Ensaio sobre a sobrevivência do patrimônio histórico
19/05/2025 | 08h08
Reprodução.
Manter um patrimônio histórico de pé — seja ele material ou imaterial — é uma obrigação? Responder afirmativamente pode ser a primeira reação do leitor, principalmente daquele que tem algum tipo de ligação com a cultura, em suas mais diversas formas. Mas será essa a resposta da maioria das pessoas?

Tomemos o caso de Campos dos Goytacazes como exemplo. Indubitavelmente é uma cidade histórica: participante ativa da economia do Brasil quando ainda era colônia de Portugal, berço de personagens relevantes e um dos primeiros lugares do país a contar com energia elétrica, imprensa, livraria e transporte ferroviário. Não faltam elementos, ainda presentes na cidade, não apenas para comprovar toda essa história, mas também compondo a paisagem diária das pessoas. No campo imaterial, o conhecimento acumulado por séculos — produzido na miscigenação entre indígenas, escravizados e portugueses — reflete-se em doces, danças, religiosidade, linguagem e comportamento. Portanto, era de se esperar que existisse, entre os campistas, um sentimento de pertencimento ou, sendo ainda mais otimista, um sentimento de orgulho pela história da cidade.

Mas não é o que se percebe. Não há envolvimento da população com os patrimônios — salvo em grupos sociais específicos —, tampouco se vê problematização sobre seus usos e origens, que em geral fazem parte de uma história de exploração de pessoas escravizadas. Um canal artificial urbano histórico, o segundo maior do planeta, corta o centro da cidade e o seu bairro mais valorizado, mas passa despercebido pela maioria. Chamado de valão, o canal Campos–Macaé nada mais representa para a população do que um depositário de esgoto e um obstáculo físico à travessia da avenida. Fechá-lo, ao que tudo indica, não causaria grande comoção popular; pelo contrário.

Mas por que isso acontece? Antes de culpar a apatia da população ou o desconhecimento sobre a existência e o significado dos patrimônios, é preciso compreender os processos que levaram ao descaso — não apenas da população, mas também de pessoas com poder de mando, investidas em cargos públicos, sejam legislativos ou executivos, que pouco fizeram para proteger os bens históricos. Revelam, assim, o mesmo desconhecimento e a mesma apatia.

Proteger para quê?

A proteção pela proteção não se mostra eficaz. Proteger para quê? Restaurar com dinheiro público sob qual justificativa? Com qual finalidade de uso? Atingindo quantas pessoas? Com que tipo de acessibilidade e de democratização do espaço? Caso essas perguntas não sejam respondidas, manter de pé um patrimônio torna-se uma imposição de uma elite intelectual ou cultural que, muitas vezes, tampouco tem respostas para tais indagações.

Saindo um pouco de Campos, temos um exemplo exitoso de uso de patrimônios históricos na capital, Rio de Janeiro: Theatro Municipal, Igreja da Candelária, Arcos da Lapa, Forte de Copacabana, Cais do Valongo, Real Gabinete Português de Leitura — todos são utilizados e valorizados pela população carioca e por um intenso fluxo turístico. Embora tenham realidades distintas, tanto Campos quanto o Rio precisam lidar com os espólios de sua própria história, e decidir se agem ou se omitem.
Theatro Municipal - centro do Rio de Janeiro
Theatro Municipal - centro do Rio de Janeiro / Prefeitura do Rio de Janeiro (RioTur)


De volta à realidade campista, observamos que patrimônios significativos pertencem a pessoas físicas, associações religiosas ou classistas e outros tipos de representação da iniciativa privada. Não há óbice à restauração de patrimônios por particulares, mesmo que falem à coletividade. Pelo contrário: é obrigação legal dos proprietários zelar pelo bem. Mas a realidade mostra que, além de dispendiosa, a preservação exige planejamento e ações de longo prazo, com conhecimentos técnicos específicos. A exploração econômica de um patrimônio histórico é possível e desejável em alguns casos, mas depende de investimentos e está sujeita a regras que muitas vezes inviabilizam o projeto — o que leva a iniciativa privada a não assumir tais riscos.

Cabe a quem proteger?

Partindo-se do princípio de que um patrimônio histórico deve ser preservado por seu valor cultural, memorialístico, artístico ou educativo — mesmo que não haja clamor popular por sua manutenção —, caberia ao poder público promover seu restauro e conservação. Ora, se um bem material merece, pelos motivos citados, perpetuar-se no tempo para que a coletividade possa desfrutá-lo, nada mais justo que seja ela própria a arcar com os custos.

O canal Campos–Macaé já citado pode cumprir funções como recurso hídrico, auxiliar na saúde pública, servir de modal de transporte e outras funções que uma obra de tais características possa abarcar. Isso é algo que se torna palpável à população e, portanto, justifica ações públicas. Mas tomemos o exemplo de um solar do século XIX, localizado às margens de uma rodovia federal, distante do centro de Campos e pertencente a particulares (família Lamego). Conhecido como Solar dos Airizes, o local foi moradia do geógrafo, escritor e pesquisador Alberto Lamego e abrigou uma vasta biblioteca e pinacoteca, que atraíram visitas ilustres.
Inicío das obras de sobrecobertura no Solar dos Airizes
Inicío das obras de sobrecobertura no Solar dos Airizes / Prefeitura de Campos dos Goytacazes


Hoje, o solar encontra-se em estado lastimável, deteriorado pelo tempo e pelo abandono. Possuindo tombamento federal, os herdeiros foram impedidos de vendê-lo ou demolí-lo, e compelidos a preservá-lo. Na prática, o solar foi completamente abandonado. Algumas ações pontuais tentaram adiar sua ruína, e uma ação judicial foi promovida pelo Ministério Público — a quem compete constitucionalmente a defesa do patrimônio histórico, como bem difuso. A Justiça entendeu que a família não tinha condições de manter o imóvel e condenou a Prefeitura de Campos a restaurá-lo integralmente e lhe conferir uso.

O valor do Solar dos Airizes é inquestionável — não apenas por sua arquitetura e por representar parte da história da região, mas também pela imaterialidade cultural e artística que abrigou. É, também, um bem educativo: erguido com mão de obra escravizada, revela, em sua forma e distribuição espacial, como a sociedade campista e brasileira convivia com a escravidão — e dela se beneficiava economicamente. Mas esse valor é comunicado à população? Os elementos que o tornam único dialogam com a maioria das pessoas?

A resposta a essas perguntas está diretamente ligada à ação ou omissão do poder público. Embora “agradar ao público” não seja a finalidade dos poderes constituídos, é necessário que o valor de um bem protegido seja reconhecido pela população — ou, ao menos, por parcela significativa dela. Quando permanece restrito aos nichos acadêmicos e culturais, um patrimônio perde sua razão de existir, pois perde a capacidade de exercer um papel educativo e transformador coletivo.

Não se trata, porém, de medir a importância histórica de um patrimônio por sua popularidade, mas é necessário que ele tenha significado — e, ainda mais importante: uso. O Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, tem significado e uso, e dialoga com uma parte significativa da cidade. Embora ainda elitizado, caso entrasse em processo de abandono, não passaria despercebido — nem pela população, nem pelo poder público, tampouco pela iniciativa privada, que veria ali uma oportunidade de investimento. O mesmo não se aplica ao Solar dos Airizes. Estaria a diferença na relevância histórica dos imóveis ou no uso que possuem?

Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Como proteger?

A proteção ao patrimônio histórico não é apenas material. Os instrumentos legais hoje existentes, como o tombamento, não garantem sua preservação. A forma mais eficiente de garantir a sobrevivência de um patrimônio — em Campos, no Rio, no Brasil e no mundo — é conferindo-lhe uso.

Usar um patrimônio não significa necessariamente lucrar com ele. Um museu não precisa dar lucro, pois serve como abrigo de itens, documentos e informações que a coletividade reconhece como importantes. No entanto, um museu pode e deve servir de espaço para exposições e eventos com retorno financeiro, atuando com cultura e arte.

