Universidades em Campos: faróis para uma cidade míope
Edmundo Siqueira 26/04/2025 18:56 - Atualizado em 26/04/2025 19:06

Farol de São Tomé, Campos, 1930.
Farol de São Tomé, Campos, 1930. / Arquivo

Quando Nilo Peçanha assumiu a Presidência da República sabia que seria um mandato curto. Ocupava o cargo de vice e, quando o presidente Afonso Pena faleceu, em decorrência de uma pneumonia, já se especulava fortemente pela sucessão. Eram tempos conturbados aqueles do início do século, e Nilo foi destinado ao cargo em junho de 1909, ficando até novembro de 1910.

Era preciso deixar uma marca, e Nilo escolheu a educação e a inclusão. Em um país que se formava republicano, o primeiro presidente negro do Brasil tratou de criar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) — antecessor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — e retomou o projeto de criação de escolas profissionais que buscaria incluir no mercado formal os excluídos de processos histórico-sociais, recentes naquela época, como o fim da escravidão. O programa federal das Escolas de Aprendizes Artífices tomava corpo e Nilo inaugurou 19 escolas no Brasil, todas instaladas em capitais, com exceção de uma: em Campos dos Goytacazes.

A unidade de Campos foi a nona a ser criada no Brasil, com a implantação de cinco cursos: alfaiataria, marcenaria, tornearia, sapataria e eletricidade. Nilo Peçanha comprava então uma briga pelo seu bairrismo. Natural de Campos, Nilo sofria preconceito por sua origem e pela cor de sua pele. Era chamado nos meios políticos de “mulato do Morro do Coco”, em tom pejorativo. E, talvez por isso, tenha batido o pé e decidido pela ida de uma das escolas para Campos. Dessa decisão nasceram as Escolas Industriais e Técnicas, de ensino médio e secundário, as Escolas Técnicas Federais (ETFC) e nos anos 1990 os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET).
 
Escola de Aprendizes Artífices: legado do curto mandato de Nilo Peçanha
Escola de Aprendizes Artífices: legado do curto mandato de Nilo Peçanha / Arquivo Nacional
Hoje, o que era Cefet se transformou em IFF, Instituto Federal Fluminense, e atualmente conta com 12 campi, reunindo mais de 15 mil estudantes e 1.500 servidores ativos, entre professores e técnicos administrativos.

Campos, Cidade Universitária?

São inegáveis as contribuições econômicas e sociais trazidas por um Instituto dessa magnitude, carregando toda essa história. A decisão de Nilo em trazer o ensino técnico para Campos possibilitou que a cidade se transformasse, e o interior do Rio de Janeiro pudesse ter opções próximas à formação de seus habitantes.

Campos dos Goytacazes se transformou em um polo regional em educação, e pode ser considerada uma cidade universitária quando olhamos para uma fotografia que mostre os números atuais de cursos ofertados, instituições de ensino superior e alunos matriculados. No ensino federal, a Universidade Federal Fluminense (UFF) compõe esse quadro em Campos e também traz contextos históricos e de luta social significativos.

Enquanto instituição, a UFF foi criada em 1960, com sede em Niterói. Para avançar ao interior do Estado, buscando atender um dos pilares primordiais da educação superior pública — descentralizar e democratizar o acesso — instalou em Campos o Departamento de Serviço Social (SSC), dois anos depois. Havia na cidade um movimento orgânico que ansiava por cursos superiores de ensino, não apenas para que os campistas e fluminenses do interior pudessem ter formação, mas para que a academia pudesse contribuir para o crescimento da cidade, com pesquisa e extensão. O curso de Serviço Social se transformou em uma referência na área, formando diversos profissionais.

Embora de importante contribuição, a UFF em Campos não queria ficar apenas no Serviço Social, e debates internos aconteciam para achar um caminho para expansão, tanto de cursos como do campus. Em 2003, começaram a surgir caminhos para a isso, e em 2007, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), isso parecia se tornar realidade.. A pesquisadora Raquel Isidoro, graduada pela UFF Campos e doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional na UFRJ, publicou um artigo recente na edição brasileira da francesa “Le Monde Diplomatique”, onde trouxe um relato de sua experiência com o Reuni e com a UFF Campos.

“No âmbito da UFF em Campos dos Goytacazes, estava prevista a construção de um novo prédio para salas de aula e a criação do Campus II, que abrigaria os cursos recém-criados de Geografia, Ciências Econômicas e Ciências Sociais (...) No entanto, o cronograma das obras de infraestrutura previsto para receber os novos cursos não foi cumprido, o que gerou desafios significativos à comunidade acadêmica. Diante dos atrasos, movimentos estudantis e coletivos passaram a pressionar pela efetivação das estruturas prometidas. Nesse cenário, a equipe diretiva do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG) precisou, inicialmente, recorrer a instituições privadas e escolas municipais para viabilizar o funcionamento das turmas e organizar os espaços da secretaria e do apoio docente. Em 2010, com o agravamento da situação, foi firmado um acordo entre o MEC e a Reitoria da UFF para o aluguel de módulos metálicos — os contêineres — como solução provisória”, disse Isidoro.

