Reprodução Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 22/10/2025.
O tão aguardado passo para viabilizar a 6ª edição do Festival Doces Palavras (FDP!) foi dado: o projeto submetido junto ao estado teve sua aprovação concluída nesta quarta-feira (22). O evento receberá, pela aprovação do projeto, 210 mil reais. A previsão de datas segue a mesma, devendo o FDP! ocorrer de 5 a 9 de novembro, no Palácio da Cultura (veja matéria da Folha aqui).
Após meses de incertezas sobre verba e estrutura, os organizadores da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) e a sociedade civil têm o sinal verde estadual para viabilizar os recursos através da lei de incentivo, onde uma empresa pode direcionar parte do que paga em impostos para a iniciativa.
A aprovação do projeto é um passo importante e um alívio para organizadores e para toda a cena cultural da cidade.
Incertezas de antes, prazo apertado de agora
O FDP! já vinha com data confirmada: de 5 a 9 de novembro, conforme anúncio da Fundação. Em edições anteriores, o festival enfrentou atrasos e obstáculos logísticos – inclusive originalmente programado para final de setembro, mas remarcado para novembro.
Agora, com o aval do estado, abre-se o caminho para que a curadoria, autores, oficinas, debates e shows façam parte novamente deste importante momento de literatura, cultura e identidade campista.
O que parece ser o desafio agora é o tempo. Com a aprovação do projeto, os próximos passos precisam ser dados para que o recursos seja disponibilizado, e aplicado na execução do festival. Com apenas nove dias úteis pela frente, será preciso agilidade organizacional e vencer burocracias.
Um ponto positivo é que o FDP! já estava em andamento, tendo a FCJOL publicando edital essenciais para que o festival aconteça e já abrindo as inscrições para autores e escritores lançarem suas obras.
O edital, publicado na terça-feira (14), busca selecionar universitários voluntários para atuarem na organização do FDP 2025, com o credenciamento de 10 estudantes para as ações de apoio e produção do festival. Para escritores, as inscrições encerram-se hoje (22), e tem como proposta “valorizar a produção literária local, promover o encontro entre autores e leitores e estimular o acesso à leitura em diferentes faixas etárias”.
Tendo em vista que o interior fluminense historicamente lida com obstáculos de captação, execução e visibilidade para eventos culturais, a aprovação do projeto representa ao menos um avanço simbólico e prático. Ainda assim, a liberação dos recursos e concretização do evento dependem agora da boa articulação dos parceiros, da Prefeitura, do estado e dos patrocinadores interessados.
Fica o compromisso de que a programação seja divulgada em breve, bem como os nomes dos convidados, debates, oficinas e shows, com a certeza de que o calendário local terá novamente este momento literário-cultural mergulhado na identidade campista.
Com o aval estadual, a 6.ª edição do Festival Doces Palavras está pronta para sair do papel — o que motiva não apenas a FCJOL e a Prefeitura, mas toda a comunidade literária, artística e cidadã de Campos. Resta agora que a pauta administrativa e organizacional seja bem cumprida para que o festival reafirme seu lugar no calendário cultural da região, sem que o silêncio volte a dominar no lugar das “palavras doces”.
Veja publicação da prefeitura de Campos sobre credenciamento de estudantes aqui.
Veja publicação da prefeitura de Campos sobre inscrições de autores aqui.
A apresentação que o jornalista Vitor Menezes transmitida no telão da Academia Campista de Letras (ACL), no último 22 de setembro, trazia um histórico do Festival Doces Palavras (FDP!), desde sua concepção até a edição atual, de 2025. O público presente ouvia atentamente, e a mesa composta pela direção da Fundação Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) aguardava sua vez de falar e prestar esclarecimentos sobre os andamentos do FDP! até aquela data.
Após a apresentação de Menezes, é concedida a palavra ao escritor e dramaturgo Adriano Moura, que pondera sobre o prazo exíguo para a organização do festival e faz a pergunta que todos se faziam naquela ocasião: “vai ter ou não vai ter o FDP! este ano?”.
Para responder a pergunta, Fernanda Campos, atual presidente da FCJOL, começa sua fala agradecendo os que falaram antes dela e quem estava ali presente, e relata o empenho de sua equipe em fazer com que a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, através de leis de incentivo, aprovasse o projeto do FDP! inscrito algum tempo antes. Sobre a possibilidade de realização às expensas do município de Campos, a presidente disse que as condições atuais dos cofres públicos locais não estavam favoráveis, principalmente por entraves no repasse de recursos estaduais na área de saúde. Mas, termina sua fala afirmando que o FDP! será realizado, e que “daria um jeito” do festival ser posto em prática.
Um festival genuinamente campista
O Festival Doces Palavras é um evento literário genuinamente campista. Pensado para ser realizado no interregno da bienal local, o FDP! desde o início se propôs a aliar diversas manifestações da cultura de Campos, inclusive levando as tradicionais doceiras da cidade para expor e comercializar seus produtos.
Artigo do jornalista Vitor Menezes, no "Monitor Campista" onde nasce a ideia do FDP!.
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Wellington Cordeiro
A prefeitura de Campos seguiu apoiando e realizando o FDP!, até 2019, quando decidiu não mais participar. Na ocasião, a sociedade civil abraçou o evento e o realizou com uma programação descentralizada, ocorrendo durante um mês, em vários espaços culturais da cidade. Em 2021 foi retomada a realização pela prefeitura, que precisou planejar atrações híbridas por conta da pandemia da Covid-19.
A edição atual do FDP! encontra uma situação semelhante à de 2019. Embora a FCJOL não se negue a promover o evento, as dificuldades financeiras alegadas já fizeram com que o evento inicialmente marcado de 24 a 28 de setembro fosse adiado para novembro, do dia 5 ao dia 9.
Na última quarta-feira (1), uma nova reunião, dessa vez no Museu Histórico de Campos e sem a presença da presidente da FCJOL, o diretor artístico da Fundação, Fábio Matos, reforçou que o FDP! acontecerá no novo período acordado, e com previsão de ser realizado nas dependências do Palácio da Cultura — equipamento localizado no coração de um dos bairros mais valorizados de Campos.
Um dilema FDP!
Apesar das confirmações da Fundação Cultural — instituição que faz as vezes de Secretaria de Cultura em Campos —, o FDP! segue com a dúvida sobre qual será a origem dos recursos para sua realização.
