¨Tecnologia da IA incide no debate sobre governança urbana.
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Rawpick Freepick - Agência Brasil
Ao se falar em inteligência artificial, o que vem à sua mente? Às nossas vêm computadores superpoderosos e empresas globais onde jovens de moletom jogam sinuca, tomam Starbucks e programam os algoritmos mais incríveis, revolucionando e dominando o mundo. Mas, convenhamos, o problema não é a sinuca, nem o café, nem os algoritmos geniais. O problema é esse detalhe de querer dominar o mundo.
Não estamos falando aqui da dominação das máquinas sobre os humanos. Trata-se, como sempre, da velha dominação de alguns humanos sobre outros.
Essa dominação pode acontecer de várias formas, mas admitimos que nos falta criatividade suficiente para explorar universos alternativos. Por isso, vamo-nos limitar a duas, que se misturam constantemente: o domínio sobre as nações e o domínio sobre os indivíduos. Queremos abordar isso em uma das dimensões mais sensíveis: a da igualdade.
No recém-lançado livro Igualdade: significado e importância, Thomas Piketty (economista francês) e Michael Sandel (filósofo estadunidense) discutem o tema em três aspectos. O primeiro envolve o acesso universal a bens básicos como saúde, educação, alimentação e habitação. O segundo enfoca a igualdade política: formas de participação, capacidade de expressar valores e interesses e realização do princípio “uma pessoa, um voto”. O terceiro aspecto refere-se ao reconhecimento da igual dignidade de todos os indivíduos. Neste artigo, vamos focar a igualdade política.
O Brasil enfrentava uma onda de ataques a escolas, e se discutia o papel das redes sociais. Já era consenso entre os estudiosos a importância de não exibir imagens e nomes de autores desses ataques — pois isso funciona como estímulo para outros episódios —, mas as advogadas do Twitter (atual X) insistiam que os termos de uso da plataforma não permitiam essa medida. Eis o que ouviram do ministro:
— Não estou preocupado com os termos de uso dos senhores. (...) Nós não vamos deixar uma epidemia de assassinatos nas escolas por causa dos termos de uso do Twitter. Não são os senhores que interpretam as leis no Brasil.
Esse é, sim, um caso de dominação de grandes corporações sobre pessoas e Estados nacionais. E a inteligência artificial é a nova atualização dessa dominação. A IA é intuitiva, como tudo nesse mundo tecnológico, mas é também relacional e envolve confiança, reconhecimento e acolhimento. Se pensarmos IA como uma equação, talvez seja “algoritmo + dados + afeto = poder”.
Por isso, junto aos avanços tecnológicos, palavras como transparência algorítmica, regulação, governança e soberania entraram no foco dos estudiosos. E aí — quem diria? — eles já não olham apenas para computadores superpoderosos e jovens de moletom, mas também para experiências democráticas, incluindo o Orçamento Participativo (OP). Inventado em Porto Alegre (RS) e mundialmente reconhecido, o OP foi apontado como inspiração de co-governança pela edição 138 da Harvard Law Review, uma das revistas mais prestigiadas do mundo na área do Direito. O OP permite que cidadãos debatam e definam onde investir parte do orçamento da cidade.
Como afirma o capítulo 3 da revista de Harvard, “a inteligência artificial está prestes a mudar o mundo: todos sentirão seu impacto. E, se for assim, todos deveriam ter um papel na sua governança.” É assim que podemos encarar a dimensão da igualdade política que havíamos mencionado anteriormente.
Enfim, nesse mundo cada vez mais tecnológico, as inovações políticas e sociais são, muitas vezes, tão importantes quanto as inovações digitais. Ou até mais.
Nilo Lima de Azevedo é doutor em Sociologia Política e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
Bruna Marcelle Bastos Dias Marinho, doutora em Sociologia Política e Pós Doutoranda no Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Tauã Lima Verdan Rangel é doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF), pós-doutor em Sociologia Política (UENF) e pós-doutorando em Políticas Sociais (UENF)
Panorâmica Porto do Açu, 28/07/2025
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Ricardo Stuckert, Presidência da República
Estudei o cenário de São João da Barra (RJ) ao longo do meu mestrado e doutorado, e escrevi em 26/02/24, aqui mesmo na Folha da Manhã, sobre os problemas de um planejamento urbano competitivo e flexível, orientado pelo e para o mercado. Iniciando, porém, uma nova fase em meu percurso acadêmico, faço um esforço para tomar o mesmo objeto de estudo — a construção coletiva de uma cidade democrática — sob outro ponto de vista. Sem fechar os olhos para os problemas vivenciados na fase de implantação do Porto do Açu, busco prospectar avanços para a coletividade local.