A palavra-chave para a sobrevivência de um patrimônio é parceria, seja ela público-privada ou não. No exemplo do Solar dos Airizes, não se pode imaginar sua sobrevivência sustentável sem que um uso lhe seja conferido. Esse uso pode envolver a iniciativa privada, valendo-se da obrigação do poder público em restaurar o bem e oferecendo, em contrapartida, empregos, desenvolvimento econômico e turístico, e colaboração na manutenção do imóvel.

É possível, assim, percorrer um caminho inverso da preservação: salvar primeiro, dar sentido depois. A partir do momento em que um uso planejado e coerente com as especificidades do bem é colocado em prática e comunicado à população, as vivências ali geradas criam memórias coletivas e senso de pertencimento.

Salvar um patrimônio é, antes de tudo, uma escolha política e cultural. Escolhe-se preservar não apenas uma edificação, mas a memória que ela carrega e os significados que pode produzir. Em vez de esperar que o sentimento de pertencimento brote espontaneamente da população, talvez devêssemos construí-lo a partir do uso, do acesso, da partilha e da vivência. Um patrimônio vivo não é o que apenas permanece em pé, mas o que se faz presente na vida das pessoas. O Solar dos Airizes, como exemplo ilustrativo, ainda pode cumprir esse papel — se houver coragem para restaurá-lo e inteligência para devolvê-lo à cidade.
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Universidades em Campos: faróis para uma cidade míope
26/04/2025 | 05h53

Farol de São Tomé, Campos, 1930.
Farol de São Tomé, Campos, 1930. / Arquivo

Quando Nilo Peçanha assumiu a Presidência da República sabia que seria um mandato curto. Ocupava o cargo de vice e, quando o presidente Afonso Pena faleceu, em decorrência de uma pneumonia, já se especulava fortemente pela sucessão. Eram tempos conturbados aqueles do início do século, e Nilo foi destinado ao cargo em junho de 1909, ficando até novembro de 1910.

Era preciso deixar uma marca, e Nilo escolheu a educação e a inclusão. Em um país que se formava republicano, o primeiro presidente negro do Brasil tratou de criar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) — antecessor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — e retomou o projeto de criação de escolas profissionais que buscaria incluir no mercado formal os excluídos de processos histórico-sociais, recentes naquela época, como o fim da escravidão. O programa federal das Escolas de Aprendizes Artífices tomava corpo e Nilo inaugurou 19 escolas no Brasil, todas instaladas em capitais, com exceção de uma: em Campos dos Goytacazes.

A unidade de Campos foi a nona a ser criada no Brasil, com a implantação de cinco cursos: alfaiataria, marcenaria, tornearia, sapataria e eletricidade. Nilo Peçanha comprava então uma briga pelo seu bairrismo. Natural de Campos, Nilo sofria preconceito por sua origem e pela cor de sua pele. Era chamado nos meios políticos de “mulato do Morro do Coco”, em tom pejorativo. E, talvez por isso, tenha batido o pé e decidido pela ida de uma das escolas para Campos. Dessa decisão nasceram as Escolas Industriais e Técnicas, de ensino médio e secundário, as Escolas Técnicas Federais (ETFC) e nos anos 1990 os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET).
 
Escola de Aprendizes Artífices: legado do curto mandato de Nilo Peçanha
Escola de Aprendizes Artífices: legado do curto mandato de Nilo Peçanha / Arquivo Nacional
Hoje, o que era Cefet se transformou em IFF, Instituto Federal Fluminense, e atualmente conta com 12 campi, reunindo mais de 15 mil estudantes e 1.500 servidores ativos, entre professores e técnicos administrativos.

Campos, Cidade Universitária?

São inegáveis as contribuições econômicas e sociais trazidas por um Instituto dessa magnitude, carregando toda essa história. A decisão de Nilo em trazer o ensino técnico para Campos possibilitou que a cidade se transformasse, e o interior do Rio de Janeiro pudesse ter opções próximas à formação de seus habitantes.

Campos dos Goytacazes se transformou em um polo regional em educação, e pode ser considerada uma cidade universitária quando olhamos para uma fotografia que mostre os números atuais de cursos ofertados, instituições de ensino superior e alunos matriculados. No ensino federal, a Universidade Federal Fluminense (UFF) compõe esse quadro em Campos e também traz contextos históricos e de luta social significativos.

Enquanto instituição, a UFF foi criada em 1960, com sede em Niterói. Para avançar ao interior do Estado, buscando atender um dos pilares primordiais da educação superior pública — descentralizar e democratizar o acesso — instalou em Campos o Departamento de Serviço Social (SSC), dois anos depois. Havia na cidade um movimento orgânico que ansiava por cursos superiores de ensino, não apenas para que os campistas e fluminenses do interior pudessem ter formação, mas para que a academia pudesse contribuir para o crescimento da cidade, com pesquisa e extensão. O curso de Serviço Social se transformou em uma referência na área, formando diversos profissionais.

Embora de importante contribuição, a UFF em Campos não queria ficar apenas no Serviço Social, e debates internos aconteciam para achar um caminho para expansão, tanto de cursos como do campus. Em 2003, começaram a surgir caminhos para a isso, e em 2007, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), isso parecia se tornar realidade.. A pesquisadora Raquel Isidoro, graduada pela UFF Campos e doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional na UFRJ, publicou um artigo recente na edição brasileira da francesa “Le Monde Diplomatique”, onde trouxe um relato de sua experiência com o Reuni e com a UFF Campos.

“No âmbito da UFF em Campos dos Goytacazes, estava prevista a construção de um novo prédio para salas de aula e a criação do Campus II, que abrigaria os cursos recém-criados de Geografia, Ciências Econômicas e Ciências Sociais (...) No entanto, o cronograma das obras de infraestrutura previsto para receber os novos cursos não foi cumprido, o que gerou desafios significativos à comunidade acadêmica. Diante dos atrasos, movimentos estudantis e coletivos passaram a pressionar pela efetivação das estruturas prometidas. Nesse cenário, a equipe diretiva do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG) precisou, inicialmente, recorrer a instituições privadas e escolas municipais para viabilizar o funcionamento das turmas e organizar os espaços da secretaria e do apoio docente. Em 2010, com o agravamento da situação, foi firmado um acordo entre o MEC e a Reitoria da UFF para o aluguel de módulos metálicos — os contêineres — como solução provisória”, disse Isidoro.

Do Reuni em 2003 e dos contêineres de 2010, o sonho cultivado por alunos e docentes se transformou em realidade numa segunda-feira, 14 de abril de 2025. Com a presença do presidente da República — assim como Nilo em 1906 —, Campos recebeu um grande e novo campus da UFF, com instalações que somaram R$ 74,4 milhões, segundo o governo federal. Composto por dois blocos, com sete andares cada um, estão prontas para uso 36 salas de aula, 28 gabinetes de professores, 11 laboratórios, uma biblioteca, um auditório, diretórios acadêmicos e administração. Os prédios têm, ainda, elevadores e escadas de incêndio (Folha1).


Reprodução/UFF Campos


Os novos prédios da UFF foram concluídos, como toda grande obra, através de esforço coletivo, e por consequência de um encadeamento de ações históricas. Políticas públicas bem construídas dependem de articulação e disponibilidade de verba, mas para que sejam viabilizadas é preciso que a sociedade civil seja mobilizada e que avanços reais sejam demonstrados com a aplicação dela. Desde as articulações pelo Serviço Social em Campos, passando pelos “filhos do Reuni”, o campus erguido em um terreno cedido pela antiga rede ferroviária foi retomado por articulação de vários deputados federais, emendas de bancada e esforços suprapartidários.