No Estado, dois projetos com o festival como objeto seguiam, em paralelo, para buscar aprovação. O primeiro, de número 73.541, foi desclassificado pela secretaria estadual em 23 de setembro deste ano, informado pelo Diário Oficial do Rio. O segundo, registrado com a numeração 74.088 segue em análise, e terá seu destino decidido daqui a dois dias, na próxima quinta-feira (9).
A plataforma estadual é estruturada em lei de incentivo fiscal, onde empresas aportam recursos que seriam usados no pagamento de impostos. Apoiando o FDP! estaria a rede de supermercados “Dom Atacadista”.
Reunião na quarta (1º) sobre o FDP!, no Museu Histórico de Campos, contou com representante da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, mas não com a sua presidente, Fernanda Campos (Foto: Rodrigo Silveira/Folha da Manhã)
Consultado pelo Folha1 sobre o projeto, a Secretaria de Cultura do Estado informou, através da assessoria de comunicação, que “o proponente (FCJOL) ainda não anexou ao sistema a declaração de patrocínio, documento obrigatório para a liberação do recurso. Assim, mesmo que o projeto seja aprovado pela CAP, sua fruição só poderá ocorrer após a apresentação da referida declaração”.
O prefeito de Campos, Wladimir Garotinho, e a presidente da FCJOL, Fernanda Campos, contestaram a informação do Estado, ao Folha1. “Não é verdade, o documento foi entregue, eu mesmo busquei o documento com o representante do Dom Atacadista”, disse Wladimir. Já Fernanda, disse ser “improcedente” a informação, e confirmou o envio do documento exigido pelo Estado em “22 de agosto, tão logo obtivemos importante e fundamental documento em mãos”.
Procurado, o prefeito de Campos disse “não ser verdade” que o documento não foi entregue. E que ele próprio havia buscado o documento com o representante do Dom Atacadista, que teria sido encaminhado ao estado há cerca de 30 dias.
Sobre a contestação da Prefeitura, a secretaria estadual insiste: “reiteramos que o projeto Festival Doce Palavras foi submetido ao Sistema Desenvolve Cultura em 29 de agosto e será analisado no dia 9 de outubro (...) em um período consideravelmente mais rápido do que o possível de acordo com a legislação vigente”, e que “o modelo padrão (da declaração), encontrado no nosso site oficial, não foi anexado ao sistema, em discordância com a legislação em vigor”.
Além de alegar desconformidade do documento, a secretaria informa que “é necessário que a empresa (Dom Atacadista) apresente certidão negativa de débitos trabalhistas, o que não consta no parecer da Justiça do Trabalho”. Informa ainda que tentou contato com a FCJOL, via sistema, “buscando solucionar as questões apresentadas, mas não obteve resultado”.
Enquanto os documentos cruzam prazos e protocolos e as declarações se transformam em versões contraditórias, o tempo corre contra o festival. O FDP! nasceu da vontade de unir palavra e identidade, mas parece agora aprisionado no labirinto da burocracia e das alegações de falta de recursos.
Cultura, como direito difuso e constitucional, pode servir também de ganho turístico e econômico para a cidade — mas, antes de tudo, é um direito. E não um favor.
Campos dos Goytacazes tem um festival que é mais do que evento: é manifestação local de cultura. O FDP! Festival Doces Palavras, organizado pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) em parceria com a sociedade civil, nasceu como uma rara convergência entre literatura, música, patrimônio e cidadania. Um espaço onde o setor cultural da cidade, tantas vezes acusada de não se escutar, finalmente pôde se reconhecer na própria voz.
Mas para que palavras ecoem, é preciso microfone e estrutura. E para que microfones funcionem e estrutura aconteça, é preciso orçamento. Orçamento que a prefeitura alega buscar junto ao Estado, através de edital de apoio da Secretaria de Cultura estadual. A questão é que o festival, que já foi adiado (veja matéria do Blog de Matheus Berriel aqui) para novembro (5 a 9/11), precisa de tempo hábil para organização.
Com a preocupação de quem milita na área cultural há algum tempo e percebe a importância de um evento como o FDP!, tentei conciliar obrigações e interesses dos poderes públicos, e para isso me reuni com o presidente da Câmara, Fred Rangel através do vereador Dudu Azevedo. A posição da Câmara é de apoio ao evento, mas segundo o presidente não haveria caminho jurídico e administrativo para aplicação de recursos diretamente do legislativo.
No mesmo sentido, busquei a reitoria da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), através da reitora Rosana Rodrigues e do diretor de Cultura Giovani do Nascimento, que prontamente se dispuseram a ajudar a realização do evento.
Em contato com a secretária estadual, Danielle Barros, a mesma se comprometeu em verificar o andamento da solicitação, e em ato contínuo foi demandado à secretaria uma posição oficial, que não foi respondida até a publicação deste artigo.
Embora o papel de articulação seja da organização do evento, a ideia em procurar os dois entes aqui citados atende a ideia de que ambos devem, enquanto agentes locais públicos e essenciais, apoiarem um festival com essas características. E deixa uma pergunta, após contatos feitos: a FCJOL, hoje presidida por Fernanda Campos, que deveria ser a guardiã e articuladora natural desse festival, tem feito as articulações necessárias, ou aguarda apenas o orçamento do Estado?
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Problema que se arrasta
O problema não é de hoje. A política cultural em Campos tem se movido em passos tímidos, com raras iniciativas sustentadas de forma perene. O FDP! não é capricho de produtores culturais; se trata de uma construção coletiva, que já mostrou público, relevância e impacto. Mas a cada edição paira a dúvida: haverá verba? Haverá vontade política?
Hoje (1), às 18h, está marcada uma reunião no Museu Histórico para tratar do futuro do festival. Reunião que não é só administrativa, também tem caráter simbólico. Por lá, a sociedade civil, partícipe do evento, deverá cobrar da FCJOL ações e ocupação de espaços culturais com incitativas dessa natureza, e lugares para isso não faltam na cidade. A FCJOL precisa assumir a liderança que dela se espera, sem terceirizar ao improviso da sociedade civil o que é dever institucional.
A cidade tem direito à sua festa das palavras. Mas palavras, sem respaldo, viram apenas discursos vazios. O festival, para existir, precisa que as instituições falem menos “não há como” e mais “vamos fazer acontecer”. A omissão custa caro: uma cidade que cala suas palavras, cedo ou tarde, se acostuma ao silêncio.