Tendo ingressado recentemente em estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Uenf, estou me dedicando ao tema dos chamados portos e cidades inteligentes. O estudo procura identificar as principais possibilidades de contribuição do Porto do Açu para a institucionalização de políticas públicas que tornem as cidades ao seu redor mais inteligentes.
De acordo com o Relatório Mundial das Cidades, emitido pela ONU em 2022, 68% da população mundial será urbana até o ano de 2050. Em municípios como São João da Barra (79,8%) e Campos dos Goytacazes (92,6%), o Censo 2022 do IBGE já demonstra que a população urbana é maior do que a rural. Em função desse crescimento e com o intuito de aumentar a justiça social, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, tornar o espaço citadino sustentável, bem como solucionar problemas urbanos, surgiram as smart cities, ou seja, as cidades inteligentes.
Tal conceito pode ser apresentado a partir de várias perspectivas e visões, mas há entre elas um consenso: uma cidade inteligente deve dinamizar o desenvolvimento socioeconômico local, seguindo uma estratégia cidadã e democrática que situa a população no processo da ação, tendo a tecnologia e a inovação como instrumentos para responder aos desafios existentes, sem renunciar à sustentabilidade.
No contexto brasileiro, esse conceito tem sido acionado nas áreas da digitalização de serviços, da sustentabilidade ambiental e da participação cidadã, com experiências em São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Campinas e Recife, envolvendo desde mobilidade inteligente até centros integrados de monitoramento. Em Campos, como exemplo pontual até abril de 2021, tivemos o Mobi Campos, um aplicativo que permitia ao usuário monitorar a posição dos ônibus urbanos em tempo real, o que permitia ao passageiro evitar esperas desnecessárias e gerava mais segurança nos pontos.
Em tese, o Porto do Açu pode trazer avanços em inovação, eficiência e qualidade de vida para seus habitantes. Algumas ações apontam para essa direção, como o projeto Cais Açu Lab, que busca cooperação com empresas, instituições de pesquisa, órgãos governamentais e comunidades locais. Outro exemplo é o projeto “Transformando o Presente, Projetando o Futuro” (TPPF), cujo objetivo é melhorar a educação básica e reduzir a evasão escolar em São João da Barra. Ele é patrocinado pela Chevron Brasil — importante parceiro e cliente do Porto do Açu — em cooperação com o Instituto Aliança e a Secretaria Municipal de Educação (Semed) sanjoanense.
O Porto do Açu não precisa se limitar apenas à função de infraestrutura logística, mas desponta como uma plataforma estratégica para a construção de um território mais inovador, sustentável e conectado, podendo ser um agente de transformação urbana e social. Estudar potencialidades e limites desse cenário é uma tentativa para ajudar a desfazer a indiferença do empreendimento com o seu entono. Evidentemente, a efetivação dessa agenda não é simples e depende não apenas da adoção de Tecnologias de Inovação e Comunicação (TIC), mas também de políticas públicas integradas, participação ativa dos cidadãos e parcerias entre os setores público, privado e o meio acadêmico.
Raquel Chaffin Cezario é pós-doutoranda e doutora em Sociologia Política, mestra em Políticas Sociais e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Norte Fluminense. Atua como articuladora de políticas públicas na Secretaria de Educação de São João da Barra (RJ).
Panorâmica Porto do Açu
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Acervo pessoal Guilherme Pereira
O Porto do Açu, em São João da Barra, pode ser considerado um símbolo da estratégia de desenvolvimento econômico realizada no Brasil no início do século XXI. Em geral, a estratégia envolve o incentivo à realização de projetos relacionados à produção de commodities e a construção de infraestrutura capaz de lançar essas mercadorias no mercado internacional, mobilizando grandes montantes de capital e transformando o uso dos solos.
