Entre utopias e telas: o que o Festival Goitacá projeta para Campos
30/08/2025 | 12h34
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Há cidades que guardam em seus subterrâneos memórias inteiras à espera de serem reativadas. Campos é uma delas. Não apenas em subterrâneos — com memórias dos povos originários e de pessoas escravizadas —, como em patrimônios erguidos e esquecidos em toda planície. Histórias que clamam pelo pertencimento de um povo que teima em negá-lo. Muitas dessas histórias, dariam filmes e são de “cinema”.

Durante o século XX, Campos teve quase setenta salas de cinema em funcionamento — entre ruas centrais e distritos rurais, uma verdadeira rede de telonas iluminando o interior do estado do Rio de Janeiro. O cinema, como ferramenta poderosa de arte e cultura, trazia imagens projetadas e era parte da vida comum dos fluminenses dessa região: a ida ao cinema era lazer, era ritual, encontro e respiração coletiva (veja matéria sobre o assunto, deste mesmo espaço, aqui).

Esse tempo ruiu. Das dezenas de salas, sobraram duas nos anos 1980. Depois, nenhuma. Capitólio fechado, Goytacá vendido a uma igreja evangélica. Ficaram apenas as lembranças de marquises acesas e do rumor da plateia antes da sessão. Ficou o eco do que poderia ter sido, e na movimentada Avenida 28 de Março, resiste apenas a fachada melancólica do antigo Cine São José.”
Darcy Ribeiro, que acreditava no poder das universidades para reinventar o destino do Brasil, sonhou para a Uenf, em Campos, uma Escola Brasileira de Cinema e Televisão. Escolheu o Solar do Colégio — joia arquitetônica, então em ruínas — para abrigar esse gesto inaugural. O projeto nunca saiu do papel. Mais uma utopia interrompida, mas que possibilitou o Arquivo Público Municipal, instalado no Solar e se constituindo como um importante equipamento cultural da cidade.

O recomeço pelo Festival
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Mas as cidades também sobrevivem de recomeços. E foi nesse espírito que o I Festival Internacional Goitacá de Cinema nasceu (veja matéria do Folha1, com números do Festival, aqui). A primeira edição, realizada neste agosto, trouxe não apenas filmes: trouxe seminários, encontros, e até um sonhado mercado audiovisual. Mais do que uma programação, trouxe uma pergunta essencial: pode uma cidade que perdeu suas salas reencontrar-se com a tela grande e suas boas consequências?

A atriz Fernanda Soares, campista e com trajetória  na TV Globo e no teatro, respondeu a essa pergunta no corpo da própria experiência. Ministrou a masterclass “O ator no mercado audiovisual” e, diante de jovens atores locais, reviu sua própria história:

A atriz Fernanda Soares.
A atriz Fernanda Soares. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra
“Foi especial demais. Me reconheci naqueles jovens, e passou um filme na minha cabeça de quando eu morava aqui, sonhando em viver de arte. Estar no Festival Goitacá em Campos me faz acreditar em como a educação tem um papel importante formativo, de criar talentos e fortalecer a cena cultural no interior, que também é viva, diversa e cheia de possibilidades.”


Havia, em sua fala, um reconhecimento profundo: o festival não é apenas vitrine, é formação. É esse gesto formativo que pode, talvez, ocupar simbolicamente o espaço vazio deixado pela escola de cinema de Darcy Ribeiro.

Fernanda enxergou também o caráter histórico da transformação:

“Ver Campos se tornar oficialmente uma rota cinematográfica mostra como a cidade pode registrar e valorizar sua história, ao mesmo tempo cria oportunidades reais para novos artistas, fortalecendo a identidade local e dando visibilidade a uma cena cultural nova, plural e potente.”
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação"
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação" / Reprodução / Instagram


Essa pluralidade, que Darcy chamaria de “força criativa do povo”, é a chave. Mas, como lembrou a atriz, não basta abrir a porta uma vez. É preciso continuidade:

“O Festival cria um elo forte com a futura escola de cinema da Uenf, e isso me enche de esperança. Mas, para que esse movimento não se repita, precisamos estimular a continuidade da produção cultural, de modo que nossas histórias alcancem públicos em todo o país.”