O FDP! Ainda está aqui?
Não se trata, portanto, de um favor que a FCJOL ou a Prefeitura fariam à sociedade civil. Trata-se de reconhecer que Campos precisa de um projeto cultural que vá além da retórica. O festival é uma oportunidade de mostrar que a cidade é capaz de falar de si mesma, de se olhar no espelho, de se escutar. Negligenciar isso é um contrassenso em pleno 2025, quando é essencial discutir memória e identidade.
O encontro de hoje no Museu Histórico não pode ser só mais uma reunião protocolar. É preciso sair de lá com um compromisso: que a Prefeitura e a FCJOL assumam a responsabilidade que lhes cabe, que a Uenf e outras instituições parceiras somem forças - caso sejam chamadas a participação oficialmente - e que a sociedade civil, como sempre, faça sua parte. O que não dá é para continuar empurrando o festival com a barriga, sob risco de transformá-lo em lembrança, em vez de tradição.
Porque, ao fim, a escolha é simples: ou Campos aposta nas palavras — doces, críticas, plurais — ou se resigna ao silêncio. E o silêncio, já sabemos, nunca foi bom conselheiro de nenhuma cidade.
Pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e da Fairfield University, dos Estados Unidos, lançaram uma pesquisa para avaliar o que a população de Campos dos Goytacazes sabe e pensa sobre o patrimônio cultural do município. O questionário, que leva cerca de 15 minutos para ser respondido, está disponível online e pode ser acessado por qualquer morador interessado.
O estudo é coordenado pelo professor Carlos E. de Rezende (Uenf) e pelo professor William F. Vásquez (Fairfield University). O objetivo é coletar informações que possam subsidiar a formulação de políticas públicas voltadas à preservação da memória cultural campista. A participação é voluntária e anônima.
A pesquisa chama atenção em um momento de fragilidade do patrimônio local. Espaços históricos como o Mercado Municipal, em condições insalubres, o Museu Olavo Cardoso, fechado, e o Solar dos Airizes, em ruínas, revelam a dificuldade do município em lidar com sua herança cultural. A iniciativa dos pesquisadores pode ajudar a medir o grau de engajamento da sociedade diante desse cenário.
As respostas são coletadas por meio da plataforma Qualtrics, que não exige informações pessoais, como nome ou e-mail, nem registra o endereço IP dos participantes (link aqui). O sistema é seguro e garante o anonimato dos dados, que poderão ser compartilhados em pesquisas acadêmicas futuras, sempre de forma confidencial.
Medir o conhecimento e o apego
A pesquisa servirá para um necessário exame de consciência coletiva do campista sobre seu patrimônio cultural. Além de medir o grau de conhecimento — e apego —, busca levantar dados que possam ajudar na formulação de políticas públicas voltadas para a preservação cultural.
Link para pesquisa abrirá a página inicial com as informações completas e termo de consentimento eletrônico. Basta seguir as páginas e responder os questionamentos propostos, podendo pular perguntas.
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Embora não haja qualquer benefício financeiro ou premiação ao participante, o ganho é coletivo: as respostas ajudarão a orientar ações e decisões que impactam a preservação de prédios, praças, tradições e símbolos culturais da cidade.
Afinal, qual é a real importância que a população atribui à sua própria história? Mais do que medir conhecimento, o estudo testa a nossa disposição de assumir responsabilidade sobre uma herança que resiste mais pela força do acaso do que pelo zelo público.
Serviço
O que é: Pesquisa sobre o patrimônio cultural de Campos dos Goytacazes Quem realiza: Prof. Carlos E. de Rezende (Uenf) e Prof. William F. Vásquez (Fairfield University) Tempo estimado: 15 minutos Confidencialidade: Garantida pela plataforma Qualtrics
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível.
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Foto: Genilson Soares / Folha1
O Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes completa nesta segunda (15), 104 anos de existência (veja matéria da Folha1 aqui). Pelo menos esse que conhecemos hoje, ao lado do Parque Alberto Sampaio — a cidade já possuía outras praças de mercado antes da inauguração do atual, em 1921.
O Mercado que faz parte da paisagem campista, há mais de um século, nasceu em uma perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a “torre do relógio”), com forte inspiração europeia e servindo com símbolo de progresso e urbanização da cidade, no início dos anos 1920.
Mas o que era para se manter como um orgulho acabou se convertendo em um problema.
Problema que pouco tem relação com os permissionários da feira livre (boxes instalados na frente do mercado e abaixo de uma estrutura metálica), do camelódromo (boxes instalados na outra face do prédio, também abaixo de um galpão) e do próprio mercado, mas sim com estreita ligação com uma série de decisões equivocadas por parte do poder público.
O que era para ser símbolo de vitalidade urbana virou retrato de abandono e descaracterização. Embora seu interior ainda mantenha a alma — com cheiro, voz, caldo de cana e a sociabilidade popular —, o entorno e o próprio prédio histórico foram totalmente descaracterizados.
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia
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Arquivo
A obra do camelódromo nunca deveria ter sido liberada naquele local, pois vai contra todas as recomendações das instituições de proteção ao patrimônio histórico. A estrutura metálica da feira e da peixaria, construída nos anos 1980 para ser provisória, esconde as potencialidades do Mercado e mantém os permissionários em condições inadequadas.
O que comemorar?
Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio.
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Foto: César Ferreira / PMCG
Ao transeunte que tenha passado hoje pelo Mercado e visto bolo e banda de música, pode ter ficado a impressão de que havia uma comemoração ali. Celebrar a longevidade de um centro comercial, com o valor afetivo daquele espaço, é necessário. Mas perceber que as condições dos feirantes é ruim e que o prédio está em estado de abandono é ainda mais.
Há quem diga que a construção de inspiração francesa, com sua torre do relógio, é patrimônio, e que a cidade não pode abrir mão dele. E de fato não pode — mas patrimônio se conserva e se deixa exposto, acessível, possível de contemplação e cumprindo um papel memorialístico.
Tudo o que não se percebe no Mercado: esmagado por duas estruturas estranhas, invisível e mal conservado.
