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Oito de março, quatro mulheres e três funerais
Edmundo Siqueira 08.03.2023
A noite daquela terça-feira, 7 de março de 2023, parecia igual a muitas outras no trabalho da delegada Natália Patrão. Como titular da 134ª DP — delegacia na área central de Campos dos Goytacazes, maior município do interior do Estado —, fazia parte de sua rotina comandar operações e investigações, e que no curso dessas, fossem efetuadas prisões. Mas havia um sentimento diferente naquela terça. O caso que Natália conduzia atraia todo tipo de curiosos e levava uma multidão de jornalistas à delegacia; todos ávidos por uma palavra da delegada, alguma nova informação sobre o crime, e para saber quem era, de fato, o mandante do assassinato de Letycia Peixoto, uma jovem de 31 anos morta a tiros.
Uma das principais funções de Natália no Caso Letycia era controlar a comoção popular, que poderia atrapalhar as investigações. Apesar de demonstrar e pedir calma em toda aparição pública, desde o começo do inquérito, a delegada sabia da responsabilidade que tinha nas mãos, e tratava de deixar a sua equipe totalmente focada em elucidar o crime. Visivelmente havia duas Natálias: a que conduzia com firmeza as diligências e a que concedia entrevistas coletivas. E era necessário que fosse assim.
Letycia
O crime que chocou Campos dos Goytacazes foi cometido quatro dias antes daquela terça. Exatamente às 20h58min, dois homens em uma moto, ambos de camisa verde, se aproximaram pela lateral do carro de Letycia Peixoto e dispararam quatro tiros. Letycia ainda estava com o cinto de segurança, havia parado rapidamente para conversar com a mãe, Cintia Peixoto, que estava na calçada, pelo lado do carona.
O primeiro tiro atingiu o braço de Letycia. O segundo, a cabeça. Enquanto era alvejada, a mulher, instintivamente, tenta proteger sua barriga. Letycia Peixoto estava grávida de um menino. Terceiro e quarto disparos serviram para que os meliantes tivessem a perversa certeza de que o assassinato havia sido consumado. A mãe, Cintia, em uma atitude desesperada, avança sobre os homens. Um deles desceu da moto para se proteger do legítimo ataque de fúria, e dispara outro tiro, que atingiu sua perna. Os dois bandidos fogem covardemente e deixam um rastro de sangue e dor. Havia outra mulher no carro. Sentada no banco do carona estava a tia de Letycia, pessoa com síndrome de Down, assistiu a tudo impassível, mesmo banhada de sangue da sobrinha. Se protegeu a seu jeito, mas sofrendo todas as consequências do ato bárbaro assistido.
Letycia Peixoto e Diogo Viola de Nadai, suspeito de ser o mandante do assassinato, preso na terça, 7 de março, junto com o executor, quem guiava e o proprietário da moto. Letycia estaria esperando um filho de Diogo.
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As três mulheres foram socorridas. A tia foi para uma casa da vizinhança, pois a família não sabia se ela estava ferida, onde se confirmou que por sorte não foi atingida. Letycia e sua mãe foram levadas para o Hospital Ferreira Machado, e a lesão causada pelo projétil na perna de Cintia foi controlada.
A jovem grávida de sete meses não resistiu. Os médicos do hospital agiram rápido, fizeram uma cesariana e conseguiram trazer o bebê à vida. Rapidamente o pequeno Hugo — nome escolhido e registrado em certidão de nascimento — foi transferido para UTI neonatal. Mas, infelizmente, não foi o bastante. Hugo conheceu a vida fora do ventre por breves momentos, e logo depois do nascimento, seu óbito foi registrado.
Pollyana
No fim de semana anterior àquela terça-feira, do outro lado da cidade, a 146ª DP também estava movimentada. Localizada no bairro Guarus, a equipe da delegacia elucidava mais um crime bárbaro. Em parceria com a Deam — Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, um homem foi preso menos de 24 horas depois de ter cometido o assassinato de sua ex-esposa, Flaviana Teixeira Lima.
A apuração confirmou que se tratava de um crime passional, premeditado e com qualificadores claros: por ter dificultado ou tornado impossível a defesa da vítima, e ter sido cometido contra mulher em razão de sua condição de sexo feminino, uma vez que havia convívio e relação íntima entre eles, independentemente de coabitação. O homem matou à facadas Flaviana, enquanto ela trabalhava.
No comando da “um, quatro, meia” está Pollyana Henriques. A delegada se dedicou integralmente a resolver o feminicídio que chegava em suas mãos. Designou o Grupo Especial de Local de Crime (Gelc) para o local em que Flaviana foi morta, para que lá recolhessem informações e provas. Rapidamente descobriram o autor do crime e iniciaram as buscas. O Gelc foi até a casa do ex-marido de Flaviana e viram que tudo estava revirado, com roupas e documentos levados do local, evidenciando que o assassino pretendia fugir da cidade.
Delegada Pollyana Henriques, da 146ª DP de Guarus.
Pollyana, com as informações do Gelc, começou a agir em conjunto com as polícias militar e rodoviária federal para que pudessem mapear os ônibus e possíveis carros que o criminoso poderia fugir. Naquela altura, o principal inimigo da delegada era o tempo. Com o passar das horas, mais se aproximava a possibilidade do flagrante deixar de existir, tecnicamente. Ou pelo menos poderia ser mais fácil ser questionado.