Originariamente, o porto serviria para exportação de minério transportado pelo mineroduto de 525 quilômetros. Com as ampliações, a estrutura foi aproveitada para outras atividades. Entre 2014 e 2023, 97,3% das movimentações portuárias de longo curso realizadas nos terminais do Açu foram de exportação, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
Desde 2022 o Terminal de Petróleo, localizado no terminal offshore e responsável pelo transbordo e exportação do petróleo, está entre os terminais mais importantes do país. Em 2023 ele assumiu o papel de principal terminal de exportação dessa commodity no Brasil, correspondendo naquele ano, segundo a Antaq, a 50% do total exportado, reafirmando a importância do empreendimento.
O complexo também se insere na dinâmica de produção de energia. Em 2021, a Gás Natural Açu I (GNA I), termelétrica movida a gás natural, foi inaugurada — e, além dela, o terminal de gás natural liquefeito (GNL) para o abastecimento da usina. Em 28/07 foi inaugurada a GNA II. Juntas, as duas usinas podem gerar até 3 GW de energia — suficiente, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para abastecer 14 milhões de residências.
Ainda segundo a Aneel, a GNA II consta como obra do novo PAC. Dos R$ 7 bilhões de investimentos, R$ 3,93 bilhões foram financiados pelo BNDES. Importante destacar que o acionamento das termelétricas depende da demanda de energia pelo sistema nacional, e desde seu início de operação a GNA I foi acionada todos os anos.
O acionamento das usinas depende da demanda nacional. A partir de 2015, a Aneel adotou o sistema de bandeiras tarifárias, refletindo o custo de produção de energia no Brasil, que aumenta com o uso de usinas termelétricas. Em fins de julho foi acionada a bandeira vermelha patamar 2, gerando, na conta de luz, aumento de R$ 7,87 para cada 100 quilowatts-hora (kWh) consumidos.
Outra questão em jogo é a das isenções fiscais. Em 2024, o governo do estado do Rio de Janeiro proporcionou regime fiscal diferenciado para as termelétricas (Lei 10.456/24), isentando de imposto a importação de gás natural. Entre os beneficiados está justamente o complexo do Açu. A renúncia fiscal envolvida em 2025 é estimada pelo Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual do Rio de Janeiro (Sinfrerj) em R$ 13,5 milhões.
Também importantes são os efeitos ambientais. O Sistema de Estimativas de Emissão de Gases de Efeito Estufa (Seeg) indica que a produção de energia na GNA I desde 2021 aumenta significativamente as emissões de gases carbono equivalente (métrica GWP-AR5). As estimativas indicaram que em 2021, início da operação e produção por seis meses, as emissões causadas pela produção de energia aumentaram em sete vezes em relação ao ano anterior. Mesmo depois desse pico, nota-se que em 2023 a produção de energia respondeu por 66% do conjunto de emissões no município.
Essa realidade indica a necessidade constante de discussão sobre o empreendimento instalado em São João da Barra e o padrão de desenvolvimento econômico produzido ali. Ali e no país de modo geral.
Guilherme Vasconcelos Pereira é economista, doutor em Sociologia Política pela Uenf e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do Observatório das Metrópoles.
Mobilidade no Centro de Campos dos Goytacazes
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Acervo MobiRede
A garantia do direito a cidades acessíveis e sustentáveis, à integração dos modos de transporte, à infraestrutura e à gestão democrática faz parte dos objetivos da política de mobilidade urbana.
Essa política é responsável por atender demandas sociais como a acessibilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida a todas as rotas e vias existentes; propiciar à população condição de acesso ao lazer, aos serviços e instrumentos urbanos adequados bem como aos equipamentos públicos, visando à melhoria da qualidade de vida.
É com esse propósito que a análise da atuação do poder público deve ser realizada, de modo a incorporar o direito à cidade no campo da gestão pública da mobilidade urbana. Nesse sentido, as políticas públicas de mobilidade urbana precisam, entre outros objetivos, atender o interesse público e coletivo, construindo uma política planejada e articulada democraticamente para a redução das desigualdades sociais e o aumento do acesso ao que é de direito do cidadão.
Na pesquisa “Políticas públicas e controle social: mobilidade urbana e aplicação dos recursos públicos em Campos dos Goytacazes/RJ”, foi possível analisar que no município, no âmbito formal da política (ou seja, no que consta no papel, estando previsto em lei), há, como estratégia da política de mobilidade urbana, as diretrizes de integração do território municipal, de promoção da acessibilidade e mobilidade universal, de requalificação dos espaços públicos, de ampliação e integração das diversas modalidades de transporte com as variadas atividades humanas localizadas no território municipal.