Descaso que não se confunde com quem trabalha no local e luta com esforços diários para manter tudo o mais saudável e limpo possível. Gente que começa na madrugada a preparação para a venda de peixe, farinha, hortaliça, biscoitos, doces e outros tantos produtos que poderiam ser comercializados para turistas e campistas de forma muito mais confortável.
Para um problema complexo, soluções complexas devem ser empreendidas. Não há caminho fácil ou resolução possível sem realocar pessoas, fazer intervenções através de obras e alterações logísticas, modificar a paisagem e ressignificar vivências e espaços. Porém, são ações necessárias e urgentes, uma vez que as omissões se arrastam por décadas.
Existe a proposta de construir um novo mercado (nova feira), moderno, higienizado, arejado, na Praça da República, atrás da rodoviária do centro, a Roberto Silveira. Local que está a menos de 300 metros da atual feira, e encontra-se subutilizado. Embora o projeto necessite de ajustes e maiores discussões, inclusive com os feirantes, é uma solução bastante crível e que a prefeitura já sinalizou interesse em realizar.
Mas, como tradição em Campos, aparece a resistência: uns falam em “matar a tradição”, outros em “descaracterizar o centro histórico”. Como se tradição fosse sinônimo de precariedade, como se memória tivesse que conviver obrigatoriamente um ambiente sem as adaptações necessárias para os tempos atuais.
Além disso, não se trata de demolir o antigo, mas de criar o novo. O atual mercado pode — e deve — ser preservado como espaço cultural, centro gastronômico e polo turístico. Pode e deve se integrar com o Parque Alberto Sampaio e com centros populares de comércio, desde que respeitem as especificidades do patrimônio histórico.
O novo mercado, por sua vez, deve ser construído para cumprir o papel de abastecimento, com dignidade e condições sanitárias adequadas. Mas em Campos, quase tudo vira disputa binária: ou se mantém o cadáver em pé ou se apaga a história. Enquanto isso, a cidade definha seu patrimônio e potencial no meio-termo, incapaz de se mover.
Aos 104 anos, o Mercado Municipal é mais testemunha de abandono do que motivo de orgulho. Talvez seja esse o retrato mais fiel de Campos: uma cidade que carrega o passado como peso, mas não consegue transformá-lo em futuro.
Héllen Souza - 31/07/2020 - PMCG
O purismo pode ser entendido como a vontade de manter algo em seu estado natural, puro. Nas artes, foi um movimento que buscava uma pintura sem subjetividades; pura, portanto.
No meio cultural de Campos, o purismo se manifesta. Basta um olhar — e ouvidos — mais atento às discussões em torno do caso do Mercado Municipal (esse fica para uma outra publicação, de discussão igualmente urgente e necessária) e do Palácio da Cultura para ver defesas apaixonadas para que tudo permaneça como está, ou volte a estados originais impossíveis de serem reproduzidos novamente.
Arquitetonicamente, o Palácio da Cultura é uma construção sacralizada. Os traços modernistas do arquiteto Francisco de Assis Leal ergueram um monumento circundado por jardins projetados por Burle Marx. O prédio é protegido pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Arquitetônico Municipal (Coppam) desde 2013.
Simbolicamente, o Palácio possui um enorme valor afetivo, memorialista e de pertencimento ao campista. Abrigou a icônica Biblioteca Nilo Peçanha e foi palco de inúmeros eventos culturais. E guarda o Pantheon, onde estão depositados os restos mortais de personagens históricos da cidade. Nasceu no governo Rockefeller de Lima, que escolheu a antiga Praça da Bandeira — no coração da Pelinca — como terreno. Um local que, surpreendentemente aos olhos de hoje, era pouco frequentado e sem grande comércio ao redor.
O Palácio sempre foi palco de cultura, mas se elitizou. E sua localização acompanhou esse processo. Embora a cultura seja, por definição, plural e democrática, Campos historicamente manteve seus espaços culturais restritos, falando para um público específico e produzida por grupos pertencentes a esse mesmo público.
O fechamento do Palácio da Cultura parece ter incomodado menos que as propostas para sua reabertura. Desde 2014, as melancólicas portas fechadas escondem a omissão do poder público e a ausência de projetos para retirá-lo do abandono (veja aqui). A primeira proposta de reabertura dividia o Palácio em dois: metade seria ocupada por um “Centro Municipal de Inovação”; a outra metade abrigaria a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL), com espaço para exposições e a volta da Biblioteca Nilo Peçanha — física e digital.
Na ocasião, por decisão da 4ª Vara Cível de Campos, a obra seria custeada como medida compensatória pela demolição de um prédio histórico na Rua 13 de Maio, onde funcionava o Casarão do Clube do Chacrinha, entre 2012 e 2013, demolido sem autorização dos órgãos competentes.
Mas, por mais omissão do poder público e rejeição da proposta pelo setor cultural — não determinante, mas influente em um governo impopular —, o Palácio permaneceu fechado. Como segue até hoje.
Rodrigo Silveira - Folha1
A proposta atual é semelhante. Com previsão de obras concluídas até o fim de 2025, a ideia é que o Palácio abrigue o Centro Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Cetec), além da FCJOL, a Escola de Formação de Educadores Municipais (Efem), os programas Mais Ciência, Startup Campos, Economia Criativa, e a reabertura da Biblioteca Municipal (veja matéria da Folha aqui).
Novamente, parte do setor cultural reage. E há um ponto legítimo nesse incômodo: quando o “cultural” se torna um adjetivo decorativo, o risco de o Palácio da Cultura virar palco de tudo, menos da cultura, é real. É razoável se preocupar com o esvaziamento simbólico e funcional do espaço.
O problema é quando a crítica se torna automática. O purismo cultural, diante da realidade atual do prédio, da Pelinca e de Campos, soa deslocado. Permitir que o local seja compartilhado e plural não é abandonar o compromisso com a cultura. Pelo contrário: é a chance de renovar esse compromisso. Cultura não é altar, é movimento. O que seria esse compromisso estrutural? Garantir programação permanente, orçamento definido, curadoria técnica, política pública transparente. Do contrário, resta apenas o aluguel de um prédio bonito para eventos ocasionais com carpetes vermelhos e figurões em paletós gastos.