Ianani Dias
Ianani Dias / Reprodução
“Eu entrei na UFF Campos em 2010, justamente no ano em que nos foi apresentado o projeto do novo prédio, com a promessa de que a inauguração aconteceria em 2013. Como se sabe, isso não aconteceu e, para que a universidade se adaptasse à nova realidade, estudamos em contêineres alugados, pois a estrutura era insuficiente para atender aos novos cursos e ao número crescente de estudantes vindos de Campos e de outras cidades”, disse a pesquisadora Ianani Dias, mestranda na UFF Campos do programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas. “Mas não se tratava apenas de conquistar uma estrutura física; a disputa era por uma nova concepção de universidade. O Reuni, assim como o Enem e o sistema de cotas, transformou profundamente as instituições públicas de ensino. De repente, aquelas universidades passaram a ter uma nova demanda social, acolhendo uma juventude diversa: estudantes da periferia, dos interiores e das zonas rurais — muitos, como eu, os primeiros da família a ingressar em uma universidade pública”, continuou.


Ianani e Raquel são exemplos de discentes que não ficaram apenas nas queixas e viram na oportunidade de um programa federal, o Reuni, a chance de poder expandir os muros da universidade, física e socialmente. “Não à toa, nós nos chamávamos de “filhos do Reuni”, pois éramos uma geração que acreditava intensamente nesse projeto. E, apesar da precariedade, sabíamos que aquilo que havíamos conquistado não podia retroceder. A defesa da permanência e da ampliação do acesso era fundamental”, acrescentou Ianani, na mesma linha que Raquel: “Reclamar, por si só, não basta. Nunca bastará. É preciso agir. Como fizeram aqueles que vieram antes, os que passaram por este campus e os que ainda virão. Todos nós somos parte dessa história. Alunos, técnicos, professores — somos o próprio projeto de expansão da universidade”.

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”

O escritor russo Leon Tolstói, falecido no mesmo ano que Nilo Peçanha foi presidente, ensinou que “pintar” a própria “aldeia” é uma forma de se tornar universal. Uma universidade tem o dever de cuidar da região que ela está inserida, produzindo conhecimento que contribua para mudar a realidade ao seu redor.

Campos é uma “aldeia grande” e histórica. As suas marcantes contradições produziram uma sociedade capaz de lutar por educação pública de qualidade (lutou e conseguiu também a Uenf, esta estadual, que se tornou uma referência no país) ao mesmo tempo que 47.600 famílias vivem em extrema pobreza (segundo dados do CadÚnico, 2021); ser o local de nascimento do primeiro presidente negro do Brasil e ser um dos últimos locais a abolir a escravidão; assim como presenciar lutas progressistas importantes e ter sediado um dos maiores núcleos integralistas do país.

Mas as contradições são parte do conhecimento acadêmico, e muitas vezes o ponto de partida de pesquisas. A realidade de Campos precisa ser objeto de estudo das academias que precisam dialogar com o contexto que está inserida, portanto centros como a UFF, IFF, Uenf, Universidade Federal Rural e as faculdades particulares não podem se isentar desse debate, pois fazem parte dele.

Ouvindo Ianani na véspera da inauguração dos prédios da UFF, seu relato foi de emoção: “Hoje, o que sinto é difícil de colocar em palavras. É uma mistura de orgulho, emoção, alívio e propósito. Tudo aquilo que sonhamos, lutamos e acreditamos está materializado nesse prédio. Amanhã, não se trata apenas de concreto, mas da memória viva de cada protesto, de cada ocupação, de cada faixa pintada à mão e de cada estudante que passou e foi formado por essa universidade”.

Não se pode tratar apenas de concreto. Campos e a região dependem de suas instituições de ensino para produzirem conhecimento e desenvolvimento, e na mão dupla, as universidades precisam olhar para sua aldeia. Em 1909 ou hoje, a escolha continua posta: ou Campos reconhece seus faróis, ou seguirá tropeçando na própria sombra. O IFF, a UFF e a Uenf estão aí — projetos de futuro que resistem até mesmo à indiferença.

Ainda há tempo. Mas não há farol que brilhe para sempre.
 
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Anistia de ontem, de hoje e os seus méritos
22/02/2025 | 11h33
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979 / Orlando Brito

Em 15 de março de 1979, o Brasil assistia à posse de mais um general como presidente da República. João Baptista Figueiredo — o último dos ditadores do regime militar — teve em suas mãos o dever histórico de redemocratizar o país.

“É meu propósito inabalável fazer deste país uma democracia (...) purificado o processo das influências desfigurantes e comprometedoras de sua representatividade”, disse o general Figueiredo em seu discurso de posse. Disse mais: “reafirmo a mão estendida em conciliação. Para que os brasileiros convivam pacificamente”.

A “mão estendida” de Figueiredo ganhava contornos legais alguns meses depois de sua posse. A Lei da Anistia fora aprovada no Congresso — não sem manifestações contrárias — em apenas três semanas, depois sancionada pelo governo militar. Com base no novo ordenamento, estavam anistiados os chamados “subversivos”: os que se manifestavam contrariamente ao governo e os que haviam pegado em armas contra o regime. A lei permitiu que exilados voltassem ao país e quem estivesse na clandestinidade ou figurasse como réu em tribunais militares pudesse viver livremente.

Mas o dispositivo legal não seria usado apenas para anistiar quem lutou contra a ditadura. Propositadamente obscura, a redação que a legislação trazia permitia que a anistia fosse estendida aos “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, ou “praticados por motivação política”, e ainda aos “crimes conexos”. Essa extensão legal, que de forma generalista tentava avançar sobre os que poderiam receber a anistia, acabava por abrigar os agentes da repressão, que torturaram, mataram e ocultaram cadáveres.
Figueiredo_Assina)Lei_Da_Anistia_OrlandoBrito
Figueiredo_Assina)Lei_Da_Anistia_OrlandoBrito / Orlando Brito


Mesmo assim, a promessa de Figueiredo de redemocratizar o país, trazendo de volta à vida pública os presos e exilados políticos, se cumpriu. Os anos de ditadura militar chegaram ao fim definitivamente alguns anos depois, uma nova constituição foi promulgada em 1988 e eleições civis, diretas e democráticas, voltaram a acontecer. A “autoanistia” que veio a reboque quis atender ao corporativismo que os militares brasileiros sempre apresentaram, e seu gosto pelo poder igualmente contumaz.

Negar ao país a possibilidade de punir os ditadores e torturadores, e de colocar a limpo sua própria história, também permite que o militarismo golpista e ditador permaneça na caserna.

Anistia de ontem e de hoje

Na última terça-feira (18), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi denunciado ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sob acusação de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Bolsonaro e mais 33 pessoas foram acusados pela PGR de praticar os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.

A denúncia da PGR e as investigações até aqui demonstram que os atos de 8 de janeiro foram a parte final de uma trama golpista com objetivo de derrubar um governo eleito democraticamente e subverter a ordem vigente.

O STF condenou 371 pessoas das mais de duas mil investigadas pelos atos. A maioria dos condenados (225) teve suas ações classificadas como graves com penas que variam de três anos a 17 anos de prisão. Segundo o Supremo, entre os condenados ao regime fechado (223 no total), 71 já iniciaram o cumprimento das penas e 30 aguardam o esgotamento das possibilidades de recurso (trânsito em julgado) nas suas ações penais para o início da execução penal.
Gabriela Biló - 18.fev.25/Folhapress

Como estratégia de defesa, Bolsonaro e apoiadores articulam junto ao Congresso para que seja aprovada uma lei que anistie os envolvidos no 8 de janeiro. No mesmo dia da denúncia da PGR, o ex-presidente afirmou que não haveria “dificuldade para colocar em pauta” a anistia. Embora Bolsonaro afirme o contrário, uma anistia aos envolvidos no 8 de janeiro iria beneficiar os agora denunciados ao STF.

Este espaço no Folha1 ouviu Pedro Estevam Serrano, advogado e doutor em direito do Estado, e professor de direito constitucional, sobre a admissibilidade de uma lei de anistia neste momento:

Pedro Serrano
Pedro Serrano / Divulgação/PUC
— Caso aprovada, essa lei de anistia poderia ter fundamento legal, mas o problema não seria exatamente esse. Haveria um desvio de poder, dependendo como for aprovada a anistia. Desvio de poder é uma forma especial de inconstitucionalidade, então daria para questionar a constitucionalidade da lei, caso aprovada.


