Cidades naturais: o excesso e a escassez das águas em Campos e suas implicações
19/05/2024 | 11h01
 
Registro de cheia na área urbana de Campos dos Goytacazes: região tara luta histórica com o acúmulo e a estiagem de recursos hídricos
Registro de cheia na área urbana de Campos dos Goytacazes: região tara luta histórica com o acúmulo e a estiagem de recursos hídricos / Imagem: João Pimentel

onseguiram! Estão tirando ali”, comemorava uma moradora ao ver sua vizinha ser retirada de uma casa alagada em Santo Eduardo, distrito de Campos dos Goytacazes, cidade de porte médio com cerca de 500 mil habitantes, situada na região norte do estado do Rio de Janeiro. Localizado próximo a divisa com o Espírito Santo, Santo Eduardo estava completamente submerso em março deste ano, pelas fortes chuvas que caíram de um só vez na região.


A moradora foi resgatada pelo telhado de sua residência pelo comerciante Guilherme Fiuza, depois que ouviu seu pedido de ajuda. “Ela estava pedindo socorro, e quando entrei pelo telhado, com ajuda de um sobrinho da senhora, conseguimos resgatar ela com vida, graças a Deus”, relatou Fiuza a uma reportagem de TV. As chuvas intensas na Bacia do Rio Itabapoana provocaram a cheia repentina em Santo Eduardo. Dados da estação meteorológica mais próxima ao local indicaram que 270 mm de chuva caíram em 24 horas na região. Desde meados dos anos 1970 a localidade não via uma cheia tão devastadora.

O Rio Itabapoana é um exemplo de como os recursos hídricos determinam as localizações geográficas de cidades e estados. O seu curso é exatamente a divisa entre os estados do Espírito Santo e o Rio de Janeiro. Em Campos, além do Itabapoana e de outros corpos hídricos, o Rio Paraíba foi o principal motivo de escolha dos colonizadores para criar um núcleo urbano, ainda no século XVII.
Enchente em Santo Eduardo em março de 2024, distrito de Campos, próximo à divisa com o Espírito Santo e do Rio Itabapoana que determina as cheias na região e delimita a fronteira.
Enchente em Santo Eduardo em março de 2024, distrito de Campos, próximo à divisa com o Espírito Santo e do Rio Itabapoana que determina as cheias na região e delimita a fronteira. / PMCG


Um século antes, em 1534, foi implantado o sistema de capitanias hereditárias pelo rei Dom João III de Portugal como uma forma de promover a colonização e o desenvolvimento do Brasil. Campos cumpria o que estava na “Carta de Doação das Capitanias Hereditárias”, que permitia aos donatários a criação de vilas, desde que situadas ao longo da costa ou dos rios.

João Pimentel
A escolha do local da então Vila de São Salvador cumpria uma determinação legal de Portugal, mas também era a escolha possível, pelas determinações da própria geografia da região. Na margem sul do Paraíba, este era o local “predestinado” para Campos, como afirmou o geógrafo e geólogo Alberto Lamego, em seu livro “O Homem e o Brejo”, publicado em 1945 pelo IBGE.


“Só existe um lugar alto na inflexão do rio ocupada pela cidade. Só ali, naquele local predestinado, é que, justamente ao centro e ao alto do fértil lençol argiloso, poderia nascer a vila, ao mesmo tempo ao abrigo das enchentes e à beira do caminho líquido para o mar”, dizia Lamego.
Nas vastas planícies alagadiças do que hoje se compreende como Norte e Noroeste Fluminenses, com seus sinuosos cursos d'água, criou-se um solo muito fértil que logo atraiu os olhares do Império e possibilitou que Campos pudesse ser a potência em gado e cana-de-açúcar em seus primeiros ciclos econômicos. Os aluviões, guardiões silenciosos de eras passadas, como depósitos de sedimentos, possibilitaram essa fertilidade.