O que se espera de um espaço cultural? Qual a razão de ser da produção artística e cultural numa cidade tão carente dessas expressões? Se a resposta estiver no público — e não apenas nos produtores —, abrir o Palácio para manifestações diversas é garantir que ele esteja vivo, pulsante, habitado. O tipo de ocupação deve ser debatido, sim. Mas manter como está parece ser a pior das opções.
Ocupar o Palácio da Cultura é urgente. Mas não com abraços em colunas nem faixas improvisadas na calçada. É preciso ocupá-lo com ideias, com arte, com gente. E se o prédio virou palácio demais e cultura de menos, talvez o erro não esteja nas propostas — mas no silêncio de quem, em nome de preservar, prefere deixar morrer.
Em Campos, a cultura precisa de teto, mas sobretudo de alma, que sempre foi visível por aqui, mas que precisa se reencontrar e abandonar vaidades.
Arquivo Nacional
Havia algo de simbólico — apesar de triste — no fim do campista José do Patrocínio em Inhaúma, bairro da Zona Norte do Rio, próximo a Del Castilho e Pilares. Inhaúma vem do tupi ña'un, que significa “ave preta”. Patrocínio era exatamente isso: uma ave preta que insistiu em voar nos tempos perversos da escravidão. E conseguiu alçar seu voo mais alto pelas mãos de sua amiga, Isabel.
Depois da abolição, Patrocínio ainda queria voar. Mesmo com dificuldades financeiras, e longe dos jornais e do poder, resolveu construir, no final do século 19, o “Santa Cruz”: um dirigível de 45 metros. Isso depois de importar o primeiro automóvel a vapor ao Brasil. O Santa Cruz não saiu do chão, mas o projeto mostra claramente o caráter visionário do abolicionista, escritor, jornalista e farmacêutico: um homem que jamais se resignou ao chão.
José do Patrocínio nasceu em 1853, numa fazenda em Lagoa de Cima, no distrito de Ibitioca, em Campos dos Goytacazes. A maneira que ele foi gerado reflete a formação do Brasil, e também a história de Campos, como recebedora de um grande número de escravizados: Patrocínio é filho de um padre branco e uma escravizada negra (a sua história é mesmo afeita à simbolismos). Sua mãe, Justina do Espírito Santo, era uma jovem escrava mina (etnia de Gana) de quinze anos. O pai, João Carlos Monteiro, era vigário da paróquia de Campos dos Goytacazes, e um orador conceituado no âmbito sacro.
Mesmo nascendo livre — embora não tivesse a paternidade reconhecida pelo padre —, Patrocínio viveu sua infância presenciando todo tipo de abuso contra o povo negro escravizado na fazenda do pai. Talvez tenha sido essa realidade paradoxal que levou Patrocínio a carregar por toda vida um forte senso de justiça social.
Patrocínio e o escritor Olavo Bilac
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Arquivo
Formado em Farmácia em 1874, Patrocínio nunca exerceu a profissão. Sua verdadeira vocação se manifestava nas palavras — primeiro em Os Ferrões (1875), depois na Gazeta de Notícias, onde iniciou, em 1879, a campanha abolicionista de forma mais ferrenha. Em 1881, já à frente da Gazeta da Tarde, fundou a Confederação Abolicionista, ao lado de Joaquim Nabuco e André Rebouças, defendendo a abolição ampla, imediata e sem indenização.
A palavra e a espada de José
O romancista e político inglês Edward Bulwer-Lytton, contemporâneo de século de Patrocínio, escreveu uma peça histórica: “Cardinal Richelieu”. No enredo, Richelieu, ministro-chefe do rei Luís XIII, descobre um plano para matá-lo, mas como padre ele é incapaz de pegar em armas contra seus inimigos. Seu pajem (uma espécie de ajudante de ordens medieval), François, aponta:
— Mas agora, ao seu comando estão outras armas, meu bom Senhor!
Richelieu concorda:
— A caneta é mais poderosa que a espada. Tire a espada; os Estados podem ser salvos sem ele!
Teria sido a primeira vez que o famoso ditado “A caneta é mais poderosa que a espada” foi escrito. A luta de Patrocínio era travada nas trincheiras da intelectualidade, da literatura e do jornalismo — mas por vezes escolheu a espada no lugar da pena: viajou ao Nordeste, ajudou na fuga de escravizados e organizou comícios que inflamavam massas — algo que seus cronistas lembram como oratória inflamada.
Criou (embora há divergências entre historiadores sobre a autoria de Patrocínio) ainda a Guarda Negra, composta por negros libertos fiéis ao império, para protegê-la — uma instituição incomum, vista por uns como milícia, por outros como irmandade.
As contradições, a República e Isabel, a redentora
Princesa Isabel
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Arquivo Nacional
A Guarda Negra representou a maior contradição de Patrocínio. Uma república parecia ser o modelo que o Brasil precisava, traria desenvolvimento, democracia e independência dos colonizadores. Derrubar o Império, porém, era impossível para José do Patrocínio.
A abolição — de direito, mais que de fato — aconteceu, realmente, pelas mãos do Império, em 13 de maio de 1888, pela “redentora” princesa Isabel. E em um gesto (mais uma vez) simbólico, Patrocínio beijou as mãos de Isabel após a assinatura da Lei Áurea.
Patrocínio era um homem de dois mundos naquele momento. Embora um defensor — talvez o maior deles — da abolição, não queria ver o Império expulso do Brasil aos pontapés. Não pelo rei, a quem tinha desprezo, mas pela gratidão e admiração que tinha por Isabel. A lei que ela assinou, no prédio do Senado, no centro do Rio, decretava que, a partir de sua publicação, nenhuma pessoa preta poderia permanecer escravizada no Brasil. Os homens e mulheres acorrentados seriam libertos.
Patrocínio sabia que o simples ato de Isabel não resolveria a exclusão e a violência, mas ficou extasiado vendo a princesa encarando os senadores — que eram todos homens — e usando seu poder para abolir aquele sistema perverso. Isabel era uma mulher de pele rosada, estatura baixa, com olhos azuis profundos e determinados, que lhe conferiam um ar de mandona; como de fato era.
No dia da assinatura, o Senado estava cheio e o movimento abolicionista movimentava todos no Rio de Janeiro. O “campo da cidade”, que mais tarde seria conhecido como “campo de Santana”, ficou repleto de curiosos. Os Senadores se acomodaram no interior do Palácio Conde dos Arcos — o prédio de quatro pavimentos formava uma ponta de flecha na perspectiva de quem entrava nele, onde Patrocínio entrou, minutos depois de Isabel, mesmo não sendo ele alguém que poderia entrar ali em dia de sessão. Mas foi convidado pessoalmente pela princesa, em reconhecimento ao fato de que poucas pessoas no país mereciam mais do que ele ver aquela lei ser assinada.
