditou no que seus olhos viam. Dona Aurora finalmente saiu para o carnaval. Vestia um maiô que provavelmente nunca havia usado, com uma saia jeans e sandálias de dedo. Em cada passador do cinto havia um trapo pendurado, cada um de uma cor. Alberto reconheceu que vinha de um conjunto de toalhas de prato que dona Aurora mantinha intocável. Mas não daquela vez. Rapidamente chegou perto da agora foliã. 

— Dona Aurora? É isso que mesmo que estou vendo?
— Oi Alberto! Eu vim! — respondeu Aurora com os braços para o alto, em tom de voz mais alto que o necessário, demonstrando falta de hábito de conversar com barulho.
— Como fiquei feliz! Pode acreditar! Mas…o que fez a senhora mudar de ideia? — dessa vez Alberto que falava alto, abaixando para falar mais perto do ouvido de Aurora.
— Alberto...já, já chegam as cinzas!

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Conto de Natal: Os Borges
24/12/2022 | 11h27

Nesse Natal os Borges haviam prometido que passariam em paz. Os últimos três, não fizeram promessas. Sabiam que iriam brigar, discutir com veemência e dar socos na mesa. Mas esse seria um Natal diferente; esse era o acordo.

O patriarca dos Borges tinha consciência que havia criado filhos bem diferentes. Prole que pela simetria de gênero parecia combinada com Deus: três homens e três mulheres, nascidos intercalados. A matriarca tentava se convencer que todos eram iguais, mas sabia das discrepâncias.

Mas não eram as diferenças que os faziam brigar. Eram as similitudes. Iguais na passionalidade com que lidavam com a vida, na firmeza de posições e na principalmente na teimosia. As diferenças estavam nas predileções políticas, nas condições financeiras e nas aparências. Mas, nas essências, se igualam a ponto de sair faíscas na contato, ou de criar um campo magnético repelente por serem da mesma positividade.

Para que esse Natal fosse de harmonia, decidiram não comprar presentes. Não haveria amigo oculto, portanto sem especulações e discursos dúbios para que se descubra o presenteado. A ceia haveria de ter os pratos que todos gostavam, na mesma quantidade. Não teria rigidez de horário, e as crianças mais novas não seriam incomodadas para tirar foto.
Qualquer tipo de situação que potencialmente originasse algum conflito teria que ser evitada. Na véspera, os termos foram revisados, as premissas foram reforçadas e todos da família Borges sabiam que esse seria um Natal diferente, finalmente, sem brigas.

Como era feito tradicionalmente, os Borges se reuniram na casa que a mãe havia comprado com o dinheiro de uma grande causa que havia ganhado, e que o pai a decorava com luzes natalinas na entrada, todos os anos.

Todos cientes de suas obrigações, sentaram-se à mesa. Crianças comportadas, assuntos amenos, pedidos cordiais de saleiros, e do vidro de azeite. Já havia dado meia-noite, já era 25 de dezembro, e nenhuma discussão havia sequer começado. Os Borges conseguiram. Cumpriram o que haviam combinado.
Mas todos seguiram para suas casas, com exceção da matriarca e do patriarca, com a sensação de que alguma coisa estava faltando. Não parecia Natal. Talvez as brigas fizessem parte da família Borges. Talvez fosse da natureza deles colocar com veemência suas visões de mundo.
Antes iam dormir mais leves depois da catarse em família; nesse Natal parecia que não havia sido feita a ceia, parecia que era mais uma noite comum.

No almoço de 25 se reuniram novamente. Estavam em silêncio até que a matriarca o rompeu:

— Filhos, netos e marido. Sei que fizemos acordos e fiquei feliz que tenhamos os cumprido ontem. Foi uma ceia linda, tranquila e em paz.

Todos balançaram a cabeça positivamente e deram sorrisos protocolares. A matriarca seguiu:

— Mas foi só eu que fiquei com a sensação de que não fomos nós ali? Foi só eu que pensei que o acordo que fizemos não funcionou apesar de ter sido cumprido?

Depois que a matriarca falou o que todos estavam pensando, a coisa ficou mais leve. Assuntos proibidos voltaram à baila. Os Borges voltaram a ser eles mesmos. Algumas discussões mais fortes começavam a nascer. 

Mas foram no terreno do respeito à opinião diversa. Os Borges pareciam ter entendido depois do curto período sabático, que a saída não é proibir assuntos, e sim trazê-los à mesa sabendo que outros não vão concordar. 
Claro que aquele membro mais exaltado da pequena comunidade que os Borges criaram continuou a falar em tom mais alto. Claro que havia quem continuasse a insistir na opinião própria, mesmo que fosse convencido com argumentos válidos do contrário. Só por teimosia. Na verdade, pouco havia mudado.

Mas algo significativo havia sido acordado entre os Borges, sem precisar de um contrato formal e de qualquer outra formalidade de rigidez. Depois desse Natal, regras de convivência foram estabelecidas à luz do pisca-pisca brega da árvore já desgastada de alguns anos de uso sazonal. Todos pactuaram, pelo instrumento contratual do respeito mútuo, que poderiam discutir sim, mas sem que precisasse, para isso, ofender.