Se a voz de Fernanda recupera a memória dos sonhos interrompidos, a de Fernando Sousa, diretor do festival, projeta o futuro:

“O Festival Internacional Goitacá de Cinema nasce com a força e a grandeza da região Norte-Noroeste Fluminense. A gente teve uma noite de abertura uma programação extensa uma noite de encerramento linda, já apontando pro futuro do festival que na sua segunda edição homenageará também o campista ator campista Tonico Pereira (...) Esperamos que o que o festival se consolide como espaço de encontro de novas conexões e contribua pro desenvolvimento econômico da região norte Noroeste Fluminense, apontando assim para novas vocações e novas possibilidades de crescimento mais sustentável dialogando com a identidade com a imaginação e com a força criativa da população da região (...) Então a gente encerra muito feliz, com o dever cumprido, mas com a certeza de que há muito trabalho pela frente que vai precisar do poder público, em suas diferentes esferas, Municipal, Estadual e Federal, da iniciativa privada, de lideranças da sociedade civil e de toda a população de Campos.” 
A continuidade do sonho
 
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival.
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


O festival já anunciou sua segunda edição, com homenagem ao ator campista Tonico Pereira, com carreira consolidada na TV, teatro e cinema. A primeira edição, a atriz e cantora campista Zezé Motta foi celebrada duplamente: no palco do festival e no recebimento do título de Doutora Honoris Causa pela Uenf.

O gesto de continuidade do Festival Goitacá não é pequeno: em uma cidade onde a memória costuma ser abandonada, a continuidade é quase um ato político.

Em tempos de plataformas digitais e consumo solitário de imagens, o Festival devolveu a Campos algo mais valioso que a exibição de filmes: devolveu a experiência coletiva da sala escura. Rir junto, silenciar junto, reconhecer-se no vizinho que ocupa a cadeira ao lado.

O Festival projeta mais que imagens: projeta uma possibilidade de futuro. Glauber Rocha, lembrado por Darcy Ribeiro no célebre discurso em seu enterro, dizia que seu cinema era um grito, um berro, uma indignação convertida em arte. Darcy, por sua vez, acreditava que a educação era a utopia mais urgente.

O que o Festival Goitacá ensaia é a costura dessas duas forças: o cinema como espaço de consciência e a formação como ferramenta de transformação. Entre as salas que se perderam e as que podem renascer, entre a escola de cinema que nunca existiu e a que pode ainda existir, Campos se vê mais uma vez diante do espelho das telas.

E, se há algo que Glauber e Darcy nos ensinaram, é que a utopia só fracassa quando deixa de ser sonhada.
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival.
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
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Campos e o Cinema
11/03/2022 | 10h36
Divulgação