Serrano confirma que a lei beneficiaria os agora denunciados, disse que sua aprovação “influenciaria no caso dos denunciados pela PGR, eles estariam anistiados, pois ela [a lei de anistia] pegaria todo mundo que cometeu ou participou do crime, então não teria sentido prosseguir o processo contra eles”.

O esquecimento e a necessidade de julgamento

Anistia é esquecimento. Quando se propõe que um processo de anistia aconteça no país, recorre-se ao interesse público e político de apagamento de fatos e crimes ocorridos durante um período histórico. A centralidade da ideia de anistia é absolver os culpados pelos crimes cometidos, conceder perdão e reconhecer que o que foi feito não é mais passível de punição.

E para que aconteça, a anistia deve obrigatoriamente ter a intenção de construir uma nova marcha para o futuro, com o desarme dos espíritos antes revoltosos, buscando uma convivência pacífica que possibilite reconstruir uma civilidade democrática.

A anistia aprovada por Figueiredo em 1979, mesmo tendo colocado sob o mesmo guarda-chuva quem lutou contra a ditadura e quem a praticou, cumpriu o papel de repactuar a convivência democrática. Havia a promessa real de construção coletiva de um novo futuro. No atual momento, algumas perguntas ficam. Existe o mesmo ânimo agora, na atual proposta de anistia? Estaria, quem praticou os atos no 8 de janeiro, disposto a conviver pacificamente com uma pluralidade de ideias e ideologias? Os denunciados por golpe de Estado ficariam sujeitos a uma pactuação onde a democracia não esteja novamente ameaçada?

A questão não reside no conceito de anistia. Há pactuações possíveis de serem feitas que visem construir uma convivência democrática possível. Como sistema imperfeito e de poucas defesas, a democracia deve permitir acordos entre os diferentes e até anistiar crimes contra ela mesma. A questão está no mérito.
 
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Lula III e o beep no caixa do supermercado
10/02/2025 | 12h11
Arte digital gerada por IA
Arte digital gerada por IA / Edmundo Siqueira
Não é nenhuma novidade que a economia interfere na política. Seria uma estupidez acreditar o contrário. Porém, comunicar as interferências econômicas é tão necessário quanto conter a alta dos preços.

Na última quinta-feira (6), o presidente Lula disse em uma entrevista a rádios da Bahia que os brasileiros precisam de um “processo educacional” para aprender a “ter consciência” e não comprar os produtos mais caros.

— Uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo. Se você vai no supermercado e você desconfia que tal produto está caro, você não compra. Se todo mundo tiver a consciência e não comprar aquilo que acha que está caro, quem está vendendo vai ter que baixar para vender, porque, senão, vai estragar”, disse o presidente.

Colocar a culpa na população — embora Lula não tenha explicitamente culpado a população, sua fala deu margem para essa interpretação — certamente não é a melhor escolha para comunicar uma crise inflacionária de alimentos. As leis do mercado, de oferta e de procura, podem explicar a dinâmica de um produto ficar mais caro ou mais barato, mas alguém investido no cargo máximo de uma nação não pode querer controlar os preços do supermercado, muito menos acreditar que isso ocorra por ação do povo.

Existem políticas públicas e ações governamentais que agem para evitar que a inflação venha a corroer os salários. Lula, Haddad e a oposição sabem bem disso. Porém, colocá-las em prática pode afetar um jogo de poder já muito desgastado e dependeria de um Congresso coeso e comprometido com o interesse público — algo distante da realidade atual.

Algumas crises recentes que o governo Lula III enfrentou, como a questão que envolvia a taxação do Pix no início de janeiro, não conseguiram ser contornadas com uma comunicação eficiente. A oposição dominou as redes e impôs sua versão da história. De quebra, alçou heróis populares como o deputado federal Nikolas Ferreira.

Há problema na comunicação do governo, mas também há falhas de conteúdo. Assim como não se pode culpar a população pela alta dos preços, não se pode colocar na conta da comunicação os erros de estratégia política e econômica.

No fim das contas, a economia não se resolve na base da boa vontade do consumidor. Quando o caixa passa um produto e o “beep” ecoa no supermercado, ele não distingue quem tem consciência econômica de quem não tem — só registra o preço, que segue subindo.

A inflação de alimentos não some com um toque de pedagogia presidencial, mas com medidas concretas. Se o governo não quiser ouvir um outro beep, esse vindo de votos contrários nas urnas eletrônicas, precisará agir além dos discursos.
 
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Moraes, a Vespa e a Quimera: a justiça e a tragédia no Brasil do golpe
26/11/2024 | 08h54
Belerofonte, Pégasus e Quimera
Belerofonte, Pégasus e Quimera / Reprodução
A tragédia clássica é um gênero literário frequentemente utilizado para traçar paralelos com a vida cotidiana e, em última análise, confrontar os leitores de todas as épocas com dilemas morais, sentimentos ambíguos e questões atemporais de cunho filosófico.

Não é exagero dizer que o Brasil atravessa uma tragédia. Há todos os elementos para que o momento atual seja caracterizado assim, principalmente nos âmbitos jurídico e político: heróis, vilões, batalhas, golpes e atos de violência — com direito a planos de assassinatos envolvendo explosões e envenenamentos. Embora trágico, esse contexto pode servir para que a democracia brasileira trace linhas que deveriam ter sido desenhadas há muito tempo.

O Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de guardião da Constituição, é quem pode fazer com que essas linhas delimitantes estejam visíveis. Embora haja poderes independentes e se preze pela harmonia, o Supremo precisa ter a caneta e a régua para desenhá-las, e assumir-se como detentor da última palavra numa democracia.

Porém, não basta que a etimologia e a lei definam o Supremo como tal. Na democracia é preciso que ele seja assim reconhecido, assim seja aceito, sob pena de criar animosidades sociais que venham a questionar sua legitimidade. Não se trata de adequar as decisões e o próprio tribunal à opinião popular, ou submeter-se à “tirania da maioria” — citada no texto clássico de Tocqueville, Democracia na América (1835) —, mas é preciso cuidar para que os conceitos de justiça, igualdade e imparcialidade estejam colocados como balizadores inquestionáveis.

Moraes e Belerofonte

Belerofonte, um dos heróis trágicos mais célebres da mitologia grega, era um semideus destemido, filho de Poseidon. Após matar seu irmão acidentalmente em um treinamento, foi expulso de casa e se refugiou no reino de Proeto, onde serviu ao rei. Entretanto, envolveu-se com a rainha Antéia, que, rejeitada por ele, o acusou de assédio. Para resolver o impasse sem violar as leis da hospitalidade, o rei enviou Belerofonte a uma missão suicida: derrotar Quimera, um monstro com corpo de leão, cauda de serpente e uma cabeça extra cuspindo fogo.

Na contemporaneidade, Alexandre de Moraes desempenha um papel similar ao de Belerofonte, enfrentando a Quimera institucional brasileira — um monstro de múltiplas "cabeças" que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e tentativas de corroer o Estado de Direito.

Moraes, como protagonista do inquérito que apura a tentativa de golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder, mesmo derrotado na eleição de 2022, é perfeitamente comparável com Belerofonte. E Quimera com a crise política e institucional de muitas “cabeças”, que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e estratégias perversas que visam a erosão do Estado de Direito.