A delegada estava empenhada em não permitir isso, não daria qualquer facilidade ao autor de um feminicídio covarde — como são, todos. A delegada conseguiu com o juízo de plantão a determinação de prisão temporária e seguiu nas diligências de forma ininterrupta. Até que algo aconteceu. Provavelmente por perceber que a delegacia iria prendê-lo de qualquer jeito, o autor do crime se entregou, através de seu advogado. Pollyana e equipe elucidaram o crime, conseguiram um mandado de prisão e prenderam o assassino em menos de 24 horas.
Flaviana
Flaviana Teixeira tinha apenas 23 anos, e já administrava seu próprio bar. Mulher preta, moradora da área periférica de Campos, trabalhava até tarde, todos os dias da semana, para cumprir seus compromissos. Era muito jovem quando conheceu seu marido e futuro algoz. Sempre tiveram um relacionamento conturbado, até que Flaviana decidiu pôr um fim à relação. Como todo homem possessivo e covarde, o marido não aceitou a decisão da mulher e ficou violento.
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No bairro de Travessão, onde morava e tinha seu bar, Flaviana precisava se proteger do ex-marido, como se já não bastasse todas as fragilidades, preconceitos e dificuldades que uma mulher com suas características sofre. Flaviana era mãe de um menino de 6 anos, e também temia por ele. Foi orientada a ir até a Deam e prestar queixa. Por lá, sob o comando da delegada Madeleine Dykeman, foi acolhida e uma medida protetiva foi providenciada. Mas não seria o bastante.
Por volta de oito horas da noite de domingo (5), o assassino estacionou seu carro em um matagal próximo ao bar de Flaviana. Esperou o momento certo para emboscar sua vítima e para que pudesse fugir, e entrou no estabelecimento para executar o feminicídio que havia premeditado. Totalmente indefesa, sem poder supor que seria covardemente agredida enquanto trabalhava para seu sustento e de seu filho, a mulher foi atingida por vários golpes à faca, todos em regiões vitais. Flaviana chegou a ser socorrida, mas faleceu na Unidade Básica de Saúde (UBS) da localidade.
Natália, Pollyana, Letycia e Flaviana
Natália Patrão chorou. No pátio de sua delegacia — a “um, três, quatro”, do centro —, durante um evento na manhã de 8 de março, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, a firme delegada não resistiu ao receber um abraço emocionado de Cintia, mãe de Letycia e avó do pequeno Hugo — ambos mortos a tiros e enterrados cinco dias antes, mas ainda muito vivos para a mulher sentada em uma cadeira de rodas, se recuperando do mesmo episódio que vitimou sua filha.
A delegada, vestindo roupas brancas por ocasião do evento, que evidenciava o imponente distintivo de delgada que carregava — com ainda mais orgulho naquele dia —, pendurado no pescoço por uma corrente dourada, abaixou-se para abraçar Cintia, e ao levantar fechou os olhos e pôs a mão esquerda sobre a boca, como se quisesse segurar e esconder os contornos físicos da emoção que ali transbordava. A terceira Natália se mostrava; a mulher e a mãe. Em um choro contido, enxugou uma lágrima teimosa no rosto, rapidamente recompôs-se e voltou a consolar a mãe que agradecia seu empenho incansável em fazer justiça no Caso Letycia.
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8 de março
O que é comumente chamado de Dia Internacional das Mulheres, é na verdade um marco importante de uma luta ampla e histórica. Envolve direitos sociais, civis e trabalhistas, que celebra no 8 de março as conquistas femininas obtidas nas últimas décadas, e cumpre um essencial papel de engajamento das novas gerações na busca por igualdade de gênero.
Inicialmente a data não era essa. Já foi 19 de março, 15 de abril e 23 de fevereiro. A definição do 8 de março veio com uma decisão dos comitês formados na ONU para debater o assunto, principalmente inspirados por movimentos de mulheres russas que fizeram uma greve por “Pão e Paz”, em 1917. Os movimentos femininos acabaram por forçar o czar a abdicar do trono, e o governo provisório concedeu às mulheres o direito ao voto (as paralisações na Rússia tiveram início em 23 de fevereiro, que correspondia a 8 de março no calendário gregoriano).
Greve das mulheres por "pão e paz" na Rússia
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Domínio Público
Outras mulheres de luta antecederam as russas. Em 1908, 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York exigindo menos horas de trabalho, melhores salários e direito de votar. Em 25 de março de 1911, um violento episódio na fábrica de roupas femininas Triangle Shirtwaist Company, em Nova York, 123 mulheres morreram por ferimentos, asfixia pela inalação de carbono, ou carbonizadas. A maioria imigrante judias e italianas que trabalham em péssimas condições. O incêndio em NY é comumente atribuído ao 8 de março, mas a data foi definida depois de uma longa luta.
8 de março, 2023, Campos dos Goytacazes
A mesma luta que precisa ser constantemente lembrada e que reflete na coragem e determinação das quatro mulheres campistas, todas mães, na semana de terror que viveram. Duas delas não resistiram ao ódio e à violência de uma sociedade que objetifica a mulher, que permite 699 casos de feminicídio só no primeiro semestre de 2022, de acordo com relatório Violência contra Meninas e Mulheres.
Permite que crimes como esse saltem de 929 em 2016 para 1.341 em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mulheres negras, como Flaviana, são 62% das vítimas de feminicídios e 52,2% das vítimas de violência sexual.
Mulheres que se dedicam à segurança pública como Natália e Pollyana possuem a emblemática e magnífica missão de proteger outras como elas, que, sem perder sua feminilidade, precisam ainda encontrar caminhos para ter a liberdade de ser o que quiserem e onde quiserem, seja em um bar, em um carro parado na rua, ou em delegacias.