A sala da sessão seguia o padrão inglês de parlamento. Galerias circundavam uma espécie de arena, onde no centro ficavam duas mesas dispostas frente a frente; uma ao pé do grupo governista e outra do oposicionista, como se delimitasse e representasse cada grupo de senadores. Exatamente como uma arena, ou um estádio. As discussões daquele dia eram resultado de movimentos anteriores, e seria ali apenas uma formalidade para concluir o que já estava acordado. Abertos os trabalhos, Isabel pediu seu direito; queria usar de imediato a Fala do Trono e abolir a escravidão no Brasil (esse é um trecho do livro “As Asas de Um Dirigível”, com lançamento previsto para 2026).
O exílio e o fim
Por sua devoção à Isabel e à defesa do Império, Patrocínio entrou em rota de colisão com os republicanos, com luta armada, pela Guarda Negra e no apoio em outras revoltas que aconteciam no país. Mas, como se sabe, o Império foi derrubado e os republicanos estariam no poder do Brasil em pouco tempo depois da assinatura da abolição. E Patrocínio foi exilado no Amazonas.
Patrocínio consegue voltar alguns anos depois ao solo carioca, mas não deixou de ser persona non grata. Não conseguiu retomar o prestígio do Cidade do Rio — jornal que havia fundado em 1887 —, e politicamente manteve-se exilado.
José do Patrocínio coloca um ponto final em sua história em 29 de janeiro de 1905, em meio a uma crônica que escrevia sobre os direitos dos animais, sendo vítima de tuberculose. Seu funeral atraiu milhares de pessoas. A ave preta, moradora de Inhaúma, nascida em Lagoa de Cima, sucumbiu. O vento, antes cúmplice, não segurou seu mais seu voo. A pena de Patrocínio, leve demais para o chão, pesada, demais para o tempo, dançou sozinha no fim.
Bibi
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Arquivo Nacional
A história de amor e familiar de José do Patrocínio é deveras interessante, mas seus detalhes ficarão para outro artigo. Em resumo, teve cinco filhos com Maria Henriqueta Sena (Dona Bibi): dois faleceram ainda na infância, e Tinon (que desapareceu), Maceu e Zeca, este também jornalista como o pai.
Se o leitor aceitar um último simbolismo, Bibi era branca, e o casamento enfrentou resistência, especialmente do pai dela, o capitão Emiliano Rosa Sena, que mais tarde acabou cedendo aos encantos do genro o ajudou a comprar um jornal.
Patrocínio encarna o que há de mais rico em nossa memória comunitária, no Brasil, e especialmente campista, onde ele nasceu. Um homem que uniu emoção e ação, passado e futuro, com a coragem de sonhar alto — literalmente — ao construir seu próprio balão, o dirigível Santa Cruz.
Nem todo voo precisa de céu. Alguns precisam apenas de coragem.
Uma bela e comprida mesa de madeira já estava quase completa quando cheguei, por volta de 19h30, na casa do arquiteto e empresário Edvar Júnior. Era uma terça-feira, primeiro dia de abril, e logo percebi que não seria mentira que a ideia do encontro seria atendida — havia um debate intenso já acontecendo e estavam presentes gente de várias vertentes da cultura campista.
A ideia de promover um encontro plural não seria possível sem que houvesse representantes da “rua” à mesa. A arte urbana, os terreiros, o jongo, a mana-chica e o carnaval precisavam de representantes no fórum que estava se formando ali. E estavam, e tiveram voz, assim como todos os outros presentes. Os temas da defesa do patrimônio histórico, orçamento público, ausência de secretaria de cultura, os editais da leis de fomento (e suas tentativas de serem aplicados em Campos), a Bienal e o FDP! estavam por lá também, como sempre estiveram e, sempre, trazendo angústias.
Um fórum precisa ser plural e aberto (pelo menos, o mais aberto possível) e deve, para cumprir seu intento, ser despudorado na composição dos foristas e dos temas. Explico: não se faz um fórum propositivo e com possibilidades de gerar algum tipo de ação do poder público e da própria classe cultural se houver censura sobre falas e proposições e, pior ainda, quando se quer censurar previamente um tema.
Na mesa da casa de Edvar — cenário, palco e plateia do primeiro encontro do Fórum — não tinha censura no cardápio e, mesmo tendo vinho e cerveja à vontade, não foi visto nenhuma exaltação, além das habituais de quem vive e é apaixonado pela cultura campistas; e verdades não se furtaram a serem ditas.
Entre as verdades, falou-se da falta de uma secretaria de cultura em Campos (o papel é exercido por uma Fundação, a FCJOL) e da incapacidade orçamentária e de pessoal para fazer acontecer, como se deve, todas as ações da “pasta”. Embora vista como secundária e “coisa de artista”, a cultura é geradora de receitas e de empregos como poucos outros setores — quando bem administrada e com condições para tal. Aliada ao turismo, a cultura movimenta economias em cidades grandes e importantes no mundo inteiro, assim como patrimônios históricos preservados levam milhões de pessoas para continentes distantes. Em Campos não seria diferente, mas é, na prática, por diversos fatores.
Reproduçao
O encontro foi promovido por Edvar Júnior, pelo produtor cultural Wellington Cordeiro e pelo jornalista Matheus Berriel. Dividiram entre eles as responsabilidades dos convites aos foristas e da organização do espetáculo. Com alto prestígio na classe, os três não tiveram dificuldades em preencher todos os assentos. E deles também veio a promessa de independência do fórum que, não fosse a conhecida postura dos anfitriões, seria difícil de acreditar: haveria gente do governo à mesa, da FCJOL e o próprio Edvar Júnior está como subsecretário de Turismo.
Ser independente não é apenas uma questão de postura. É preciso de condições materiais mínimas para exercê-la e muitas vezes a necessária resistência para as inevitáveis desavenças advindas da independência. E é preciso olhar para o próprio umbigo para ser independente, não por ego ou por interesse, mas para tratar das próprias ambiguidades. No fórum estavam gente da literatura, do patrimônio histórico, da música, do cinema, da fotografia, da educação, da produção e gestão cultural, da imprensa e da iniciativa privada; e nenhum deles se furtou a agir assim.