Assim como as impetradas pelo monstro mítico, as ameaças atuais — essas bastante reais enfrentadas por Moraes — são interligadas e exigem respostas rápidas, criativas e corajosas. No caso de Belerofonte, a vitória só foi possível com a ajuda de Pégasus, o poderoso cavalo alado gerado por Poseidon que dá nome a uma constelação do hemisfério celestial norte. Montado em Pégasus e contrariando o caráter suicida da missão de matar Quimera, Belerofonte conseguiu proferir um golpe mortal no coração da besta.
Min. Alexandre de Moraes
Min. Alexandre de Moraes / Gustavo Moreno/STF


Caso exista algum Pégasus para que o ministro do STF possa fazer de montaria e artifício vitorioso, ele ainda não foi revelado, mesmo porque nenhuma vitória no mundo real não é garantida. Se houver algum cavalo alado possível, deverá sair do relatório do inquérito de mais de 800 páginas que deverá ser remetido à Procuradoria-Geral da República (PGR) ainda neste mês.

Na última quinta-feira (21), a Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-ministro da Defesa Walter Souza Braga Netto, candidato a vice pelo PL nas eleições de 2022, e o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid por tentativa de golpe de Estado. Outras 34 pessoas também foram indiciadas. Na lista, estão ex-ministros do governo Bolsonaro, ex-comandantes do Exército e da Marinha, militares da ativa e da reserva.

A vespa da suspeição

Na mitologia, a derrota da Quimera trouxe para Belerofonte uma glória efêmera, seguida pela arrogância que o levou a tentar alcançar o Olimpo — um ato que resultou em sua queda e isolamento, após Zeus enviar uma vespa para picar Pegasus.

Na quimera institucional do Brasil de hoje, Alexandre de Moraes figura como juiz e como vítima. Concentrando a maior parte dos ataques bolsonaristas, visto como inimigo ainda durante o governo do ex-presidente, descobriu-se no curso da investigação da PF um plano para matá-lo, com participação ativa de um general da reserva.

O ordenamento penal brasileiro traz dois institutos para tratar os casos em que o julgador tem questionado sua capacidade de agir processualmente com distanciamento e imparcialidade: a suspeição e o impedimento.

O que parece pesar sobre a permanência de Moraes no julgamento dos atos antidemocráticos é o impedimento. Com rol taxativo, as hipóteses estão dispostas nos artigos 252 e 253 do Código de Processo Penal (CPP), estas não admitindo ampliação a partir de interpretações subjetivas. Mas parece claro, dado o que foi descoberto pela PF, que Moraes tem “ele próprio”, motivos suficientes para estar “diretamente interessado no feito” — inciso IV do art. 252 do CPP.

Tanto na doutrina quanto na jurisprudência, há um debate sobre a taxatividade das hipóteses de impedimento e suspeição previstas nos códigos. A doutrina defende a possibilidade de ampliar a aplicação dos artigos sobre suspeição e impedimento por meio da analogia e da interpretação extensiva. O artigo 3º do CPP, que permite a interpretação extensiva e aplicação analógica da lei processual penal, é citado como base para essa interpretação.

À margem dessa discussão, mas sem ignorá-la, um possível impedimento do ministro Moraes pode ser sustentada pela ideia de que os autores de um plano de assassinato contra ele não poderiam ser julgados com a imparcialidade necessária. Já a suspeição pode ser defendida a partir de critérios subjetivos, onde serão analisadas as relações de inimizade, no caso, e sua externalidade ao processo. Alexandre de Moraes seria um inimigo capital dos agora indicados? A resposta embora parece óbvia na atual conjuntura, não se aplica para determinar uma suspeição, uma vez que a inimizade não é recíproca, não há causa suficientemente lógica que faça com que o ministro do STF seja suspeito para julgar quem o coloca como inimigo.

Mas qual seria o peso para uma suspeição dos comentários ou posicionamentos públicos de um magistrado? Podem eles comprometer a imparcialidade, mesmo que não se enquadrem nas hipóteses previstas em lei? A Constituição de 1988 consagra o sistema acusatório, que por sua vez garante a imparcialidade do juiz, e tem o objetivo final de garantir a justiça e a equidade.

Pesa ainda sobre Alexandre de Moraes uma postura, mesmo que cultuada alheia à sua vontade, de “combatente do crime”, que pode levar a pré-julgamentos e à produção de provas ex officio, violando o sistema acusatório e a imparcialidade. A separação clara entre as funções de investigar e julgar é essencial para a construção de um sistema acusatório genuíno.
Atos antidemocráticos em 8 de janeiro
Atos antidemocráticos em 8 de janeiro / Joedson Alves/Agência Brasil


Porém, o STF se mostra como a última instância em julgamentos dessa natureza, e há uma questão de definição dos sujeitos passivo e ativo atacados nos planos golpistas. Embora tenha se mostrado no inquérito que havia um plano para matar especificamente o ministro Moraes, a intenção dos golpistas seria um ataque mortal ao Supremo Tribunal Federal como um todo, e sua representação simbólica e prática na institucionalidade brasileira.

O STF age para remover o ferrão da vespa da suspeição

Em recente declaração pública, outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, disse que não faz sentido a discussão sobre a suspeição do colega Moares, uma vez que “seria muito fácil engendrar o impedimento do tribunal inteiro dizendo que todos eram alvos de ataques”. Mendes lembra que muitos ministros, e o próprio STF, também foram alvos de ataques.

O mesmo Código que diz sobre a suspeição e o impedimento, traz em seu artigo 256 a determinação de que “a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”. Parece ser com essa base legal que Gilmar Mendes constrói seu raciocínio, onde se rechaça a possibilidade do réu escolher seu julgador. No caso de um tribunal composto por 11 ministros, e sendo a última instância, seria possível facilmente, caso a tese de suspeição fosse acatada, inviabilizar toda corte.

O legislador diz que para a suspeição é preciso agir “de propósito” para motivá-la. Além disso, as relações hostis entre as figuras processuais necessariamente precisam atender a um caráter temporal, uma vez que a existência de relações conflituosas não poderiam ser anteriores à instauração do processo, podendo inviabilizar a aplicação do art. 256 (CPP).
Portanto, a intenção de causar nulidades e suspeição precisa ser explícita, não pode ser confundida com uma hostilidade que deriva de questões alheias ao julgamento. E também não poderiam antever a abertura de um processo penal, de forma preditiva.

O perigo da vespa


A democracia brasileira sofreu seu maior ataque desde a ditadura militar. A tentativa de subversão em 8 de janeiro de 2023 demonstrou o quão profundas eram as articulações antidemocráticas. Diante disso, discutir a suspeição ou impedimento de Moraes pode ser visto como uma tentativa de enfraquecer o sistema judicial em benefício de réus que buscaram aniquilar a ordem constitucional.

As características do ataque levaram a uma constatação óbvia: eles não poderiam acontecer alijados de contexto, tampouco desprovidos de financiamento e organização. Os planos golpistas começam a ser demonstrados em detalhes, trazidos pela investigação da PF, e revelam que havia orquestração de medidas e ações, e elas se estenderam antes e depois dos atentados de 8 de janeiro.

A discussão de suspeição ou impedimento de Alexandre de Moraes, embora válida juridicamente, pode trazer um entendimento de que os que cometeram tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito podem manejar a justiça para escolher seu julgador. E uma vez tendo sucesso na empreitada, fazer com que a Corte seja, de forma análoga, impedida de julgá-los.

Em situações de normalidade institucional, o STF poderia não ser competente para julgar o caso, e Moraes não deveria acumular funções investigativas e de julgamento. Porém, garantir o devido processo legal é fundamental, principalmente em momentos de crise.

Caso a vespa da suspeição seja afastada, e o impedimento não acatado pelo Supremo, Alexandre de Moraes subirá ao Olimpo da Constituição com um Pégasus inabalável, e tudo leva a crer que cumprirá seu dever com a determinação de um guerreiro vindo da mitologia.

Mas, um recorte temporal infinitamente menor da história brasileira em comparação com a mitologia grega, mostra que há um perigo real quando a justiça elege salvadores e guerreiros míticos. Em passado recente, um magistrado de primeira instância foi içado à essa categoria, e suas nulidades e parcialidades corroeram qualquer possibilidade de vitória legítima.