A água como fonte de riqueza e tragédias

A cada inundação, a cada mudança no curso d'água, são depositadas novas camadas de sedimentos, formando um registro geológico da passagem do tempo. Nos estuários — local onde rios encontram o mar — os aluviões criam paisagens híbridas, onde água doce e salgada se misturam, constituindo-se um berço de biodiversidade e de recursos naturais.

Porém, toda essa riqueza também traz problemas. Esses elementos somados moldam não apenas a terra, mas também determinam a vida que dela brota. Quando o curso das águas e das chuvas provocam aumento dos níveis hídricos, o rio e as lagoas avançam sobre a urbanidade que nasceu em volta deles. Assim como a escassez gerada pelos ciclos desses recursos dificultam sobremaneira o cultivo e toda cadeia produtiva que depende de água.
Os irmãos João e Frank Moraes pastoreiam o gado em meio ao mato seco em Cardoso Moreira
Os irmãos João e Frank Moraes pastoreiam o gado em meio ao mato seco em Cardoso Moreira / Brenno Carvalho / Agência O Globo
Histórico das maiores cheias em Campos dos Goytacazes e região Norte Fluminense.
Histórico das maiores cheias em Campos dos Goytacazes e região Norte Fluminense. / Edmundo Siqueira


A dificuldade em lidar com uma quantidade abissal de água não é uma exclusividade de Campos dos Goytacazes. A região sul do país atravessa uma das maiores tragédias climáticas já registradas, com 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas (números deste domingo, 19). Com similaridades preocupantes com Campos, o Rio Grande do Sul precisa encontrar maneiras de coexistência de suas áreas urbanas com a abundância de rios e seus afluentes.

Em Campos, adaptações permanentes foram feitas para a conquista dos rios e a criação de novas rotas para escoamento de água e da produção. Entre as intervenções mais importantes estão barragens, diques e canais, que foram construídos a partir do início do século XX, principalmente.

A bacia do Paraíba do Sul é a maior e mais importante do sudeste brasileiro, usada para abastecer um contingente de mais de 15 milhões de pessoas. Segundo dados da ANA - Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km2 de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro.

O rio Paraíba do Sul nasce em São Paulo, com o resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga. Essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, em abastecimento, diluição de esgotos, irrigação e geração de energia hidrelétrica.

As enchentes em Campos

Desde que começaram a ser monitoradas, as cheias do rio Paraíba aconteceram com mais intensidade nos meses de janeiro e fevereiro, com alguma recorrência em março, onde as águas fecham o verão. Porém, em um planeta em desequilíbrio climático, a previsibilidade pode ser um elemento faltante nas ações de prevenção.

Órgãos e estruturas de controle dos sistemas de proteção das cheias e estiagens de Campos dos Goytacazes e região.
Órgãos e estruturas de controle dos sistemas de proteção das cheias e estiagens de Campos dos Goytacazes e região. / Edmundo Siqueira


Em 2008, as cheias em Campos começaram em dezembro, como exceção à regra e como consequência de uma cheia histórica ocorrida no ano anterior, 2007, que disputa como a maior já vista com 1966.

No imaginário popular de Campos, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência geográfica e outra, e pela fragilidade de dados apurados no período, é difícil medir com exatidão a maior cheia da série histórica.

Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas, das chuvas, e das respostas fluviais, do rio Paraíba e seus afluentes, o evento de 1966 foi o maior, segundo os especialistas. Saindo do seu leito em 30 km no sentido da margem esquerda e por assustadores 120 km em sentido contrário, atingindo os municípios de São Fidélis e Itaocara, na confluência do Paraíba com o Rio Pomba.

O jornal 'O Globo' informava, no final de janeiro daquele ano, que havia 3.815 desabrigados em Campos, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.

Em 2007, um evento climático devastador assolou Campos e região. Naquele ano, nos primeiros dias de janeiro, o Paraíba do Sul transbordou, atingindo a marca de 11,20 metros, bastante superior à cota crítica de 10,40. Das três pontes que faziam a ligação entre as margens direita e esquerda em Campos, apenas a General Dutra ficou transitável. Mas não durou muito. Um dia depois não suportou a correnteza e dois pilares afundaram.

