Edmundo Siqueira
02/09/2025 21:48 - Atualizado em 02/09/2025 21:57
Em Munique, da esquerda para a direita: Benito Mussolini, Adolf Hitler, Edouard Daladier e Neville Chamberlain
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Reprodução
Não é incomum lermos ou nos depararmos com vídeos de analistas onde há uma defesa da “pacificação do país”. Compreensível, em uma quadra da história onde ódios são estimulados e a posição política de alguém define sua identidade — tempos de polarização afetiva, em resumo. Portanto, “pacificar” é bem-vindo.
Porém, há no conflito algo de democrático. É na democracia que ideias diferentes podem conviver e o direito de defender posições contramajoritárias pode ser exercido. Em regimes autoritários, isso não é possível. O conflito só é possível na ditadura quando há enfrentamento armado, quando o dissenso pretende ser resolvido pela força, onde não cabe discussão.
O ódio e a polarização afetiva — onde o outro é inimigo, quando não há convivência pacífica entre quem pensa diferente politicamente — são subversões do conflito. Nessas condições, o conflitante deve ser eliminado. Então, é possível afirmar que a ausência de conflito pressupõe que um lado impôs sua vontade, uma vez que sempre haverá interesses diversos na sociedade e em suas relações. Trazer a paz, portanto, não se trata apenas de apaziguamento — o conceito de “paz” precisa ser mais amplo, mais completo, sob pena de transformar a paz em medo.
Política do apaziguamento
No julgamento do ex-presidente Bolsonaro, que iniciou nesta terça-feira (2) no Supremo (veja matéria da Folha1 aqui), o ministro Alexandre de Moraes usou, novamente, como vem usando no curso do processo, a ideia da “política do apaziguamento”, citando o erro histórico cometido pelas potências europeias durante a escalada expansionista de Adolf Hitler nos anos 1930.
Julgamento no Supremo Tribunal Federal
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Gustavo Moreno / STF
“A pacificação do país é um desejo de todos nós, mas depende do respeito à Constituição, da aplicação das leis e do fortalecimento das instituições, não havendo possibilidade de se confundir a saudável e necessária pacificação com a covardia do apaziguamento”, disse Moraes nesta terça.
O paralelo do ministro do Supremo traz consigo uma óbvia conotação política, e parece pretender comparar o bolsonarismo como um movimento extremista e violento, assim como foi o nazismo, e também subversivo da ordem vigente. Não leva em conta — ou pelo menos não as problematiza — as diferenças dos contextos históricos, e pior: antecipa seu voto, deixando claro que percebe os réus como indivíduos danosos à democracia.
Mas o uso político do julgador, e seu voto antecipado, não invalida o fato de que apaziguar por medo é um erro, seja em qualquer tempo histórico que se aplique.
Aprender ou repetir Chamberlain?
Em setembro de 1938, líderes europeus se reuniram em Munique diante da ameaça de Hitler de invadir a Tchecoslováquia. O premiê britânico Neville Chamberlain, ao lado do francês Édouard Daladier, acreditava estar evitando uma guerra ao conceder ao Reich o direito de anexar a região dos Sudetos. A cena é histórica: Chamberlain retorna a Londres brandindo um pedaço de papel, o acordo assinado com Hitler, e proclama à multidão ansiosa: “Peace for our time”. Paz para o nosso tempo.
Era, na verdade, a rendição antecipada. Menos de um ano depois, Hitler invadia a Polônia e mergulhava o mundo em sua guerra mais devastadora. A paz proclamada em Munique não passava de medo travestido de virtude; e o medo, quando governa decisões políticas, só fortalece os violentos.
O que Moraes sugere em seu voto é que não podemos repetir Munique em 2025. O bolsonarismo — guardadas todas as diferenças históricas — é um movimento que se alimenta da ideia de que a lei é um obstáculo a ser driblado, e não um limite civilizatório. O dilema, portanto, não é se devemos “pacificar” ou “condenar”, mas se estamos dispostos a pagar o preço da covardia em nome de uma paz que não existe.
A democracia não se fortalece fechando os olhos para o golpismo — o que aliás se praticou no Brasil em relação aos militares de 1964. Não se trata de vingança, mas de limites. O apaziguamento de 1938 alimentou a fera que destruiria a Europa; o apaziguamento político de hoje pode alimentar a corrosão lenta de nossas instituições. O paralelo histórico, ainda que imperfeito, é pedagógico.
A questão, então, é simples: ou aprendemos com Chamberlain, ou repetimos Chamberlain.