As regras não escritas dos Borges deveriam ser seguidas por todos da família, e ensinado às crianças. A esperança de dias mais respeitosos e ceias sem socos na mesa, nascia daquela manjedoura contratual, daquele estábulo ficcional, mas altamente simbólico.

Política e Natal poderiam conviver sim. Assuntos não deveriam ser proibidos, ou receber censura prévia. Mas se ultrapassassem o limite da liberdade dada pelo próprio acordo feito antes, esse deveria ser impedido de estar sobre a mesa, mas sempre respeitando a Carta de Princípios que os Borges haviam estabelecido mutuamente.

Naquele Natal os Borges haviam feito uma promessa. E cumpriram, mesmo tendo aparentemente a descumprido. Os Borges entenderam: família, seja ela qual composição tiver, é feita essencialmente disso: promessa de dias melhores.
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As cidades e a humanidade
01/10/2022 | 02h39
Ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana.

Mas não apenas uma voz que confessasse algum pecado, ou enxovalho. Mas uma voz essencialmente humana. Que tivesse defeitos, sim, mas que viesse a falar de suas qualidades sem cometer vitupério. Desse tipo, rara. Na política, ainda mais.

A política é uma atividade essencialmente humana. Desgastada, vilipendiada, demonizada, e ainda com personagens beatificados sem qualquer processo diocesano. Mas até por isso, humana.

“Culpado!”. “Inocentado!”— Julgamentos parciais feitos por juízes incompetentes, muitas vezes meros espectadores que se negam a dar um voto, um único apertar de teclas em urnas, mas que se colocam na condição de julgadores da moral alheia. Fariam diferente em seus lugares, sentados em suas cadeiras?

Príncipes na vida — todos eles.

Nós, humanos, escolhemos viver na polis, desde os tempos gregos. E nelas, nas cidades, na politeia, encontramos nossa humanidade. Nos deparamos com a reles, com a latrina, com a dor e a fome.
Atenas,  no período Arcaico, séculos VII – VI a.C., onde a sociedade da cidade era divida em castas: Eupátridas, Georgóis, Demiúrgos, Metecos e Escravos
Atenas, no período Arcaico, séculos VII – VI a.C., onde a sociedade da cidade era divida em castas: Eupátridas, Georgóis, Demiúrgos, Metecos e Escravos / Reprodução
Coletivistas, todos, somos forçados a combatê-las, mas somos levados como reses a aceitá-las. Passamos por irmãos deitados em calçadas das farmácias e não lhes compramos um remédio que seja; um “boa-noite” que lhe caiba. Rezes, irmãos. Precisarão das preces.

As cidades se unem e tornam uma grande coisa. Uma res publica — uma coisa pública. Grande polis, que uma vez formada, passa a depender tanto da política — essa, essencialmente humana e indesculpavelmente vil. Os políticos passam a condição de nobreza. Irrespondivelmente parasitas, acabamos por achar deles.

Ah, quem me dera ouvir de alguém político, a voz humana. Não estão no campo da humanidade, se refugiam em palácios e se acham príncipes de principados alijados da humanidade. Mas, fariam, os plebeus das polis, algo diferente se oportunidade tivessem?

Os plebeus têm sofrido enxovalhos calados. E quando não calam, são ridículos. Mais ridículos ainda são os falsos profetas ou os sacerdotes de um clero apócrifo. Os únicos que se mantêm agachados quando o soco vem — fora da possibilidade, do soco — são os que reuniram algum dinheiro.

Os burgueses, os endinheirados, a burguesia baixa, que só tem vantagem quando esta é pecuniária. Mas que vivem a sofrer a angústia das pequenas coisas ridículas. Aprisionados à limitação intelectual e à desumanidade.

Acabam por formar microscópicas polis, cercadas por grades e guaritas. Cidades fechadas para invasores humanos, mas com casas abertas, sem qualquer muro, para os que nela vivem. Decidiam por viver assim: sem voz humana, num oco pote de ouro, que se descasca, mesmo sem oxigenar.

Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?

Estão na cidade, nos plebeus que fariam igual? Estariam no clero mentiroso? Onde há gente nos covis gradeados dos ricaços? Haverá humanidade nos semi-deuses da política?

Ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana. Mas, mesmo após o silêncio sepulcral de ruas pandêmicas, nenhuma voz humana ecoou. Pelo contrário. Sufocou-se ainda mais os que queriam os brados, mesmo absortos, dos humanos.

Sim, estamos fartos de semideuses. Mas nos assustamos quando nos deparamos com a voz humana; mesmo ela rara e desejada! Afinal, humanos apesar de tudo? Ou renunciaremos a humanidade em nome das diferenças? Nos esconderemos em casulos gradeados?

Seremos, todos, refugiados em um mundo que já foi essencialmente e demasiadamente humano. Mas, talvez, sempre haverá uma voz humana que resistirá. E gritará.



 
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com