Se não bastasse, dois diques se romperam. Na margem direita, em dois pontos: Alto do Viana, em São João da Barra, alagando cerca de 400 hectares de pasto e fruticultura, e na altura do bairro Pecuária, na área urbana de Campos. Na margem esquerda, próximo à localidade de Abadia, uma cratera foi aberta com mais de 100 metros de largura, inundando todo o entorno, constituído em sua maior parte por médias e pequenas propriedades rurais.
Foz em delta do Rio Paraíba do Sul: Atafona como estuário
Foz em delta do Rio Paraíba do Sul: Atafona como estuário / Comitê de Bacia da Região Hidrográfica do Baixo Paraíba


Na área residencial, um estudo da Defesa Civil de Campos dava conta de dez mil imóveis afetados, com estruturas comprometidas pelas inundações. Foram contabilizadas 48.068 pessoas desalojadas e 100.145 afetadas pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.

Os prejuízos foram estimados, em valores da época, em 100 milhões. Atualizando a cifra, 323 milhões de reais foram contabilizados como perdas pela enchente de 2007. Mais de 50% da safra de cana-de-açúcar perdida. A economia urbana foi totalmente afetada.

A prevenção possível e a mitigação dos riscos

Os sistemas de proteção mais eficientes e usuais são as barragens. Na bacia do Rio Paraíba existem cinco ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca, em São Paulo, e no Rio de Janeiro, Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos.

Além de barragens, as Centrais Hidrelétricas (PCHs) estão distribuídas ao longo dos afluentes, e como artérias fundamentais para o sistema funcionar bem, a região do Baixo Paraíba conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão.

Os canais foram construídos em Campos para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, onde as lideranças de Campos encomendaram ao engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, um plano de construção. Depois de Brito, o extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) atuou fortemente em Campos, construindo uma ampla malha de canais e diques de contenção por toda extensão da planície.
 
Tragédia de enormes proporções no Rio Grande do Sul, 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas.
Tragédia de enormes proporções no Rio Grande do Sul, 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas. / Rafa Neddermeyer - Agência Brasil


Barragens, diques, canais, PCHs e comportas formam um complexo sistema que pretende não apenas conter o avanço das águas nos períodos de cheia, como contornar os efeitos na estiagem. Desde de 2009, órgãos técnicos foram criados para gerir esses elementos, e atuar em conjunto com prefeituras e estados da federação. Foram criados os Comitês de Bacias Hidrográficas em todo Brasil e no Rio de Janeiro, o Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap) e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea).

Sem manutenção, sem proteção

Embora exista um sistema atuando de forma perene para tentar controlar, prever e minimizar as tragédias provocadas por cheias e estiagens, com órgãos e pessoal especializados e comprometidos, para que seja realmente efetivo é necessário que o poder público atue também de forma perene na limpeza e manutenção.

Sem manutenção adequada, o sistema fica caótico. A drenagem que os canais artificiais e comportas manobráveis pela ação humana deveriam promover fica extremamente fragilizada. Com os eventos de 2007 e 2008 recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos, mas pouco de ação preventiva continuou a ser feita.

A maioria dos canais de Campos não recebe manutenção adequada, e muitos encontram-se completamente obstruídos por sedimentos e detritos jogados indiscriminadamente pela população e empresas, impedindo o correto escoamento das águas. Uma das principais artérias do sistema, o canal Campos-Macaé, construído em 1844 com aproximadamente 100 km de extensão, sendo o segundo maior canal artificial do planeta e a maior obra de engenharia no período do Império, está negligenciado e abandonado, e mesmo em área urbana é depósito de lixo e poluição, gerando diversos problemas e impedindo as soluções.