A vespa da suspeição ou do impedimento pode não ser capaz de derrubar um ministro da última instância, mas é preciso cautela quando a tragédia sobrevoa o Olimpo.







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Golpismo, Tiu França e planos de assassinatos: o ódio que acende os rastilhos
20/11/2024 | 04h37

Edmundo Siqueira


Era abril de 2016. O Brasil vivia uma turbulência política que culminaria no impeachment da presidente. Uma operação da polícia federal havia revelado um extenso esquema de corrupção que levava o país a ver políticos tradicionais serem presos e os subterrâneos do poder ficarem expostos.

O que poderia ser um processo de moralização da política se transformou em um espetáculo midiático, alimentado diariamente, com procuradores e juízes arvorados a salvadores da pátria corrompendo o devido processo legal. E o que poderia ser a queda de uma presidente impopular que produziu uma crise econômica gigantesca, se transformou em um julgamento parlamentar burlesco.

Entre os deputados mais grotescos que se manifestaram, um se destacava: Jair Messias Bolsonaro. Entre placas de “Tchau, querida!” e faixas verdes e amarelas, Bolsonaro dedicou o seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, ex-comandante do DOI-Codi — um dos maiores centros de repressão durante a ditadura militar — morto em 2015. Se não bastasse o absurdo de exaltar um torturador, o então deputado Jair complementou dizendo que ele seria o “pavor de Dilma Rousseff”, a mesma mulher que estava sendo julgada na ocasião.

No plenário da Câmara dos Deputados, aos olhos de todo país, em um julgamento acompanhado como uma novela ou um campeonato de futebol, um deputado homenageia um torturador que atuava em nome da odiosa ditadura brasileira, e de forma sádica fez questão de fazer com que uma mulher julgada lembrasse os atos de extrema violência sofridos.

Tanques de guerra em Brasília - golpes militares se repetem na história do Brasil.
Tanques de guerra em Brasília - golpes militares se repetem na história do Brasil. / Arquivo Nacional
O Brasil não julgou os torturadores e os líderes da ditadura. Brilhante Ustra foi um dos poucos a receber julgamento, sendo o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos. O golpe que levou o país ao regime ditatorial foi parcialmente esquecido, e nessa condição permitiu que a história, como elemento vivo e político que é, fosse ressignificada pela visão dos ditadores e torturadores.
Tiu França e o contexto

Por óbvio, o ódio na sociedade brasileira não começou com a lembrança criminosa de Ustra feita por Bolsonaro. Estamos entre os países que mais receberam escravizados da diáspora africana e entre os últimos a abolir a escravidão. Nossa história é repleta de golpes de Estado, e mantivemos uma desigualdade pornográfica, uma das maiores do mundo, e uma estrutura social violenta, autoritária, machista e preconceituosa.

Porém, não havia incitações de ódio e incentivo à toda sorte de ruptura institucional como experimentamos desde a operação Lava Jato. Criou-se no Brasil uma cultura, um ambiente que favorece que padrões de comportamento agressivos e de ressentimento se repitam em certos grupos, e se reproduzam ao ponto de se transformar em um movimento de massa, ou algo definidor de identidades.
 
Investigações no local do atentado a bomba realizado na Praça dos Três Poderes por Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’.
Investigações no local do atentado a bomba realizado na Praça dos Três Poderes por Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’. / Agência Brasil - EBC


Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’, como era conhecido, não se radicalizou a ponto de se transformar em um homem-bomba alijado de contexto social e político. Não haveria um atentado como o que ocorreu em Brasília no último dia 13 se não houvesse condições pregressas. O ódio acendeu os rastilhos das bombas.

No último domingo, a casa onde morava Tiu França foi incendiada, em Rio do Sul, Santa Catarina, com sua ex-esposa no interior da residência, que encontra-se em estado grave. Uma das hipóteses investigadas é de que a própria ex-mulher do autor do atentado tenha provocado o incêndio.

É preciso dar às coisas os nomes que elas têm.
Quando há estímulos públicos para que as pessoas se exponham a um vírus letal e são tomadas decisões que venham a postergar e dificultar o acesso à vacinação, trata-se de necropolítica (política da morte). Quando alguém atuando na posição de liderança carismática de um movimento de massa, como Bolsonaro, age sistematicamente para questionar os poderes constituídos e propondo a eliminação de adversários políticos, esse alguém é fascista.
Os ‘ismos’ em seus tempos

As esquerdas brasileiras caíram na esparrela de vulgarizar conceitos e palavras fundamentais para entendermos o momento atual. O fascismo foi retirado de contexto e usado como adjetivo para gente como Fernando Henrique e Geraldo Alckmin em tempos da polarização PT x PSDB. Eles e outros democratas convictos eram taxados de autoritários e golpistas por ter pensamentos diferentes em relação à economia.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade - 1964
Marcha da Família com Deus pela Liberdade - 1964 / Arquivo Nacional
Há posições acadêmicas que procuram estacionar o fascismo em seu
tempo histórico, assim impedindo que tenha reproduções em outros contextos fáticos. Porém figuras como Trump e Bolsonaro personificam modos de fazer política que guardam semelhanças gritantes com o fascismo, inclusive no uso de expressões — na Alemanha de Adolf Hitler, um dos lemas mais repetidos era “Deutschland über alles”, em bom português: “Alemanha acima de tudo”.

Como no fascismo, a ideia construída na extrema-direita atual também acredita em uma “maioria nacional única”, que é personificada no homem, branco, heterossexual, de classe média urbana. É preciso, assim como nos fascismos, o culto à masculinidade, a negação do feminino e a aversão a minorias como negros e LGBTs.

Cultuar figuras como Brilhante Ustra é algo aderente a esse conjunto de ideias. O que pode parecer asqueroso para muitas pessoas, denota força e coragem para o grupo já iniciado no movimento de inspiração fascista. A ditadura e a tortura passam a ser instrumentos necessários para eliminar inimigos, mesmo que imaginários.

O plano para matar

Uma das características da extrema-direita brasileira é a participação das Forças Armadas. Diferente de outros países, como os EUA por exemplo, o braço armado do Brasil não se sente incomodado em participar da vida política. Pelo contrário: são instados como garantidores, ou como sendo a última alternativa para “manter a ordem”.

Basta olharmos para a construção política do país, desde o início da República, para percebermos que há uma significativa ala golpista nas Forças Armadas. Os militares assumiram a condição de governo na gestão do ex-presidente Bolsonaro, ocupando diversos cargos, inclusive do primeiro escalão.
 
Manifestantes golpistas protestam contra tentativa de desmonte de acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília -
Manifestantes golpistas protestam contra tentativa de desmonte de acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília - / Gabriela Biló - 29.dez.2022/Folhapress


O golpismo militar aliado do bolsonarismo radical ganhou contornos ainda mais inaceitáveis. Menos de uma semana do atentado em Brasília, uma investigação da Polícia Federal descobriu que cinco pessoas (quatro militares e um policial federal) conversavam em 2022 em um aplicativo de mensagens sobre um plano para matar o então presidente eleito, Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Para matar o presidente, segundo documento juntado aos autos pela PF, seria utilizado “envenenamento ou uso de [produtos] químicos”. No caso de Moraes, o grupo planejava “o uso de artefato explosivo”.

Pela primeira vez na história do Brasil, um general (Mário Fernandes, general da reserva e ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro) foi preso por conspirar contra o país.

Os rastilhos

A Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada de Bolsonaro ao poder, a condução da pandemia, o 8 de janeiro, o 13 de novembro e a descoberta do plano dos militares para eliminar a cúpula do poder no Brasil são explosivos detonados pelo ódio.

A ascensão da extrema-direita não é uma exclusividade brasileira, faz parte de nosso Zeitgeist (espírito do tempo), e tem origem por diversos fatores, com variáveis diferentes a depender do país, mas é possível traçar no Brasil uma linha do tempo do ódio, um encadeamento de fatos que possibilitaram a demonização da política e a cisão da sociedade.