Edmundo Siqueira
Como anfitrião e exercendo um cargo de comando na prefeitura, Edvar não precisou de esforço para reforçar sua independência, pois ela já era conhecida de todos ali. Como um agregador nato, alguém com capacidade para juntar gente muito diferente em um propósito comum, Edvar chamou para a foto, ao final do encontro, e todos foram posar com um sorriso no rosto.
Todos estavam ali unidos pela cultura. Ele, o caldo cultural campista, era o elemento que dava corpo e sabor ao fórum. Esse caldo já foi reduzido muitas vezes por todos presentes e invariavelmente havia ficado azedo, por falta de apoio governamental, por burocracia, por vaidade, por falta do conhecimento do campista de sua terra ou por insensibilidade do empresariado. Mas, pelo menos pareceu, que todos saíram com esperança, novamente, e com a insistência ingênua de alma de artista.
Mesmo sendo 1º de abril, não faltou verdade no primeiro encontro do fórum. Resta saber se elas chegarão a ser ouvidas nos ouvidos insensíveis.
Quando alguém do poder executivo é reeleito, é comum haver mudanças no secretariado. Mudar a equipe é fundamental para oxigenar as pastas e incentivar novas políticas públicas. Mas é preciso que as movimentações de pessoas estejam acompanhadas da definição de novas prioridades, ou ao menos reforçar antigas que ainda não foram cumpridas.
No caso da cultura campista, há diversas questões em jogo que não serão oxigenadas com uma simples mudança de comando. Campos não tem uma “secretaria de cultura”, uma Fundação assume o seu papel: a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL). Há prós e contras da institucionalidade cultural ser exercida por uma Fundação, mas certamente isso não está entre os problemas principais da cultura campista.
A primeira questão é orçamentária. Dos recursos próprios do município, pouco é destinado à FCJOL. Este ano estão previstos míseros R$ 11 mil ao Fundo Municipal de Cultura. Os recursos mais volumosos estão nas leis federais de incentivo, como Aldir Blanc e Paulo Gustavo, porém a gestão desses recursos — desde a definição inicial de valores — depende de uma ação municipal efetiva, que passa por planejamento, base de dados de empresas e agentes culturais, criação de projetos e definição de políticas públicas da área.
O que o município vem mostrando é que a estrutura da FCJOL não permite que essas ações sejam feitas como se deve. Há atrasos nos editais, dificuldade no repasse, falhas de comunicação e insatisfação no setor cultural da cidade. O que deveria ser parte da solução e uma excelente forma de desenvolver toda cadeia produtiva, passa a ser um transtorno.
A segunda questão passa pelo desenho institucional da Fundação. A FCJOL acaba por ser um guarda-chuva de várias áreas afins que não dialogam, não apresentam resultados e não recebem os recursos que deveriam. Caberia à Fundação agir no planejamento e execução de políticas públicas para a área cultural, passando pela captação de recursos. Seria esse seu campo de atuação fundamental. Porém, está entre suas atribuições boa parte dos eventos municipais, inclusive o carnaval e shows do verão. Embora seja um campo importante de atuação, a falta de estrutura da FCJOL não permite que ela o abrace. A recém criada secretaria de Turismo poderia assumir a parte de eventos, ou mesmo outras secretarias em conjunto.
Por outro lado, Campos poderia perfeitamente estar no cenário nacional de teatro, cinema e arte. Há infraestrutura para isso. Além de vasta rede hoteleira e de restaurantes. Peças teatrais, exposições de arte, festivais de cinema e de literatura, dança e tantas outras manifestações artísticas poderiam ter em Campos uma referência e a cidade ser uma das rotas de agenda dos espetáculos.
A terceira questão está relacionada ao patrimônio histórico. Há no município imóveis com tombamento federal e estadual, protegidos, portanto, que podem servir de atrativo, gerar receitas e abrigar instituições. Citando apenas três deles — Solar dos Airizes, Solar da Baronesa e Solar do Colégio — é possível demonstrar o quanto de potencial se perdeu até aqui.
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Os solares dos Airizes e do Colégio passam por intervenções importantes, ambas conseguidas pelo esforço do município, é preciso fazer justiça aqui. Caso essas ações sejam levadas adiante, será um passo importante para criar em Campos alternativas no campo da educação patrimonial, cultural e turística. Porém ainda muito incipiente.
Mas, outras construções chamam a atenção pelo abandono. O Palácio da Cultura e o Museu Olavo Cardoso poderiam ser referências da área central e abrigar diversas iniciativas culturais. Porém, há anos estão fechados. O Olavo Cardoso com sério risco de ruína e o Palácio como um símbolo gritante de desperdício em pleno coração da área comercial mais valorizada da cidade.
No Centro, o Museu Histórico cumpre um papel importante em meio a tanta descaracterização, e realiza eventos de sucesso de público e crítica. Mas carece de integração e valorização.
Prioridades e políticas públicas
As características e complexidades da área cultural em uma cidade histórica como Campos exige políticas públicas de “estado”, não de governo. O Plano Municipal de Cultura e o Conselho de Cultura são instrumentos importantes que a cidade já possui, além de ter um órgão de tombamento, o Coppam.
É preciso definir prioridades e que os setores dialoguem. Falta muito por parte do município, mas falta bastante do setor também. É preciso abandonar vaidades e colocar os projetos e instituições acima das individualidades.
Viver em um eterno museu de novidades pode ser poético, mas não gera resultado.
Talvez o atraso nas obras do Arquivo Público Municipal de Campos não seja culpa da Uenf. Aliás, devemos penalizar, quando há dolo, as pessoas à frente das instituições; e não a institucionalidade. Mas toda essa história tragicômica talvez mostre a cara de alguns outros vilões.
Mas antes de apresentá-los, é preciso fazer algumas ponderações históricas.
O Arquivo de Campos nasceu de uma iniciativa legislativa, em maio de 2001, proposta pelo então vereador Edson Batista. Na ocasião, a Uenf havia começado a preparar um solar do século XVII, em Tocos, para abrigar sua escola de cinema. A ideia não deu certo — havia uma dificuldade de preenchimento de vagas dos docentes e uma cultura de produção e comercialização cinematográfica teria que ter certa aceitação na região. Com a descontinuidade, esse prédio, o Solar do Colégio, ficaria novamente abandonado, apesar de sua importância. E para aproveitá-lo, o Arquivo nasceu ali, como Campos, na Baixada.