Do Reuni em 2003 e dos contêineres de 2010, o sonho cultivado por alunos e docentes se transformou em realidade numa segunda-feira, 14 de abril de 2025. Com a presença do presidente da República — assim como Nilo em 1906 —, Campos recebeu um grande e novo campus da UFF, com instalações que somaram R$ 74,4 milhões, segundo o governo federal. Composto por dois blocos, com sete andares cada um, estão prontas para uso 36 salas de aula, 28 gabinetes de professores, 11 laboratórios, uma biblioteca, um auditório, diretórios acadêmicos e administração. Os prédios têm, ainda, elevadores e escadas de incêndio (Folha1).


Reprodução/UFF Campos


Os novos prédios da UFF foram concluídos, como toda grande obra, através de esforço coletivo, e por consequência de um encadeamento de ações históricas. Políticas públicas bem construídas dependem de articulação e disponibilidade de verba, mas para que sejam viabilizadas é preciso que a sociedade civil seja mobilizada e que avanços reais sejam demonstrados com a aplicação dela. Desde as articulações pelo Serviço Social em Campos, passando pelos “filhos do Reuni”, o campus erguido em um terreno cedido pela antiga rede ferroviária foi retomado por articulação de vários deputados federais, emendas de bancada e esforços suprapartidários.

Ianani Dias
Ianani Dias / Reprodução
“Eu entrei na UFF Campos em 2010, justamente no ano em que nos foi apresentado o projeto do novo prédio, com a promessa de que a inauguração aconteceria em 2013. Como se sabe, isso não aconteceu e, para que a universidade se adaptasse à nova realidade, estudamos em contêineres alugados, pois a estrutura era insuficiente para atender aos novos cursos e ao número crescente de estudantes vindos de Campos e de outras cidades”, disse a pesquisadora Ianani Dias, mestranda na UFF Campos do programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas. “Mas não se tratava apenas de conquistar uma estrutura física; a disputa era por uma nova concepção de universidade. O Reuni, assim como o Enem e o sistema de cotas, transformou profundamente as instituições públicas de ensino. De repente, aquelas universidades passaram a ter uma nova demanda social, acolhendo uma juventude diversa: estudantes da periferia, dos interiores e das zonas rurais — muitos, como eu, os primeiros da família a ingressar em uma universidade pública”, continuou.


Ianani e Raquel são exemplos de discentes que não ficaram apenas nas queixas e viram na oportunidade de um programa federal, o Reuni, a chance de poder expandir os muros da universidade, física e socialmente. “Não à toa, nós nos chamávamos de “filhos do Reuni”, pois éramos uma geração que acreditava intensamente nesse projeto. E, apesar da precariedade, sabíamos que aquilo que havíamos conquistado não podia retroceder. A defesa da permanência e da ampliação do acesso era fundamental”, acrescentou Ianani, na mesma linha que Raquel: “Reclamar, por si só, não basta. Nunca bastará. É preciso agir. Como fizeram aqueles que vieram antes, os que passaram por este campus e os que ainda virão. Todos nós somos parte dessa história. Alunos, técnicos, professores — somos o próprio projeto de expansão da universidade”.

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”

O escritor russo Leon Tolstói, falecido no mesmo ano que Nilo Peçanha foi presidente, ensinou que “pintar” a própria “aldeia” é uma forma de se tornar universal. Uma universidade tem o dever de cuidar da região que ela está inserida, produzindo conhecimento que contribua para mudar a realidade ao seu redor.

Campos é uma “aldeia grande” e histórica. As suas marcantes contradições produziram uma sociedade capaz de lutar por educação pública de qualidade (lutou e conseguiu também a Uenf, esta estadual, que se tornou uma referência no país) ao mesmo tempo que 47.600 famílias vivem em extrema pobreza (segundo dados do CadÚnico, 2021); ser o local de nascimento do primeiro presidente negro do Brasil e ser um dos últimos locais a abolir a escravidão; assim como presenciar lutas progressistas importantes e ter sediado um dos maiores núcleos integralistas do país.

Mas as contradições são parte do conhecimento acadêmico, e muitas vezes o ponto de partida de pesquisas. A realidade de Campos precisa ser objeto de estudo das academias que precisam dialogar com o contexto que está inserida, portanto centros como a UFF, IFF, Uenf, Universidade Federal Rural e as faculdades particulares não podem se isentar desse debate, pois fazem parte dele.

Ouvindo Ianani na véspera da inauguração dos prédios da UFF, seu relato foi de emoção: “Hoje, o que sinto é difícil de colocar em palavras. É uma mistura de orgulho, emoção, alívio e propósito. Tudo aquilo que sonhamos, lutamos e acreditamos está materializado nesse prédio. Amanhã, não se trata apenas de concreto, mas da memória viva de cada protesto, de cada ocupação, de cada faixa pintada à mão e de cada estudante que passou e foi formado por essa universidade”.

Não se pode tratar apenas de concreto. Campos e a região dependem de suas instituições de ensino para produzirem conhecimento e desenvolvimento, e na mão dupla, as universidades precisam olhar para sua aldeia. Em 1909 ou hoje, a escolha continua posta: ou Campos reconhece seus faróis, ou seguirá tropeçando na própria sombra. O IFF, a UFF e a Uenf estão aí — projetos de futuro que resistem até mesmo à indiferença.

Ainda há tempo. Mas não há farol que brilhe para sempre.
 

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