Campos e região possuem todos os elementos para conviver com os movimentos das águas de forma minimamente harmoniosa, e para que tragédias como a de Santo Eduardo não voltem a acontecer, ou pelo menos que não causem tantos estragos. O desequilíbrio climático causado pelo aquecimento global exige que sociedade e poder público se mobilizem não apenas na contenção de danos, mas na prevenção.
Comentar
Compartilhe
Os desastres evitáveis na planície alagadiça
23/12/2022 | 10h35
PMCG
O município de Campos dos Goytacazes é, na maioria de seus 4.032 km² de extensão, uma planície alagadiça. A ocupação do solo campista, desde os primórdios da colonização, partiu dessa evidência topográfica.
A relação de Campos com suas águas sempre foi determinante, não apenas nas questões econômicas que envolvem o recurso hídrico, mas também em nas relações sociais e culturais. São águas que trouxeram riqueza, mas também desastres.


Lidar com tanta água sempre exigiu muito esforço e recursos dos que aqui vivem e produzem. Os indígenas que habitavam esse solo, antecedendo os colonizadores, também dependiam da relação com as águas para sobreviver. O nome de uma das principais tribos da região — os Goitacá — significa em Tupi Guarani “homem que sabe nadar” ou “homem corredor”.
Historicamente foram feitas adaptações para a conquista dos rios e para a criação de novas rotas de escoamento de água e produção. Entre as intervenções mais importantes estão as barragens e os diques, e principalmente uma enorme rede de canais (uma das maiores do mundo) que foi construída a partir do início do século XX.

A cidade de Campos é cortada pelo rio Paraíba do Sul, “dono” da maior e mais importante bacia do sudeste brasileiro. Segundo dados da ANA – Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km² de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro, abastecendo um contingente de mais de 15 milhões de pessoas.

O rompimento da "última barreira”

João Pimentel
O rio Paraíba do Sul nasce no estado de São Paulo, sendo resultado da confluência de outros dois rios: Paraibuna e Paraitinga. O “velho Paraíba” é essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, atuando não apenas no abastecimento, mas também na diluição de esgotos, irrigação e geração de energia. É fonte de riqueza, mas também origem de calamidades.

Além do Paraíba, a planície alagadiça é formada por enormes lagoas e pântanos. Apenas a Lagoa Feia, localizada na divisa dos municípios de Campos e Quissamã, possui mais de 138 km de perímetro.
As intervenções humanas para controlar esse ecossistema particular, por vezes não são suficientes, seja pela dificuldade em controlar a natureza e o curso natural das águas, ou por uma visível falta de manutenção. Situação que leva pontes não resistirem e diques serem rompidos.

Na última segunda-feira (19), o histórico dique de contenção da avenida XV de Novembro (conhecida como Beira-Rio) rompeu. O dique, construído nos anos 1970, deixou uma cratera no centro da cidade e assustou a população, principalmente um motorista que passava na hora do rompimento e despencou junto com a estrutura — apesar do susto, teve apenas ferimentos leves.
Nesta sexta-feira (23), o município decretou estado de emergência, e alertou sobre o rompimento da “última barreira frente à inundação das águas do rio”:

“O dique de contenção, na Avenida XV de Novembro representa uma contingência contra as cheias do Rio Paraíba do Sul e no momento encontra-se seriamente avariado e em processo de colapso estrutural, sendo este a última barreira de preservação do município frente à inundação das águas do rio, haja visto que o centro da cidade se encontra abaixo do nível da calha média do rio”.
A prefeitura instituiu um Gabinete de Gerenciamento de Crise  para acompanhar a situação do dique e das atuais cheias. 

Os desastres

Historicamente, os principais desastres relacionados às cheias do rio Paraíba em Campos, aconteceram no início dos anos de 1943, 1966, 1979, 1985, 1997, 2007, 2008 e 2022.
Registro de cheia no centro de Campos
Registro de cheia no centro de Campos / João Pimentel


Em 2007, nível do rio Paraíba chegou a assustadores 11,20 metros, ultrapassando em muito a cota de transbordo, que é de 10,40. Mas, no imaginário popular dos campistas, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência e outra, e pela fragilidade de dados apurados em 66, especialistas dizem que é difícil afirmar com exatidão qual, de fato, foi a maior cheia da série histórica.

Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas (das chuvas), e das respostas fluviais (do Paraíba e seus afluentes), o evento de 1966 foi catastrófico. À época, já haviam sido construídos alguns diques de contenção (o dique da margem esquerda do rio foi feito em 1969), mas eles eram muito menores em altura do que são hoje, produzindo um significativo aumento do espraiamento (ou espalhamento) das águas.

Em janeiro de 1966 Campos tinha pouco mais de 250 mil habitantes, com 54% na área rural. A “grande cheia” registrou 3.815 desabrigados, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.

Rompimento de diques

Depois do desastre dos anos 1960, o município melhorou as medidas de proteção e prevenção, e produziu um controle hídrico mais eficiente. Porém, a falta de limpeza dos canais e de manutenção nas estruturas de defesa, contribuíram para que Campos assistisse em 2007 um evento ainda mais danoso que 1966 em termos de prejuízos econômicos e ambientais.
Edmundo Siqueira


Naquele ano, o rio Paraíba do Sul transbordou, e apenas uma das três pontes que existiam (a General Dutra), e que faziam a ligação entre as margens direita, ficou de pé. Mas não durou muito. Em 6 de janeiro de 2007, dois pilares da última ponte transitável ficaram seriamente comprometidos.
Se não bastasse, dois diques se romperam logo depois: em Alto do Viana, alagando cerca de 400 hectares de pasto e fruticultura, e na altura do bairro Pecuária, na área urbana. Na margem esquerda do Paraíba, próximo à localidade de Abadia, uma cratera foi aberta em um dique, com aproximadamente 100 metros de largura, inundando todo o seu entorno.

Os prejuízos foram estimados, em valores corrigidos, em mais de 332 milhões de reais — apenas na agricultura. A economia urbana foi totalmente afetada pelo caos no transporte, com o desabastecimento de água potável e problemas na coleta de lixo.

Naquele ano foram contabilizados mais de 10 mil imóveis inundados, 48.068 pessoas desalojadas e outras 100.145 afetadas de alguma forma pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.

As cheias do ano seguinte, 2008, foram consideradas como consequências dos diques rompidos. Em janeiro de 2022, o rio Paraíba teve a cota de transbordo novamente ultrapassada, e uma nova enchente acometia Campos dos Goytacazes.
Histórico de cotas no ano de 2022 - dados fornecidos pelo Comitê do Baixo Paraíba
Histórico de cotas no ano de 2022 - dados fornecidos pelo Comitê do Baixo Paraíba / Edmundo Siqueira


Diques e barragens suficientes, mas historicamente mal administrados

Segundo o Comitê do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, na bacia do rio Paraíba existem cinco barragens, ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca em São Paulo, e Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos, no Rio de Janeiro. Ao sistema, adiciona-se Centrais Hidrelétricas (PCHs), que são distribuídas ao longo dos afluentes.

A região conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão. Em Campos, os canais foram construídos, pincipalmente por intervenções do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, elaborada pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito.

É essa rede que se mantém até hoje.  O processo de drenagem se intensificou após a segunda metade da década de 1960, coincidindo com o período pós desastre de 1966.

Sem manutenção adequada, a drenagem que os canais artificiais deveriam promover fica insuficiente. E o sistema ficou caótico. Com os eventos de 2007 e 2008, recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos, mas não foram eficientes para conter novos desastres.

O rompimento do dique da XV de Novembro evidencia que falta muito para Campos e região possuírem a estrutura necessária para impedir grandes cheias, e principalmente conter os danos causados. Enquanto o necessário não for feito, a planície alagadiça continuará mostrando que os desastres são inevitáveis.