Contudo, ao aproximarmos o olhar para a realidade contida no cotidiano dos cidadãos, é possível enxergar lacunas que indicam a existência de um longo caminho a se percorrer para alcançar a justiça socioambiental. Podemos citar aqui alguns “gargalos” mais evidentes que afastam essas metas, tais quais a precariedade da infraestrutura de transporte público; pontos de ônibus com pouca iluminação; insegurança; horários convencionais e rotas que favorecem apenas o uso do transporte público para o trajeto ao trabalho, deixando em segundo plano o lazer e as atividades noturnas, inclusive as relacionadas ao ensino, com um maior agravante nos finais de semana; calçadas irregulares e deterioradas com dimensões que dificultam a caminhabilidade e o acesso de pessoas com deficiência ou locomoção reduzida; a deseducação no trânsito; a falta de continuidade e de distribuição homogênea da sinalização etc.
Diante deste contexto, também nos importa voltar a atenção para variáveis menos visíveis, que são possíveis de se identificar quando direcionamos o olhar para o aspecto mais operacional da gestão dessas políticas. Dentro do setor de mobilidade, é possível identificar um déficit de instrumentos de participação social que consigam promover uma melhor interlocução entre as demandas da sociedade civil e o Estado (poder público). Nota-se que as ações da gestão responsável pela mobilidade urbana estão, em grande parte, voltadas para a (re)estruturação da estrutura administrativa; a (re)configuração de marcos legislativos; bem como o desenvolvimento e o resgate de (macro)projetos voltados para infraestrutura viária, novas vias e traçado urbano.
Contudo, se levarmos em conta uma cultura política marcada pela valorização de políticas de curto e médio prazo (dado o período de quatro a oito anos de governo, a depender se haverá ou não reeleição), acaba-se gerando, muitas vezes, um ciclo com início e meio, mas sem um fim.
De fato, ações mais efetivas têm sido direcionadas ao campo da mobilidade urbana, com ciclovias e a ampliação e criação de ciclofaixas, que tem sido implementadas como principal (na verdade, única) política pública de mobilidade ativa. Nos aspectos de acessibilidade, sustentabilidade e transporte público integrado, é possível observar pontos que necessitam de investimento público, desde intervenções na infraestrutura de vias e calçadas, considerando a arborização, até o melhoramento da frota de transporte público, assim como projetos integrados ou alternativos que inclusive estimulem o uso de patins, patinete e skate, caminhadas e corridas, pensando nas possíveis manifestações esportivas na paisagem urbana.
Quanto à estrutura administrativa, a partir de 2020, a mobilidade urbana se inseria em uma “macrossecretaria” de Planejamento Urbano, Mobilidade e Meio Ambiente (SEMPUMMA). Esse grande guarda-chuva abrigava três subsecretarias — Mobilidade; Meio Ambiente; e Planejamento Urbano —, além do Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT), órgão executivo.
Mas este ano, houve uma reformulação, que extinguiu a SEMPUMMA como secretaria, estabelecendo a antiga Secretaria de Meio Ambiente, bem como a Subsecretaria de Planejamento Urbano e a Subsecretaria de Mobilidade Urbana como subsecretarias ligadas à Secretaria de Obras. Embora tais (sub)secretarias estejam teoricamente integradas, na prática poderiam apresentar mais projetos ou ações conjuntas no campo da mobilidade urbana, com melhor articulação com o IMTT e os Conselhos Municipais. Outra evidência: embora o Plano Diretor de Campos preveja uma série de instâncias associadas à mobilidade, o que se vê (sem retirar sua importância) são políticas mais direcionadas à infraestrutura física da malha viária, a ciclofaixas em áreas mais centrais (sem integração das ciclovias e ciclorrotas em toda planície campista) e à instalação de novas coberturas em pontos de ônibus. Pouco se observa de atuação efetiva e diferencial em áreas como transporte público hidroviário, multimodal e em prol da acessibilidade, por exemplo.
Apesar dos avanços com os marcos legais e políticas adotadas pelas (sub)secretaria(s) e pelo IMTT, bem como da identificação de esforços por parte do poder público para a melhoria das políticas urbanas de mobilidade, o setor ainda encontra déficits significativos para estabelecer uma política de mobilidade baseada em indicadores da sustentabilidade, acessibilidade e justiça social. Por exemplo, sentimos falta de publicização/visibilidade da atuação do Conselho de Mobilidade, que poderia ocorrer de forma mais transparente, ou de que haja outro espaço de diálogo com as minorias que dependem da mobilidade ativa e/ou do transporte público, para que não haja um tipo de engessamento que reproduza as desigualdades sociais.
