104 anos do Mercado Municipal: entre o descaso, memória e resistência à mudança
Edmundo Siqueira 15/09/2025 20:10 - Atualizado em 15/09/2025 20:16
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível.
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível. / Foto: Genilson Soares / Folha1


O Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes completa nesta segunda (15), 104 anos de existência (veja matéria da Folha1 aqui). Pelo menos esse que conhecemos hoje, ao lado do Parque Alberto Sampaio — a cidade já possuía outras praças de mercado antes da inauguração do atual, em 1921.

O Mercado que faz parte da paisagem campista, há mais de um século, nasceu em uma perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a “torre do relógio”), com forte inspiração europeia e servindo com símbolo de progresso e urbanização da cidade, no início dos anos 1920.

Mas o que era para se manter como um orgulho acabou se convertendo em um problema.

Problema que pouco tem relação com os permissionários da feira livre (boxes instalados na frente do mercado e abaixo de uma estrutura metálica), do camelódromo (boxes instalados na outra face do prédio, também abaixo de um galpão) e do próprio mercado, mas sim com estreita ligação com uma série de decisões equivocadas por parte do poder público.

O que era para ser símbolo de vitalidade urbana virou retrato de abandono e descaracterização. Embora seu interior ainda mantenha a alma — com cheiro, voz, caldo de cana e a sociabilidade popular —, o entorno e o próprio prédio histórico foram totalmente descaracterizados.
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia / Arquivo


A obra do camelódromo nunca deveria ter sido liberada naquele local, pois vai contra todas as recomendações das instituições de proteção ao patrimônio histórico. A estrutura metálica da feira e da peixaria, construída nos anos 1980 para ser provisória, esconde as potencialidades do Mercado e mantém os permissionários em condições inadequadas.

O que comemorar?

Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio.
Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio. / Foto: César Ferreira / PMCG
Ao transeunte que tenha passado hoje pelo Mercado e visto bolo e banda de música, pode ter ficado a impressão de que havia uma comemoração ali. Celebrar a longevidade de um centro comercial, com o valor afetivo daquele espaço, é necessário. Mas perceber que as condições dos feirantes é ruim e que o prédio está em estado de abandono é ainda mais.

Há quem diga que a construção de inspiração francesa, com sua torre do relógio, é patrimônio, e que a cidade não pode abrir mão dele. E de fato não pode — mas patrimônio se conserva e se deixa exposto, acessível, possível de contemplação e cumprindo um papel memorialístico.

Tudo o que não se percebe no Mercado: esmagado por duas estruturas estranhas, invisível e mal conservado.

Descaso que não se confunde com quem trabalha no local e luta com esforços diários para manter tudo o mais saudável e limpo possível. Gente que começa na madrugada a preparação para a venda de peixe, farinha, hortaliça, biscoitos, doces e outros tantos produtos que poderiam ser comercializados para turistas e campistas de forma muito mais confortável.

Soluções possíveis
Para um problema complexo, soluções complexas devem ser empreendidas. Não há caminho fácil ou resolução possível sem realocar pessoas, fazer intervenções através de obras e alterações logísticas, modificar a paisagem e ressignificar vivências e espaços. Porém, são ações necessárias e urgentes, uma vez que as omissões se arrastam por décadas.

Existe a proposta de construir um novo mercado (nova feira), moderno, higienizado, arejado, na Praça da República, atrás da rodoviária do centro, a Roberto Silveira. Local que está a menos de 300 metros da atual feira, e encontra-se subutilizado. Embora o projeto necessite de ajustes e maiores discussões, inclusive com os feirantes, é uma solução bastante crível e que a prefeitura já sinalizou interesse em realizar.

Mas, como tradição em Campos, aparece a resistência: uns falam em “matar a tradição”, outros em “descaracterizar o centro histórico”. Como se tradição fosse sinônimo de precariedade, como se memória tivesse que conviver obrigatoriamente um ambiente sem as adaptações necessárias para os tempos atuais.

Além disso, não se trata de demolir o antigo, mas de criar o novo. O atual mercado pode — e deve — ser preservado como espaço cultural, centro gastronômico e polo turístico. Pode e deve se integrar com o Parque Alberto Sampaio e com centros populares de comércio, desde que respeitem as especificidades do patrimônio histórico.
O novo mercado, por sua vez, deve ser construído para cumprir o papel de abastecimento, com dignidade e condições sanitárias adequadas. Mas em Campos, quase tudo vira disputa binária: ou se mantém o cadáver em pé ou se apaga a história. Enquanto isso, a cidade definha seu patrimônio e potencial no meio-termo, incapaz de se mover.

Aos 104 anos, o Mercado Municipal é mais testemunha de abandono do que motivo de orgulho. Talvez seja esse o retrato mais fiel de Campos: uma cidade que carrega o passado como peso, mas não consegue transformá-lo em futuro.
GoogleMaps / Edmundo Siqueira

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