Comentar
Compartilhe
Sob o domínio das águas: as grandes enchentes de Campos
11/01/2022 | 06h42
Foto Phillipe Moacyr/Folha da Manh..
A relação de Campos dos Goytacazes com seus recursos hídricos não é apenas embrionária, mas é essencial para entender as relações econômicas e sociais contemporâneas. A ocupação do solo, desde os primórdios da colonização, se deu por essa relação. Goitacá, que é a designação dos indígenas que aqui habitavam, significa "gente que sabe nadar” — em tupi, aba ("homem"), ytá ("nadar") e quaa ("saber"). Campos está em uma região formada por um ecossistema particular, de abundância de rios, lagoas e pântanos.
Rio paraíba 11/01/2021 : Veja aqui.
Lidar com tanta água sempre exigiu muito esforço e recursos dos que aqui vivem e produzem. Historicamente, adaptações permanentes foram feitas para a conquista dos rios e a criação de novas rotas para escoamento de água e da produção. Entre as intervenções mais importantes estão barragens, os diques e os canais, que foram construídos a partir do início do século XX, principalmente.
O Brasil possui os maiores reservatórios de água doce do planeta, que estão divididos em bacias hidrográficas. Essas bacias são formadas por um rio principal, seus afluentes e subafluentes. A bacia do Paraíba do Sul é a maior e mais importante do sudeste brasileiro, usada para abastecer um contingente de mais de 15 milhões de pessoas. Segundo dados da ANA – Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km² de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro.
O rio Paraíba do Sul nasce em São Paulo, com o resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga. Essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, para muitos fins como abastecimento, diluição de esgotos, irrigação e geração de energia hidrelétrica. É fonte de riqueza, mas também origem de calamidades.
As enchentes
O norte fluminense sofre de tempos em tempos com as consequências de enchentes desastrosas. No conceito acadêmico, 'desastre' pode ser definido como “uma séria ruptura do funcionamento, da sociedade que causa perdas humanas, materiais ou ambientais generalizadas, que excedem a habilidade da sociedade afetada de recuperar-se usando somente seus próprios recursos”. É uma definição que se adequa perfeitamente às cheias enfrentadas pelos fluminenses.
Historicamente, os desastres (eventos que podem ser assim considerados) em Campos aconteceram nos seguintes anos, nos meses de janeiro e fevereiro: 1943, 1966, 1979, 1985,1997, 2007 e 2008 (a única exceção que teve início em dezembro).
1966
A enchente de 2007 foi um evento desastroso, sem a menor sombra de dúvida. Porém, no imaginário popular de Campos, principalmente entre os moradores mais antigos, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência geográfica e outra, e pela fragilidade de dados apurados em 66 comparativamente com 2007, é difícil medir com exatidão a maior cheia da série histórica. Mas vamos a alguns fatos:
Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas, das chuvas, e das respostas fluviais, do rio Paraíba e seus afluentes, o evento de 1966 foi o maior, segundo os especialistas. À época já haviam sido construídos alguns dos diques de contenção (o dique da margem esquerda foi feito em 1969), mas eles eram muito menores em altura do que são hoje, contendo menos o rio e produzindo um significativo aumento do espraiamento, ou o espalhamento, das águas.
Em 1966, o rio Paraíba do Sul saiu do leito em 30 km no sentido da margem esquerda. A inundação em sentido contrário ao mar estendeu-se por 120 km, atingindo os municípios de São Fidélis e Itaocara, na confluência do Paraíba com o rio Pomba. Segundo a imprensa da época, as atividades ligadas à agricultura e à pecuária foram afetadas em 90%, com reflexos nas usinas de açúcar, com as plantações de cana perdidas e escassez de mão-de-obra. Campos tinha, na década de 1960, mais de 54% de seus habitantes na área rural. O jornal 'O Globo' informava, no final de janeiro, que haviam 3.815 desabrigados em Campos, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.
Sistemas hídricos da Baixada dos Goytacazes em 1500: 1- rio Paraíba do Sul; 2- Sistema Iguaçu (rio Imbé-lagoa de Cima-rio Ururaí-lagoa Feia-rio Iguaçu. Mapa: Manoel Vieira Leão (1767)
Sistemas hídricos da Baixada dos Goytacazes em 1500: 1- rio Paraíba do Sul; 2- Sistema Iguaçu (rio Imbé-lagoa de Cima-rio Ururaí-lagoa Feia-rio Iguaçu. Mapa: Manoel Vieira Leão (1767)
 