Esse estado de coisas onde homens-bomba são criados e planos de assassinato são iniciados por quem perdeu as eleições, não é possível existir sem o ódio e o ressentimento. Fatos isolados como a homenagem ao coronel torturador Brilhante Ustra não explicam como chegamos até aqui. Mas a normalização sucessiva dos absurdos, certamente permitiu.
 
Plínio Salgado, ao centro, líder da AIB - Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista.
Plínio Salgado, ao centro, líder da AIB - Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista. / Reprodução

Na mesma votação em que Bolsonaro homenagiou Ustra, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse, quase em profecia: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação”. A palavra “misericórdia” deriva de miseratio (miséria) e cordis (coração). Literalmente, significa “coração que se debruça sobre a miséria humana”.

Que possamos sair da condição de miséria que a banalidade do mal criou; novamente.
 
 
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Trump, Kamala e um casamento em risco no Cinturão da Ferrugem
03/11/2024 | 12h12

Em uma matéria feita pelo editor de assuntos internacionais da rede britânica Sky News, Dominic Waghorn, publicada nesta sexta-feira (1), um casal de americanos foi entrevistado sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos, que acontecem na próxima terça-feira (5). Com seus votos já decididos, marido e mulher discordam frontalmente sobre os candidatos.

Don Young, 87 anos, é um ex-operário de uma das gigantescas siderúrgicas da Pensilvânia. Na entrevista, ele afirmou que a campanha de Donald Trump “literalmente reflete a de Adolf Hitler”. Já sua esposa, Barbara Young, é uma ativista pró-Trump, e, vestindo um boné de campanha de seu candidato, disse lamentar ouvir isso do marido.

A Pensilvânia faz parte do chamado "cinturão da ferrugem", um grupo de estados do nordeste e do meio-oeste dos Estados Unidos que também inclui Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa e Wisconsin. O cinturão reúne alguns estados decisivos para as eleições americanas — os chamados swing states — justamente pela oscilação de preferência entre democratas e republicanos.
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA / infográfico de O Globo


Por exemplo, esses estados foram decisivos para a vitória de Barack Obama, do Partido Democrata, em 2008 e 2012. Já em 2016, o republicano Donald Trump conquistou todos os delegados da região, com exceção de Minnesota.

O casal Don e Barbara é representativo da divisão ideológica dessa região dos EUA. Mais que isso, reflete como o cidadão votante de lá vê o mundo, com quais lentes ideológicas interpreta a realidade e, consequentemente, as opções eleitorais para a presidência. São estados divididos, onde tanto candidatos democratas quanto republicanos têm chance, dependendo das propostas e convicções de cada eleição.

Estados como o Texas, por exemplo, são redutos históricos dos republicanos, com forte viés conservador. Eles contrastam com os estados-pêndulos, pois geralmente podem ser previstos com maior certeza. Assim, o partido conta com esses delegados no resultado final — ou com sua ausência.

Contudo, isso não é uma certeza absoluta: o próprio Texas começa a mostrar sinais de mudança de tendência, e uma vitória democrata, embora improvável, não é impossível. O estado ainda é considerado "sólido", ou seja, historicamente previsível. Hoje, há 139 delegados que representam estados sólidos do lado democrata, contra 94 do lado republicano, de um total de 538 em disputa.

Os sete estados-pêndulos somam 93 delegados. O número mágico para conquistar a Casa Branca é 270, representando a maioria simples. Do lado democrata, Kamala Harris conta com o apoio de 226 delegados, enquanto Trump tem 219. A possibilidade real de vitória, portanto, recai sobre os 93 delegados dos estados pendulares. Nos EUA, o candidato que vencer no voto popular em um estado leva todos os seus delegados, seja por 1 ou por 1 milhão de votos. No cômputo final, é possível perder no voto direto e mesmo assim vencer a eleição, pois o número de delegados é o que define o presidente.


Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos.
Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos. / Reprodução


O trumpismo no Cinturão
A posição externada por Don Young na entrevista é uma exceção que confirma a regra. Em geral, o homem que vive no Cinturão da Ferrugem é alguém que perdeu seu lugar no mundo. Os empregos nas fábricas permitiam que esses homens fossem os provedores da família, que pudessem comprar uma casa, um carro e fazer churrascos aos fins de semana.

Essa visão do papel masculino numa sociedade de estrutura patriarcal sustenta o público conservador, que sente que seu espaço no mundo está se fechando. A figura de Trump, implícita e explicitamente, carrega a promessa de um retorno a esses valores e de uma recuperação desses empregos.

Além dos saudosistas que viveram tempos mais prósperos, as novas gerações também sentem a quebra de um antigo "acordo" geracional da sociedade americana: de que sua vida seria melhor que a de seus pais. A retomada desse acordo é encarnada no ideal trumpista.

Barbara Young, por exemplo, afirmou que Trump lembra seu pai, a quem descreveu como "forte, rigoroso e cumpridor de sua palavra". Isso reflete como os ideais do candidato republicano atraem eleitores de diferentes gêneros e gerações que viveram em uma lógica familiar e econômica cada vez mais difícil de manter.

Isso ajuda a explicar por que o sucesso econômico de um governo nem sempre é determinante na escolha do eleitor. Embora a economia americana esteja relativamente estável, o empate nas pesquisas entre Kamala e Trump mostra que a disputa é emocional e identitária.

O fascismo repaginado nos EUA e no Brasil
Ser conservador não é sinônimo de ser reacionário, mas a ideia de um passado idealizado é poderosa e mobilizadora. No Brasil, Bolsonaro traz uma visão semelhante, com adaptações naturais às particularidades do país.

O militarismo é uma marca do bolsonarismo, que vê as forças armadas como garantidoras da “ordem” — uma perspectiva fortalecida pela Constituição de 1988. Isso é diferente dos EUA, onde os militares não atuam politicamente e são mobilizados para a defesa contra ameaças externas.
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro / Reprodução/Folha de S.Paulo


Na entrevista, Don Young afirmou já ter visto muitos ditadores na história e que Trump se encaixa nesse perfil. Frequentemente, o republicano precisa refutar acusações de nazismo, o que sugere algumas similaridades aparentes.

O conceito de fascismo, embora específico de um período histórico, vem sendo repensado diante de líderes como Trump, Bolsonaro, Orbán, Putin e Netanyahu. Discursos de ódio, ataques a minorias, eliminação de adversários e negação da ciência e da intelectualidade são práticas comuns em suas plataformas.

Uma possível vitória de Donald Trump pode fortalecer e dar continuidade a esse ideal de extrema-direita que vem crescendo globalmente. A escolha entre Trump e Kamala pertence aos americanos, mas suas repercussões atingem o mundo todo, dado o poder dos EUA.

Na próxima terça-feira, os americanos decidirão entre dois candidatos com visões de mundo profundamente distintas, que definirão o papel do país em um mundo em tensão, como poucas vezes na história. No intrincado sistema eleitoral americano, o resultado final certamente não será conhecido no mesmo dia e deverá ser apertado.

Can your marriage survive a Donald Trump win (seu casamento sobreviverá à vitória de Donald Trump)?”, pergunta o título da matéria da Sky News. Mais que um casamento no Cinturão da Ferrugem, é preciso perguntar se o mundo, como o conhecemos, sobreviverá.

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Kassab é o centrista fisiológico que o Brasil criou contra a extrema-direita
13/10/2024 | 01h33
Arte digital, criada  por IA.
Arte digital, criada por IA. / Edmundo Siqueira


A preço de hoje, Lula e Tarcísio de Freitas são os nomes mais cotados para 2026. Existem muitos outros possíveis presidenciáveis, mas entre coachs e prefeitos de capital bem votados em primeiro turno, Lula e Tarcísio personificam duas grandes correntes no Brasil, algo em torno de 20-30% do eleitorado cada.

