Edmundo Siqueira
19/05/2025 20:23 - Atualizado em 19/05/2025 20:33
Reprodução.
Manter um patrimônio histórico de pé — seja ele material ou imaterial — é uma obrigação? Responder afirmativamente pode ser a primeira reação do leitor, principalmente daquele que tem algum tipo de ligação com a cultura, em suas mais diversas formas. Mas será essa a resposta da maioria das pessoas?
Tomemos o caso de Campos dos Goytacazes como exemplo. Indubitavelmente é uma cidade histórica: participante ativa da economia do Brasil quando ainda era colônia de Portugal, berço de personagens relevantes e um dos primeiros lugares do país a contar com energia elétrica, imprensa, livraria e transporte ferroviário. Não faltam elementos, ainda presentes na cidade, não apenas para comprovar toda essa história, mas também compondo a paisagem diária das pessoas. No campo imaterial, o conhecimento acumulado por séculos — produzido na miscigenação entre indígenas, escravizados e portugueses — reflete-se em doces, danças, religiosidade, linguagem e comportamento. Portanto, era de se esperar que existisse, entre os campistas, um sentimento de pertencimento ou, sendo ainda mais otimista, um sentimento de orgulho pela história da cidade.
Mas não é o que se percebe. Não há envolvimento da população com os patrimônios — salvo em grupos sociais específicos —, tampouco se vê problematização sobre seus usos e origens, que em geral fazem parte de uma história de exploração de pessoas escravizadas. Um canal artificial urbano histórico, o segundo maior do planeta, corta o centro da cidade e o seu bairro mais valorizado, mas passa despercebido pela maioria. Chamado de valão, o canal Campos–Macaé nada mais representa para a população do que um depositário de esgoto e um obstáculo físico à travessia da avenida. Fechá-lo, ao que tudo indica, não causaria grande comoção popular; pelo contrário.
Mas por que isso acontece? Antes de culpar a apatia da população ou o desconhecimento sobre a existência e o significado dos patrimônios, é preciso compreender os processos que levaram ao descaso — não apenas da população, mas também de pessoas com poder de mando, investidas em cargos públicos, sejam legislativos ou executivos, que pouco fizeram para proteger os bens históricos. Revelam, assim, o mesmo desconhecimento e a mesma apatia.
Proteger para quê?
A proteção pela proteção não se mostra eficaz. Proteger para quê? Restaurar com dinheiro público sob qual justificativa? Com qual finalidade de uso? Atingindo quantas pessoas? Com que tipo de acessibilidade e de democratização do espaço? Caso essas perguntas não sejam respondidas, manter de pé um patrimônio torna-se uma imposição de uma elite intelectual ou cultural que, muitas vezes, tampouco tem respostas para tais indagações.
Saindo um pouco de Campos, temos um exemplo exitoso de uso de patrimônios históricos na capital, Rio de Janeiro: Theatro Municipal, Igreja da Candelária, Arcos da Lapa, Forte de Copacabana, Cais do Valongo, Real Gabinete Português de Leitura — todos são utilizados e valorizados pela população carioca e por um intenso fluxo turístico. Embora tenham realidades distintas, tanto Campos quanto o Rio precisam lidar com os espólios de sua própria história, e decidir se agem ou se omitem.
Theatro Municipal - centro do Rio de Janeiro
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Prefeitura do Rio de Janeiro (RioTur)
De volta à realidade campista, observamos que patrimônios significativos pertencem a pessoas físicas, associações religiosas ou classistas e outros tipos de representação da iniciativa privada. Não há óbice à restauração de patrimônios por particulares, mesmo que falem à coletividade. Pelo contrário: é obrigação legal dos proprietários zelar pelo bem. Mas a realidade mostra que, além de dispendiosa, a preservação exige planejamento e ações de longo prazo, com conhecimentos técnicos específicos. A exploração econômica de um patrimônio histórico é possível e desejável em alguns casos, mas depende de investimentos e está sujeita a regras que muitas vezes inviabilizam o projeto — o que leva a iniciativa privada a não assumir tais riscos.
Cabe a quem proteger?
Partindo-se do princípio de que um patrimônio histórico deve ser preservado por seu valor cultural, memorialístico, artístico ou educativo — mesmo que não haja clamor popular por sua manutenção —, caberia ao poder público promover seu restauro e conservação. Ora, se um bem material merece, pelos motivos citados, perpetuar-se no tempo para que a coletividade possa desfrutá-lo, nada mais justo que seja ela própria a arcar com os custos.