Como o nome sugere, se tratava de um solar jesuítico. Foi construído para impor religião e a “domesticação” indígena, essencialmente. Após a expulsão da Companhia de Jesus dessas terras, em 1759, a edificação é vendida a Joaquim Vicente dos Reis por 187 contos 953 mil réis. Depois, Sebastião Gomes Barroso, genro de Joaquim, cria ali um grande engenho de açúcar.
O Solar do Colégio e o Solar dos Airizes (às margens da BR-356) são representantes fiéis de como Campos e a região se constituíram: enormes fazendas, plantações de cana-de-açúcar e escravidão. As fazendas eram centros de serviços públicos, havia hospitais e maternidades, escolas e amontoados de casebres que formavam pequenas comunidades.
O centro urbano de Campos crescia sustentado pela plantation, e queria a todo custo ser o Rio de Janeiro, ou qualquer cidade europeia. Cafés, livrarias, hotéis e teatros eram frequentados por motivo de status, não de cultura. Os preços das commodities eram definidos nos cafés e os teatros apresentavam musicais enlatados vindo do Rio.
Pois bem, Campos acabou se tornando uma cidade de costas para sua história, querendo ser o que não era e consumindo cultura alheia. Havia alguns elementos culturais orgânicos, que vinham principalmente da baixada. Até de costas para o rio Paraíba Campos está.
Parte significativa dessa história está no Arquivo Público. Jornais, documentos de tribunais, cartas testamento, registros de nascimento e morte, comprovações dos movimentos revolucionários contra a Coroa Portuguesa, cartas de fundação das primeiras Câmaras, e toda sorte de atrocidades registradas em comercialização de seres humanos advindos da diáspora africana.
Citei o Airizes acima por ele também ser um estorvo para a maioria dos campistas — algo a ser demolido para dar espaço a algum condomínio.
Há pouco mais de entrei no Solar e vi no fundo de um cômodo algumas dezenas de sacos de lixo. Eles encobriram milhares de fotos, documentos, obras de arte, mapas, livros e correspondências pessoais dos antigos moradores. Certamente, muito a ser contado dali, caso o destino não fosse a fogueira.
Além desse acervo recente, o que havia de valioso (valor histórico, cultural e financeiro) foi vendido para um museu em Niterói e para a USP. O geógrafo e escritor Alberto Lamego, proprietário do Solar dos Airizes e garimpeiro desse acervo, era visto com desconfiança pelos campistas, que achavam que era tudo falso e sem valor, mas o Solar era constantemente visitado por gente como Oswald de Andrade.
A Uenf recebeu R$ 20 milhões há quase três anos para restaurar o prédio e fazer a digitalização do acervo. Além de oferecer as mínimas condições de funcionamento e visitação de ambos. Por diversas desculpas, uma parte minúscula do dinheiro foi aplicado, e o Solar continua sob risco, assim como o acervo que guarda.
A Uenf não tem expertise para tocar uma obra dessa complexidade, e não faz parte de sua atividade fim fazer intervenções em patrimônios históricos. E ao que parece, a aceitação da missão aconteceu sem ouvir a universidade e seu Conselho. Mas o fato é que aceitou. E também é fato que a lei que rege o Fundo Especial da Assembleia Legislativa, de onde veio o recurso, exigia à época que fosse destinado a alguma instituição estadual ou federal.
Mas, ficam algumas perguntas.
Deveria a Uenf ter aceitado? Sim. O Solar do Colégio tem uma relação próxima e bela com a universidade, e tratar documentos históricos, possibilitando que eles sejam fonte de pesquisa, é algo que a Uenf deve zelar, além de ser uma universidade que nasceu para cooperar com a comunidade que está inserida.
Precisava de tanta burocracia? Sim. Trata-se de dinheiro público e de um patrimônio histórico de alta relevância. Além de abrigar um acervo inestimável. É preciso dar transparência, lisura e abertura ao processo. E contratar empresas de alto gabarito. E existem leis que regem com muita rigidez algo assim.
Demora tanto assim? Não. Há um leque enorme de excelentes empresas no Brasil que aceitariam essa obra, que participariam das licitações e entregariam algo sensacional em bem menos tempo. É possível licitar obra e projeto juntos, desde que cumpra-se alguns requisitos.
Devemos culpar a Uenf? Não. A universidade, enquanto sua institucionalidade, está prestando um serviço e precisa direcionar esforços de uma estrutura apertada e sem experiência em obras. Porém, gestores podem ser culpabilizados. Prioridades foram definidas e o Arquivo e Solar não estavam nelas. Se algo acontecer nesse período de chuvas, podem e devem responder pela letargia e omissão na aplicação de recursos públicos.
O Arquivo poderia estar no centro de Campos? Claro. Seria o ideal. Um Palácio da Cultura climatizado, acessível, com funcionários concursados tratando documentos antigos e catalogando os atuais, e com agendamento frequente das escolas. Mas além de ser utópico na realidade atual, perderíamos um local único, carregado de história, exalando educação patrimonial. Desistiríamos de particularidades excepcionais para aceitar algo ordinário, comum. Isso se o comum fosse existir, de fato.
Os vilões possíveis
E então chegamos aos vilões. O mundo real dificilmente é explicável pela dicotomia herói-vilão. Há uma zona cinzenta entre essas personas que é onde a maioria está. Talvez todos estejamos, instituições e pessoas.
Mas o descaso com o Solar do Colégio, dos Airizes e com o Arquivo é a metástase de um patologia que Campos arrasta através dos séculos. A culpa, caso seja possível definir, é de uma sociedade que quebrou os espelhos, que vive olhando para as sombras na parede da caverna.
Mas se há um verdadeiro vilão possível, está entre os que olham para a história, a entende, compreende sua riqueza, percebe a existência de um elemento extraordinário, que alia patrimônio e pesquisa, algo de potencial inexaurível, e diz que é melhor abandonar. “Deixa cair”; “não gosto de fulano e fulana, melhor que aquilo acabe”; “aqui é assim mesmo”.