Outro fator identificado que dificulta a operacionalização das políticas de mobilidade, embora não seja uma especificidade do caso campista, é a falta de continuidade política e de informações oficiais acessíveis nos canais de comunicação: com o fim dos mandatos ou troca de gestores, por vezes se rompe o que já fora estabelecido, acarretando a descontinuação de projetos. Também se observa que o site da prefeitura está desatualizado quanto aos Conselhos e órgãos e que há dificuldade para acessar dados orçamentários de forma clara e direcionada aos investimentos no setor de mobilidade urbana.
O Plano Diretor aborda os conceitos de sustentabilidade e acessibilidade, mas o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável — que é um instrumento da política urbana municipal, aprovado por lei como um plano de ação em 2022 — precisa ser revisto. Por decisão do Tribunal de Contas do Estado (TCE), no processo TCE-RJ 204.917-3/2023, é preciso aproximar da realidade local o desenho dessa política pública. Dentre os aspectos destacados pelo órgão que vetaram a implantação do plano de mobilidade estão: (a) a formulação do plano apenas com diretrizes que demandam ações a serem posteriormente planejadas, inviabilizando qualquer possibilidade de comparação concreta com o Plano Diretor; (b) falta de ações estratégicas no PMU; (c) falhas no planejamento (diagnóstico, prognóstico, criação de soluções, resultados esperados e formulação) que inviabilizam a aplicação prática da Política Pública de Mobilidade Urbana; (d) falta de participação social e de transparência no processo para a formulação do PMU; (e) falta de planejamento e gerenciamento na política pública de mobilidade urbana considerando os impactos dos transportes intermunicipais; e (f) lacunas entre as ações estratégicas de mobilidade urbana e urbanismo de Campos dos Goytacazes com os instrumentos de planejamento orçamentário do Executivo.
Isso destaca a necessidade tanto de se estabelecer categorias de ações fundamentadas em diretrizes e metas — como as presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, no Estatuto da Cidade, no Plano Nacional de Mobilidade Urbana, no Estatuto da Pessoa com Deficiência e no Plano Diretor — quanto de melhorias na operacionalização das políticas públicas de mobilidade urbana observando aspectos fundamentais de gestão, como ações integradas, planejamento orçamentário e dispositivos de participação social. Dessa forma, será possível efetivar as políticas públicas municipais, avaliá-las e estabelecer (novas) estratégias que consigam, de fato, fazer diferença na realidade dos cidadãos.
Juliana da Cunha Miguel é doutoranda do PPGSP/UENF, pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e bolsista voluntária do APPA/MobiRede - IFF.
Daniela Bogado é professora do IFF Campos e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do APPA/MobiRede.
Uso de água tratada
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Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Em 2021 dezenas de municípios fluminenses — como São Fidélis, São Francisco de Itabapoana, Carapebus e outros do Norte Fluminense — transferiram à iniciativa privada a responsabilidade pela provisão do abastecimento de água e do esgotamento sanitário. Hoje, já são 65 municípios do estado que contam com a oferta desses serviços por empresas privadas. Uma mudança significativa que levanta debates sobre a atuação das prefeituras e sobre quem ganha com essa reestruturação.
Após cerca de quatro anos de concessão, a universalização e a modernidade na infraestrutura sanitária parecem distantes, e a justiça ambiental segue fora do radar.
Pesquisa de nossa autoria apresentada em maio de 2025 no XXI ENANPUR (Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional) traz algumas respostas. Um dos motivos decisivos para transferir a provisão para a iniciativa privada foi a outorga recebida pelos municípios por meio da concessão — um valor em dinheiro pago pelas concessionárias. Outro ponto importante foi o receio de ficar sem o repasse de recursos da União previsto para projetos de concessão ou parcerias público-privadas no novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020). Atualmente, os municípios da região apresentam dificuldades orçamentárias diante de suas responsabilidades, tornando-os dependentes do repasse de recursos estaduais e federais para a concretização de suas políticas públicas. Além disso, falou mais alto a lógica imediatista de tentar eximir-se da responsabilidade pela solução dos problemas da gestão do saneamento.