Campos é uma cidade de cinema. Não só por sua história — que certamente daria um filme —, mas por ter sido território ocupado por quase 70 salas de cinema de rua, nos anos 1960 e 70. E com uma característica primordial: a descentralização. De Santo Eduardo ao Centro, passando por Saturnino Braga, indo até Dores de Macabu; praticamente em todos os distritos era possível ver uma sala de cinema.
Hoje, Campos conta com modernas e confortáveis salas de cinema em shopping centers. Nesse fevereiro que passou, Guarus recebeu uma delas, no também recém-inaugurado Plaza Shopping. O primeiro cinema daquele que é um dos bairros mais populosos do município. Cinema com os padrões comerciais. Mas já nos anos 1950, lá estava instalado, e projetando a sétima arte, um charmoso cinema de rua.
O período de crescimento econômico que Campos experimentou, trazido pela indústria sucroalcooleira, propiciou que vários espaços culturais na área central do distrito-sede fossem abertos — e vivenciados. Cafés, livrarias, teatros, bandas de música e cineteatros efervesciam a cidade. A imprensa era ocupada por profissionais gabaritados e dava espaço à intelectualidade campista. O Café High Life e o Cine Teatro Trianon eram palcos elitizados de convivência e cultura. Os distritos levavam cinema aos moradores, servindo como equipamentos culturais descentralizados.
Apenas três distritos não possuíram registros de cinemas de rua: Ibitioca, São Joaquim e Dr. Matos (estes dois últimos extintos na divisão geográfica atual), como informa Joilson Bessa, poeta e mestre em geografia pela UFF Campos. Em seu trabalho de mestrado, Bessa verificou que a sala de cinema de rua mais antiga foi em Goytacazes, então 2º distrito, em 1930. Por lá o maior cineteatro da área rural de Campos, o Cine Teatro São Gonçalo, projetava filmes e documentários.
Nos anos 1950, mais 14 salas eram inauguradas. Duas décadas mais tarde, somavam-se 68 salas de cinema em Campos — 20 na sede, 48 na área rural. Deste ápice, o declínio levou a duas salas apenas, em meados dos anos 1980. O Cine Capitólio e o Goytacá sobreviviam bravamente, até deixarem de existir. O primeiro em 2001 e o segundo vendido para uma igreja evangélica nos anos 1990.
Sem cinema algum entre os anos de 1996 a 1999, a cidade começa a receber as salas de exibição modernas nos anos 2000. Em 2012, o shopping Avenida 28 inaugurava o Kinoplex, uma das maiores redes do país, depois de ter no mesmo local o Cine Ritz e o Cine Magic.
Vale lembrar que a Casa de Cultura Villa Maria tinha uma videoteca charmosa, que ficou acessível a qualquer campista em 1995. Com mostras de cinema e apresentação de filmes que não estavam no circuito comercial de cinema, a Villa foi uma espécie de cinema popular por quase seis anos.
Campos voltando a ser uma cidade de cinema
Os três principais shoppings da cidade contam com grandes salas de cinema, hoje. Ainda há muito para ser trabalhado em descentralização de arte e cultura em Campos, mas “o outro lado do rio” já pode comer pipoca e assistir projeções com padrões modernos. As grandes estreias cinematográficas são exibidas na cidade, sem qualquer prejuízo em comparação com as capitais.
O que não significa dizer que os ditos “cinemas de rua” não tinham qualidades; tanto na escolha das películas como nos equipamentos de exibição. O Trianon e o Goitacá suportavam mais de 1000 cinéfilos iluminados apenas pelos raios de projetores 35 mm — o mesmo utilizado no Capitólio, Coliseu, São José, Drive In e Dom Marcelo, que poderiam acomodar mais de 500 pessoas.
O cinema em Campos também passou também pela academia. Ou quase. A Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que foi projetada por Darcy Ribeiro para ser uma universidade do terceiro milênio, tinha em seu projeto inicial uma escola de cinema. O Solar do Colégio, que hoje abriga o Arquivo Público, seria a sede da Escola Brasileira de Cinema e Televisão. O projeto não foi à frente, mas caso esse sonho de Darcy se tornasse realidade, Campos certamente seria um polo de produção cinematográfica de excelência, como é o ensino da Uenf em outras áreas.
Mesmo não sendo possível a realização do "sonho de cinema" de Darcy, a sua Uenf foi o local escolhido para a pré-estreia do curta-metragem campista “Faroeste Cabrunco”. Na última quarta-feira (9), o curta foi projetado no Centro de Convenções da Universidade. Com um nome “da gema”, o faroeste é estrelado por Tonico Pereira, ator de renome nacional, também campista.
Um cinema, seja de rua ou grandes salas comerciais, não são políticas públicas culturais. Estas são complexas e devem obedecer a parâmetros abrangentes, emancipatórios e democráticos. Mas voltar a ser uma “cidade de cinema” é fundamental para a formação de identidade e fortalecimento da cultura campista. Que a cidade, que ainda não realizou um dos sonhos de Darcy, possa ser (voltar a ser, ou ser ainda mais) uma cidade com cinema “pra cabrunco”.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com