
Em Minas Gerais, no Palácio Tiradentes, o governador Zematustra se preparava para uma entrevista que daria no outro dia. Às turras com papéis e vídeos de Whatsapp, não conseguia se concentrar e sentiu que precisaria de ajuda. Mandou chamar Salomé, a assessora que considerava a mais inteligente da equipe.
Em alguns minutos, Salomé adentra nos aposentos do governador.
— Salomé, por favor, me ajuda nesse trem aqui, pelo amor de Deus.
— Claro, governador. O que o senhor precisa?
— Eu vou me lançar a presidente amanhã.
— Nossa, governador, que passo importante! Mas…o senhor se sente preparado?
Zemtustra olhou a assessora por cima dos óculos:
— Uai, você não me acha preparado?
— Claro que acho — Salomé não consegue esconder o desconforto — mas precisamos treinar para as perguntas difíceis.
— Então começa, menina. Pergunta o que quiser, que eu me saio bem demais da conta.
— O que o senhor teria a dizer sobre Adélia Prado?
— A funcionária da rádio? Esse assunto de novo, Salomé? Cansa não?
— Pelo visto o senhor continua sem saber quem é.
— Claro que sei quem é a Adélia! Estava brincando com ocê, sô. Grande escritora!
— Ufa! — a assessora fica menos tensa, pela primeira vez desde que começou a conversa.
Zematustra continuou rapidamente:
— Autora de A Hora da Estrela. Poetisa de primeira. Viu? A gente comete algumas gafes mas se corrige, menina.
— Não governador, por favor — a expressão tensa volta ao rosto de Salomé — essa obra é de Clarice Lispector.
— Ah, as duas são mineiras, ninguém vai perceber.
— Clarice é ucraniana, governador.

— Política, vamos falar de política.
— Ótimo. O que o senhor pensa da ditadura militar de 64?
— Cê tá muito esquerdinha. Esse assunto já passou.
— Eu sou liberal convicta, governador. Tá, mas e sobre o Brics?
Zematustra faz uma pausa e mexe nos papéis sobre a mesa. Acha uma anotação, e com uma expressão de desdém responde:
— Olha aqui, veja bem, são países que não são cristãos como nós. Como pode o Brasil se aliar a isso?
— Mas a questão religiosa não é o cerne do bloco, governador. Por favor, isso não tem sentido.
— Diga por você, Salomé. A Rússia comunista, então não tem nem religião aquele povo…
— Em sua maioria são cristão ortodoxos. Senhor.
— Pois sim. E a Índia? Que tipo de religião eles têm por lá? Vai saber.
— São hindus, senhor. Em sua maioria.
— São uns indolentes mesmo.
— Pelo amor de Deus, governador. O bloco não é uma missa, é uma aliança econômica.
— Ah, agora você fala de Deus?
— Deus está morto, governador.
O chefe do executivo mineiro se espanta e afasta a cadeira da mesa violentamente.
— Você perdeu completamente o juízo, menina? Como fala uma asneira dessa?
— Desculpe, senhor. Mas achei que o senhor entenderia. Seu nome não é em homenagem a Nietzsche?
— O menino da contabilidade? O que está insinuando agora Salomé? Está passando de todos os limites.
Salomé põe as mãos na testa, e depois cobre a boca com uma delas com os olhos arregalados. Zematustra fica sem entender. A assessora lembra das outras declarações recentes: que os pobres deviam comer banana com casca para economizar, que moradores de rua deviam ser “guinchados” como carros estacionados em local proibido. O currículo estava completo
— É bem pior do que pensei, governador. Não é possível o senhor se lançar candidato à presidência — diz Salomé tentando se recompor.
— Você fala que Deus está morto e diz que eu sou pior que pensou? O que você é, uma comunista, Salomé?
— Deus está morto é um aforismo, senhor. E já disse que sou liberal.
— Liberal até demais! E que agora virou um aforismo mesmo, você está fora! Demitida!
— Ah, Graças a Deus!
Salomé sai pela porta, aliviada. Zematustra volta aos papéis de WhatsApp e repete em voz baixa, como se fosse lema de governo:
— Frankenstein cristão…gostei disso.