Felipe Fernandes - Na busca por identidade, a desconstrução da história
*Felipe Fernandes 12/11/2025 07:59 - Atualizado em 12/11/2025 07:59
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Filme - O agente secreto - Lançado em 2023, Retratos fantasmas é um filme documental que fala de memória, à partir do pessoal, do íntimo, para posteriormente falar do coletivo, das mudanças na cidade do Recife, assim como os cinemas de rua, pelo qual o diretor Kleber Mendonça Filho tem uma enorme ligação afetiva e que deixaram de existir com o tempo.

O resgate desse filme para esse texto, se deve, pois existe muito dele em ´´O agente secreto``, novo longa de ficção do diretor, que parte de uma história central, narrada de forma não linear, para desconstruir a história e as memórias, em um longa muito eficiente em recriar Recife da década de 70, mas principalmente em ambientar o espectador naquele momento do país, em uma constante busca por memórias e histórias, na luta de um povo por simplesmente existir sendo contrário a tudo que acontecia no país.

Dividido em capítulos, o filme abre com um prólogo muito interessante, passado no carnaval de 1977, que traz Marcelo (Wagner Moura) chegando a Recife, passando por um posto de gasolina e encontrando um retrato violento e absurdo que aos poucos vai se revelando um paralelo com muitos dos temas abordados pelo filme. O clima de tensão se estabelece, junto a violência e indiferença com a vida humana e a certeza de que as instituições não são confiáveis.

O filme tem uma narrativa não linear, que desconstrói muitas das questões que são abordadas, criando tensão e complexidade em uma história teoricamente simples. Uma das principais características do cinema de Kleber Mendonça, é a ambientação e mais uma vez, ele constrói uma obra muito eficiente em nos levar para o Brasil daqueles anos. Essa ambientação vai além do brilhante trabalho de direção de arte, figurino e fotografia na reconstrução física e visual daquele período, mas uma ambientação que passa pelos ambientes, pelos personagens e nesse sentido a mistura de atores experientes com não atores, dão a história uma veracidade impressionante.

O filme gira em torno do protagonista, mas também tem espaço para vários personagens e o texto de Kleber Mendonça é muito eficiente em construir coadjuvantes muito marcantes, que junto às atuações, faz com que o espectador crie profundo interesse por eles. Merecem menção Carlos Francisco, projetista do Cine São Luiz na vida real, que ganha um importante papel e que exerce o mesmo ofício no filme e a já mundialmente famosa Tania Maria, que interpreta Dona Sebastiana com uma leveza, doçura e espontaneidade que impressionam. Parece uma atriz experiente, mas se trata de seu primeiro papel.

Mesmo os antagonistas, retratados como claras caricaturas de um sistema violento, opressor e corrupto, funcionam como arquétipos de vilões e exploram um lado pouco mostrado da ditadura em nosso cinema, que é o lado empresarial, empresas privadas como agente fomentador da ditadura e da corrupção envolvendo diversos segmentos do regime. Kleber consegue explorar esse lado, em como empresários promoveram e se beneficiaram do regime para desmantelar políticas públicas em pró dos próprios interesses e contribuíram para a perpetuação da ditadura.

Outra característica do cinema do diretor que sempre me chamou a atenção, é o flerte com o cinema de horror, sempre de forma pontual, mas sempre instigante, e aqui não é diferente. Toda a sequência do prólogo, o encontro do protagonista com as pessoas fantasiadas na estrada, os pesadelos, a folclórica trama da perna cabeluda, são elementos que contribuem com a sensação de risco iminente que o protagonista têm e que vai sendo construído com o espectador conforme a história acontece.

Kleber é um grande apaixonado pelo cinema e aqui ele introduz não só o lendário Cine São Luís como um dos espaços principais do filme, que funciona como refúgio, um local seguro em meio a toda a situação,um espaço de cultura, história e resistência, mas traz a sua própria cinefilia para dentro da trama. Seja na ligação com o clássico Tubarão de Spielberg, outro elemento presente no cotidiano recifense, passando pelas sessões de ´´A profecia`` e as reações exageradas das pessoas, algo mostrado em mais de um momento. São escolhas certeiras, que lidam com o clima de tensão e medo vivido pelo protagonista.

Kleber constrói um thriller com um ritmo muito particular, que se prova necessário para lidar com tantas abordagens, sem que nada fique corrido. Lidando com diferentes linhas do tempo, aos poucos o espectador vai construindo o quadro geral, de uma história clássica de perseguição, mas que tem como objetivo principal falar do Brasil e principalmente desse resgate da memória, de um país em busca de uma identidade (não por acaso o protagonista está a procura da identidade de sua mãe, que pode ser lida como a pátria) e com diversas contas a pagar com seu passado violento, muitas vezes esquecido em pró dos interesses de alguns.

É um filme repleto de sutilezas, a atuação poderosa de Wagner Moura é a síntese disso. Marcelo não é um homem violento, explosivo, muito pelo contrário. É um homem cansado, mas que demonstra grande interesse por tudo de novo que surge em seu caminho. Um homem inteligente, mas que parece acreditar mais no bem que nos homens que o perseguem. É uma ingenuidade que dialoga diretamente com o brasileiro comum, que mesmo em meio a tanta violência, não perde a ternura, ainda que não esteja alheio a ela.

O Agente Secreto é mais um grande filme na filmografia de um diretor que vai se provando um dos maiores nomes do cinema brasileiro atual. Mencionei ´´Retratos fantasmas`` pois se trata de um filme irmão, mas aqui, levado para o campo da ficção. Kleber Mendonça Filho consolida um estilo muito próprio, de um cinema que fala do Brasil de diferentes maneiras, se utilizando de diferentes gêneros, para tratar de temas muito importantes. A cultura e a história que perdem espaço são sintomas de um país sem memória, que critica a própria cultura e não enxerga valor nela.

A trama nos dias atuais, ainda que pareça um pouco deslocada, é importante, pois traz os reflexos dessas questões para os dias de hoje. Um país em busca de identidade, desconstruindo sua história e suas memórias, para confrontar os fantasmas do passado e dar visibilidade a vidas e histórias que se perderam pelo caminho, sem registros, sem provas, um apagamento histórico que deixa um vazio na vida de milhares de famílias e no coração de um país.

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