O canal Campos–Macaé já citado pode cumprir funções como recurso hídrico, auxiliar na saúde pública, servir de modal de transporte e outras funções que uma obra de tais características possa abarcar. Isso é algo que se torna palpável à população e, portanto, justifica ações públicas. Mas tomemos o exemplo de um solar do século XIX, localizado às margens de uma rodovia federal, distante do centro de Campos e pertencente a particulares (família Lamego). Conhecido como Solar dos Airizes, o local foi moradia do geógrafo, escritor e pesquisador Alberto Lamego e abrigou uma vasta biblioteca e pinacoteca, que atraíram visitas ilustres.
Inicío das obras de sobrecobertura no Solar dos Airizes
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Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Hoje, o solar encontra-se em estado lastimável, deteriorado pelo tempo e pelo abandono. Possuindo tombamento federal, os herdeiros foram impedidos de vendê-lo ou demolí-lo, e compelidos a preservá-lo. Na prática, o solar foi completamente abandonado. Algumas ações pontuais tentaram adiar sua ruína, e uma ação judicial foi promovida pelo Ministério Público — a quem compete constitucionalmente a defesa do patrimônio histórico, como bem difuso. A Justiça entendeu que a família não tinha condições de manter o imóvel e condenou a Prefeitura de Campos a restaurá-lo integralmente e lhe conferir uso.
O valor do Solar dos Airizes é inquestionável — não apenas por sua arquitetura e por representar parte da história da região, mas também pela imaterialidade cultural e artística que abrigou. É, também, um bem educativo: erguido com mão de obra escravizada, revela, em sua forma e distribuição espacial, como a sociedade campista e brasileira convivia com a escravidão — e dela se beneficiava economicamente. Mas esse valor é comunicado à população? Os elementos que o tornam único dialogam com a maioria das pessoas?
A resposta a essas perguntas está diretamente ligada à ação ou omissão do poder público. Embora “agradar ao público” não seja a finalidade dos poderes constituídos, é necessário que o valor de um bem protegido seja reconhecido pela população — ou, ao menos, por parcela significativa dela. Quando permanece restrito aos nichos acadêmicos e culturais, um patrimônio perde sua razão de existir, pois perde a capacidade de exercer um papel educativo e transformador coletivo.
Não se trata, porém, de medir a importância histórica de um patrimônio por sua popularidade, mas é necessário que ele tenha significado — e, ainda mais importante: uso. O Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, tem significado e uso, e dialoga com uma parte significativa da cidade. Embora ainda elitizado, caso entrasse em processo de abandono, não passaria despercebido — nem pela população, nem pelo poder público, tampouco pela iniciativa privada, que veria ali uma oportunidade de investimento. O mesmo não se aplica ao Solar dos Airizes. Estaria a diferença na relevância histórica dos imóveis ou no uso que possuem?
Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Como proteger?
A proteção ao patrimônio histórico não é apenas material. Os instrumentos legais hoje existentes, como o tombamento, não garantem sua preservação. A forma mais eficiente de garantir a sobrevivência de um patrimônio — em Campos, no Rio, no Brasil e no mundo — é conferindo-lhe uso.
Usar um patrimônio não significa necessariamente lucrar com ele. Um museu não precisa dar lucro, pois serve como abrigo de itens, documentos e informações que a coletividade reconhece como importantes. No entanto, um museu pode e deve servir de espaço para exposições e eventos com retorno financeiro, atuando com cultura e arte.
A palavra-chave para a sobrevivência de um patrimônio é parceria, seja ela público-privada ou não. No exemplo do Solar dos Airizes, não se pode imaginar sua sobrevivência sustentável sem que um uso lhe seja conferido. Esse uso pode envolver a iniciativa privada, valendo-se da obrigação do poder público em restaurar o bem e oferecendo, em contrapartida, empregos, desenvolvimento econômico e turístico, e colaboração na manutenção do imóvel.
É possível, assim, percorrer um caminho inverso da preservação: salvar primeiro, dar sentido depois. A partir do momento em que um uso planejado e coerente com as especificidades do bem é colocado em prática e comunicado à população, as vivências ali geradas criam memórias coletivas e senso de pertencimento.
Salvar um patrimônio é, antes de tudo, uma escolha política e cultural. Escolhe-se preservar não apenas uma edificação, mas a memória que ela carrega e os significados que pode produzir. Em vez de esperar que o sentimento de pertencimento brote espontaneamente da população, talvez devêssemos construí-lo a partir do uso, do acesso, da partilha e da vivência. Um patrimônio vivo não é o que apenas permanece em pé, mas o que se faz presente na vida das pessoas. O Solar dos Airizes, como exemplo ilustrativo, ainda pode cumprir esse papel — se houver coragem para restaurá-lo e inteligência para devolvê-lo à cidade.