.
2007
Mesmo com medidas de proteção melhores, e de controle hídrico mais eficiente, 2007 foi ainda mais danoso que 1966, em termos de prejuízos econômicos e ambientais.
Naquele ano, em 05/01, o rio Paraíba do Sul transbordou, atingindo a marca de 11,20 metros, bastante superior a cota crítica de 10,40. Das três pontes que faziam a ligação entre as margens direita e esquerda em Campos, apenas a General Dutra ficou transitável. Mas não durou muito. Um dia depois não suportou a correnteza e dois pilares afundaram. O rio alcançava os mais altos valores de cota e vazão já registrados desde o desastre de 1966.
Se não bastasse, dois diques se romperam. Na margem direita, em dois pontos: Alto do Viana, em São João da Barra, alagando cerca de 400 hectares de pasto e fruticultura, e na altura do bairro Pecuária, em Campos. No dia 14 do mesmo mês, foi a vez da margem esquerda do Paraíba. Próximo à localidade de Abadia, uma cratera foi aberta com aproximadamente 100 metros de largura, inundando todo entorno, constituído em sua maior parte por propriedades rurais.
Os prejuízos foram estimados, em valores da época, em 100 milhões. Atualizando a cifra, 316 milhões de reais foram contabilizados como perdas pela enchente de 2007. Apenas na agricultura. Mais de 50% da safra de cana-de-açúcar perdida. As empresas de Cerâmica do município não puderam escoar sua produção para o Espírito Santo, seu principal mercado. A economia urbana totalmente afetada pelo caos no transporte, nos danos causados pelo alagamento das ruas, com a interdição das pontes, o desabastecimento de água potável, e os problemas na coleta de lixo.
Na área residencial, um estudo da Defesa Civil de Campos dava a conta de dez mil imóveis afetados, com estruturas comprometidas pelas inundações. Foram contabilizadas 48.068 pessoas desalojadas e 100.145 afetadas pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.
A Folha e os jornais locais noticiavam o fato de que os canais da Baixada Campista encontravam-se completamente obstruídos por sedimentos, impedindo o correto escoamento das águas.
Friburgo, Teresópolis e Petrópolis sofreram ainda mais alguns anos depois. A região serrana sofreu a pior catástrofe ambiental do Estado, com prejuízos de toda ordem.
Os recursos disponíveis para controle e mitigação de danos

Os sistemas de proteção — ou pelo menos de controle de chegada das águas — mais eficientes e usuais são as barragens. Porém possuem alto custo financeiro e ambiental. Na bacia do rio Paraíba existem cinco barragens, ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca em São Paulo, e Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos no Rio. Ao sistema, adiciona-se Centrais Hidrelétricas (PCHs) distribuídas ao longo dos afluentes.
A região do baixo rio Paraíba do Sul conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão. Os canais foram construídos em Campos para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, onde as lideranças de Campos encomendaram ao engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, um plano de construção.
Até de 1965, a baixada Campista contava com uma rede de 600 km de canais. Depois das intervenções do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), Campos teve mais que o dobro. É essa rede que se mantém até hoje. Verifica-se que o processo de drenagem se intensificou após a segunda metade da década de 1960, coincidindo com o período pós-desastre de 1966.
Fim do DNOS
Com a edição da Medida Provisória nº 151, de 15 de março de 1990, no governo Fernando Collor, foi determinado o fim do órgão que cuidava dessa estrutura de canais. Um dos maiores sistemas do Brasil, que era administrado pelo DNOS ficou abandonado, apenas com ações pontuais das prefeituras e de órgãos como INEA, e Comitê de Bacias e CEIVAP a partir de 2009. 
O sistema ficou caótico. Sem manutenção adequada, a drenagem que os canais artificiais e comportas manobráveis pela ação humana deveriam promover fica fragilizado. Com os eventos de 2007 e 2008 recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos. Mas falta muito para Campos e região ter a estrutura necessária para impedir grandes cheias e conter os danos causados. 
Comentar
Compartilhe
Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com