Edmundo Siqueira
01/11/2025 22:46 - Atualizado em 01/11/2025 22:49
Agência Brasil
“Quem pode, por direito, reivindicar coragem para si mesmo é o servidor da Segurança Pública (...) não há Estado forte sem policiais fortes”.
A frase poderia facilmente ter sido retirada das declarações dadas pelo governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, após a “Operação Contenção” contra o Comando Vermelho (CV) nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte da cidade do Rio, deflagrada na última terça (28) — mas foram ditas no discurso de posse de Castro, em janeiro de 2023.
O tema “segurança pública” não é exatamente uma novidade em uma cidade com altos índices de violência e com milhões de pessoas vivendo em territórios dominados por facções criminosas. Já era central nas últimas eleições e continuará sendo para 2026. A questão é: por que o governador do Rio conseguiu nacionalizar o tema agora? Por que governadores de outros estados rapidamente vieram apoiar Castro e posar ao seu lado na foto?
O que parece começar a oferecer elementos para responder essas perguntas é a flagrante incapacidade do campo progressista em tratar o tema, seja na oferta de soluções ou no diagnóstico do problema. O Rio se tornou o espelho rachado de um país que terceiriza a responsabilidade e nacionaliza o medo. Claudio Castro não inventou a necropolítica, apenas entendeu seu valor de mercado, entendeu que o momento de baixa da popularidade de direita era o ideal para lançar esse ativo adormecido.
Do outro lado, o presidente Lula não soube aproveitar o momento de alta, e uma declaração infeliz, por coincidência ou não, alguns dias antes da operação no Rio, parece ter sido um tiro fatal no bom momento de seu governo, ou pelo menos na curva crescente de sua popularidade — Lula parece ter gastado sua conhecida fortuna (sorte, na concepção maquiavélica) na questão com o presidente americano Trump, pois não haveria momento pior para uma escorregada como essa.
Soma-se à dificuldade da esquerda no tema ao esvaziamento dos discursos de direita, e a segurança pública se transforma em ouro político. Com a extrema-direita ainda desestruturada pela possível prisão em regime fechado de seu líder maior, o ex-presidente Bolsonaro, havia esperança de que a retórica agressiva de Trump e a taxação sobre o Brasil provocassem danos maiores ao governo Lula, o que não apenas não aconteceu como o efeito foi contrário. Ali, o tiro saiu pela culatra.
Castro, o oportunista
A ida de Cláudio Castro ao Palácio Guanabara se deu pelo impeachment de Wilson Witzel, em 2021. Saindo de uma candidatura apagada na Câmara de Vereadores do Rio, Castro, advogado e cantor católico, foi eleito como vice de Witzel em uma vitória surpreendente, fortalecida por um discurso justamente calçado em segurança pública.
“O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”, disse Witzel em 2018.
A vitória de Witzel, ex-juiz federal nascido em Jundiaí (SP), aconteceu na esteira de um bolsonarismo então nascente, e demonstrou a insatisfação do eleitor fluminense com o poder constituído até então. O discurso contra corrupção e o tráfico de drogas e a pose construída de juiz honesto e duro com o crime, caiu como uma luva numa eleição em que o voto de revolta era a tônica. Em um Estado onde à época já contava com uma ficha de cinco governadores presos, não era de se estranhar.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) com o governador Cláudio Castro (PL) durante o ato de 7 de setembro de 2022, em Copacabana.
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Imagem: Saulo Angelo/ Futura Press/ Folhapress
O afastamento de Witzel por suspeitas de corrupção frustrou a aposta do fluminense em um governador diferente dos demais. Cláudio Castro assumiu o governo e percebeu que havia uma deficiência também em agradar o interior do estado, historicamente esquecido do orçamento e de ações estaduais.
Em 2021, Castro consegue emplacar o leilão que transferiu blocos da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) à iniciativa privada: o certame arrecadou cerca de R$ 22,6 bilhões, parcela expressiva dos quais — aproximadamente R$ 14,48 bilhões — ficou com o governo do Estado e parte considerável foi destinada aos municípios que aderiram ao plano de concessão.
Sem poder se candidatar ao estado novamente, Castro era visto como um potencial pré-candidato ao Senado, que em 2026 terá duas cadeiras vindas do Rio. Antes da operação no Alemão e na Penha, o governador não gozava de boa popularidade, e havia dúvidas se conseguiria se eleger. Em pesquisa DataFolha deste sábado (1º), a gestão do governador chegou ao seu maior índice de aprovação desde 2022, com 40% dos moradores do Rio de Janeiro e da região metropolitana da capital achando o trabalho ótimo ou bom.