Também levantamos as razões para não se aderir à privatização: (a) o diálogo constante das prefeituras com a Cedae e com o sindicato, especificamente o Staecnon (Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento de Campos e Região Norte e Noroeste do Estado do Rio de Janeiro), e (b) o andamento de projetos no setor de saneamento, inclusive em parceria com a Cedae. Na região, não aderiram os municípios de Macaé, Quissamã, Cardoso Moreira, São João da Barra, por exemplo. Vale notar que Campos dos Goytacazes já possuía serviços privatizados desde 1999.
Todo o processo de concessão se revelou pouco transparente e marcado pela ausência de participação efetiva dos municípios e da população nas decisões, inclusive em virtude da pandemia da Covid-19. Pior: não houve estudos de viabilidade técnica e financeira, e em muitos casos os próprios municípios não eram capazes de entender as demandas do setor e fiscalizar a prestação do serviço. Nesse cenário, a privatização nem deveria ser cogitada como solução para o saneamento, uma vez que as prefeituras não conseguem sequer dialogar com os prestadores.
Na busca por cumprir um requisito formal, foram apresentados Planos Municipais de Saneamento Básico feitos apenas para constar — tanto que alguns municípios estão agora trabalhando na sua efetiva construção.
Outro ponto crítico foi a passividade frente às decisões do governo estadual, com as prefeituras não reconhecendo a própria autonomia. Por fim, a relação conflituosa de muitas prefeituras com a Cedae agravou ainda mais o cenário, perdurando na região a falta de diálogo entre o ente municipal e a companhia estadual.
Nitidamente a decisão municipal vai além de uma mera escolha política, envolvendo a complexa condição da capacidade institucional — potencial de atuação na gestão e provisão do saneamento. Fica evidente que os caminhos para a ampliação do acesso ao saneamento passam pelo fortalecimento municipal. Apesar de casos isolados de oposição às práticas inadequadas das empresas privadas, ainda falta uma medida definitiva e de controle que reduza a lógica do lucro acima do acesso universal.
Sem essa perspectiva que deveria guiar a provisão e a gestão do saneamento, a universalização seguirá apenas como elemento narrativo para reprodução de estatísticas que não revelam a realidade de nossa região. Esse é outro problema sério, que, quem sabe, pode vir a ser tratado em um futuro artigo.
Juliana Santos Alves de Souza é doutoranda em Ciências Ambientais e Conservação pela UFRJ e pesquisadora assistente do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
Érica Tavares é professora da UFF e uma das coordenadoras do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Socioambientais NESA/UFF.
Giuliana Franco Leal é professora da UFRJ-Macaé e líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Socioambientais e Ecologia Política, no Instituto NUPEM/UFRJ.
Cidade de Campos dos Goytacazes
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Coleção Núcleo Norte Fluminense.
A partir de hoje, site do jornal Folha da Manhã lança o blog Observa Cidades, espaço cedido ao debate público sobre os desafios para o desenvolvimento urbano com foco nos municípios do Norte Fluminense. O conteúdo é produzido pelo Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles, que reúne pesquisadores e professores do IFF, Ucam, Uenf, UFF e UFRJ.
A sigla INCT se refere ao programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Como consta do edital mais recente, de 2024, o programa é voltado para o fomento a “pesquisas de alto impacto científico e visando à solução dos grandes desafios nacionais”. O Observatório das Metrópoles é um dos INCTs aprovados e desenvolve pesquisa em rede por meio de 18 núcleos instalados em metrópoles ou centros regionais brasileiros. O Núcleo Norte Fluminense, sediado na Uenf, é um dos três que não se localizam em capitais — ao lado dos da Baixada Santista (SP) e de Maringá (PR).
Uma das características distintivas do INCT Observatório das Metrópoles é a produção de conhecimento capaz de contribuir com o debate, elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas. Por isso o esforço dos pesquisadores ocorre em diálogo com autoridades públicas e movimentos sociais. Também por isso o blog Observa Cidades vai tratar sempre de questões urbanas aplicáveis à realidade de Campos, Macaé, São João da Barra e outras cidades da região.
Em 2024, ano de eleições municipais, o Núcleo Norte Fluminense ocupou espaço semelhante na Folha da Manhã com o projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível”. Ao final do primeiro semestre, um resumo do debate foi compilado na publicação de um Caderno de Propostas aos candidatos.