Oportunismo político sem pecado, olhado por lentes exclusivas desse campo.
A esquerda, segue distanciada do povo
Inegavelmente, a direita domina o discurso da segurança pública, primeiro porque fala a língua do medo — e o medo é mais fácil de vender do que a esperança —, e depois por dar uma resposta fácil e violenta para um drama vivido diariamente por milhões de pessoas em cidades grandes como o Rio. Cansada, a população vê como uma vingança necessária aos bandidos que impõe restrições e medo em pessoas que honestamente vivem seus cotidianos.
O campo progressista se perde entre diagnósticos técnicos e discursos acadêmicos, incapaz de formular uma narrativa emocional sobre segurança pública. Fala de políticas de prevenção, mas esquece que o medo é o maior cabo eleitoral do país. O cidadão que vive sob toque de recolher não quer um seminário sobre desigualdade: quer a sensação, ainda que falsa, de que o Estado está no comando.
Enquanto isso, Cláudio Castro posa de xerife e redistribui holofotes. Transforma operação policial em ato de campanha. O discurso que promete “paz” pelo fuzil encontra solo fértil onde o Estado falhou em oferecer dignidade. Castro recebeu apoio de governadores de direita, embora esteja em evidente campo da retórica e da campanha eleitoral antecipada, que se reuniram no Rio de Janeiro nesta quinta-feira (30) para anunciar o que chamaram de “Consórcio da Paz”.
Cláudio Castro (RJ) entre os governadores Zema (MG) e Caiado (GO), no lançamento do "Consórcio da Paz".
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Charles Sholl/PhotoPress
A questão é que assim como o traficante não é uma vítima romântica do sistema, mas um agente brutal de sua própria guerra, o político que se omite diante da barbárie também é cúmplice. A diferença é que um opera no beco, o outro no palácio.
Então, uma ação direta do governador, ainda que deixe mais de uma centena de mortos, entre eles quatro policiais, é vista como necessária pela população. Há números: a operação foi considerada muito bem executada para 48% da população, considerada mal executada para 24%. Já 57% concordam com Castro sobre a operação ter sido um sucesso, e outros 39% discordam totalmente, segundo o DataFolha.
Entre direita e esquerda, o crime segue vencendo
Nos anos 1990, José Guilherme Godinho, o Sivuca, foi eleito deputado estadual pelo Rio de Janeiro. O slogan, ainda hoje usado por políticos e facilmente encontrado em comentários de redes sociais: “bandido bom é bandido morto”. Três décadas antes, Sivuca havia sido um dos integrantes da Scuderie Le Cocq, grupo de extermínio que deu origem às milícias.
Fila de corpos na Vila Cruzeiro, após operação no Complexo da Penha
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Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
O uso eleitoral da violência no Rio é percebido há pelo menos três décadas, onde ações como a Contenção apresenta grande rentabilidade eleitoral. Para além do financiamento direto de campanhas pelo crime — seja das milícias ou do tráfico —, o medo é diretamente proporcional ao desejo de uma solução rápida e por vezes violenta.
Na lógica bipolar atual brasileira, a direita clama por bala e a esquerda por direitos humanos — e nenhuma das visões oferece soluções reais ao problema, que é essencialmente de ordem técnica e dependente da cooperação federal. Além disso, operações policiais, bem sucedidas ou não, representam a força coercitiva e ostensiva do estado, e quando terminam, a ausência completa do ente estatal continua sentida, e a população permanece refém do crime.
O eleitor, exausto, tende a se agarrar ao primeiro que prometa segurança, ainda que a segurança venha marcada de sangue. Mas o que morre, antes de tudo, é a crença de que o Estado serve à vida.
E assim o Rio continua o mesmo laboratório de sempre, produzindo o melhor e o pior do Brasil, com todo peso histórico e simbólico de uma cidade que já foi capital do império e da república. No fim, o altar de Castro e a varanda gourmet de uma esquerda Zona Sul se encontram no mesmo templo: o da conveniência eleitoral. Um ora por votos, o outro por likes. E ambos, sem perceber, professam a mesma fé — a fé no oportunismo sem pecado.