Tarcísio consegue vender uma imagem de moderado, mesmo apoiado por Bolsonaro e o reverenciar como mito. E caso consiga manter duas situações bastante críveis — a vitória de Ricardo Nunes para a prefeitura de São Paulo e a inelegibilidade de Bolsonaro — se cacifa para 2026 como o favorito do centrão, da Faria Lima e de boa parte da classe média.

Gilberto Kassab, presidente do PSD, vem sendo vendido como o “homem do jogo”, o grande vencedor das eleições municipais. Dá para entender: seu partido abocanhou 886 prefeituras. Porém, não se trata apenas da habilidade política de Kassab. Sem um Congresso com um poder gigante sobre o orçamento público federal não seria possível eleger prefeitos centristas fisiológicos com tanta facilidade.

Kassab mostrou ser o mais habilidoso em entender esse jogo, e com uma posição de neutralidade de ocasião e com a liberdade ideológica de quem está olhando de cima do muro, ele pode ser um instrumento poderoso nas mãos de quem estiver melhor colocado em 2026. Ou de quem pagar mais.

Como tudo mais na vida, há sempre lados positivos, mesmo quando servem para conter desgraças. Talvez um centro fisiológico tipicamente brasileiro seja a única força capaz de conter o avanço da extrema-direita. Por óbvio, não é a força ideal para políticas de interesse público, ou mesmo para uma democracia saudável, mas é o que o mundo real mostra.

Gilberto Kassab, presidente do PSD.
Gilberto Kassab, presidente do PSD. / Ed Alves/CB/D.A Press
A postura fisiológica de Kassab é justamente a mesma da mão que rege a batuta da orquestra mais poderosa no Congresso Nacional. E é justamente a que deu o tom nas eleições municipais. Por falar em centrão, o natural enfraquecimento do presidente da Câmara, Arthur Lira, que não pode se reeleger em 2025, abre mais um caminho para Kassab ser o maestro principal das eleições presidenciais de 2026.


Lula, a preço de hoje, é o favorito. Reconhecido pelos adversários como tal. E tem uma boa relação com Kassab. Caso a economia não desande, e o aparente voo de galinha seja mais duradouro que o previsto, a tendência é que Lula chegue muito forte em 2026.

“Ah, então se Lula for eleito, está resolvido e não ficaremos nas mãos do centrão”. “Ah, se Tarcísio se fortalecer, iremos moralizar o país!”; o que parece é que a orquestra continuará a tocar mesmo se o Titanic estiver afundando.
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Ao menos uma história romântica no PT campista
13/10/2024 | 12h14
Arte digital crida com IA
Arte digital crida com IA / Edmundo Siqueira

O amor da deputada Carla Machado foi uma mentira que a vaidade do PT de Campos quis acreditar. Ela não poderia ser candidata à prefeita de Campos por uma questão jurídica, e a proximidade dela com o também deputado e presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar, denunciava que haveria uma aliança.

O PT de Campos acertou no candidato, porém deveria — mesmo agindo em “poesia de cego” ou em um “amor inventado” — ter apostado no professor Jefferson desde o início. Mas decidiu, em um corte lento e profundo, o deixar como segunda opção.

Eleger alguém do PT em uma cidade como Campos não é tarefa simples. Seja prefeito ou vereador. Exigiria desconstruir uma rejeição enorme, ou pelo menos atrair a maioria do eleitorado que se identifica com o campo progressista na cidade. E pior: assim como em outros locais, as esquerdas são divididas, e os liberais, sociais democratas e liberais sociais não optam por votar no PT automaticamente; é uma escolha que requer cálculo político do eleitor desse campo.

A verdade é que o PT não conseguiu cumprir nenhum dos objetivos que parecia disposto nesta eleição. Não elegeu Jefferson, sequer conseguiu o número de votos esperado e não elegeu nenhum vereador. Existem muitas explicações, mas para uma enormidade de eleitores campistas, ver Lula no material de campanha dos candidatos locais não era “mais tão bacana quanto a semana passada”.

Mas, apesar da rejeição sabida, era Lula que aparecia na campanha petista. Pensar que o campista que votou em Lula na última eleição presidencial iria votar para prefeito e vereador, apertando o 13 novamente, foi mais uma mentira que a vaidade do PT quis.

Quando a eleição acaba, a gente pode pensar que ela nunca existiu. Mas há um trabalho necessário a ser feito. Campos precisa se reencontrar com as esquerdas e com a direita democrática (ou centro-direita). Os anos Bolsonaro criaram um campo de extrema-direita na cidade que não é saudável à nossa já combalida democracia.

A questão aqui não é culpar o PT, apontar erros gratuitamente ou mesmo ser engenheiro de obra pronta, como se diz. A questão é reconhecer que estaremos por mais quatro anos sem representação progressista em Campos. É claro que houve compra de votos e derrama de dinheiro. Uma conta de padaria rápida prova isso com a quantidade de bandeiras nas ruas. E é claro que pode-se olhar o copo meio cheio. O PT ampliou o número de votos comparado à última eleição. Mas o resultado foi insatisfatório; não se elegeu ninguém do campo progressista.

Muito pode ser feito sem mandato, mas uma representação formal, na Câmara de Vereadores, tem o poder de interferir em políticas públicas, formar maior consciência política, e dar pluralidade representativa. Ocupar espaços de poder é fundamental.

Mas ficou “tudo fora do lugar; café sem açúcar, dança sem par”. Mas as esquerdas podiam “ao menos contar uma história romântica” nesse interregno até 2028, passando por 2026. E uma um pouco mais pragmática nos anos decisivos.
 
*
O Nosso Amor a Gente Inventa
Cazuza


O teu amor é uma mentira
Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver

Não pode ver que no meu mundo
Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa

Te ver não é mais tão bacana
Quanto a semana passada
Você nem arrumou a cama
Parece que fugiu de casa

Mas ficou tudo fora do lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

Mas ficou tudo fora do lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa
 
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A sociedade aberta, seus inimigos e os debates intolerantes
19/09/2024 | 08h54
Os algoritmos, a liberade e a tolerância
Os algoritmos, a liberade e a tolerância / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Existem dois conceitos fundamentais quando pensamos em uma democracia liberal: liberdade e tolerância. E até mesmo por seus papéis fundacionais em um sistema repleto de freios e contrapesos, e com a necessidade perene de limitação de poder mesmo quando exercido pelo Estado (este limitado pela Constituição), são conceitos complexos e por vezes contraditórios.

Como a garantia de liberdade, que não pode assumir um caráter absoluto, devendo ser limitada e relativizada quando fere outros direitos fundamentais. Em uma democracia liberal deveria parecer claro que o limite da liberdade é a lei. Portanto, quando o direito de exercer a liberdade fere o ordenamento posto e pactuado coletivamente, essa garantia perde seu objeto; seu preceito.

Pode parecer uma contradição aparente, mas limitar a liberdade individual é papel de uma democracia liberal, justamente para garantir que haja convivência pacífica em âmbito coletivo. O direito de ir e vir, por exemplo, não pode ser exercido plenamente quando há uma situação extrema ou calamidade, justamente para proteger o indivíduo quando este quer assumir uma conduta que cause riscos para si e para seus conviventes. Limitações de direitos também falam sobre proteção.

Quando caminhamos em terrenos políticos, podemos perceber que a liberdade é usada como elemento central de discursos que buscam radicalidade e ruptura; travestidos de defensores da liberdade, subvertem seu real sentido. E por vezes conseguem convencer uma quantidade de pessoas suficiente para criar um movimento significativo socialmente, e é nesse ponto que as democracias liberais passam a ter um problema para resolver.
 
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas?
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas? / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Limitar ou ampliar?

A primeira reação dos democratas talvez seja limitar a presença desses transgressores libertários no debate público, bloqueando seus perfis nos ambientes digitais, impedindo que compareçam a debates televisionados ou mesmo dificultando seu acesso a partidos políticos ou candidaturas avulsas. A premissa é de que a voz desses indivíduos seja calada, impedindo que convençam outros de suas convicções deturpadas.

Mas como exercer esse controle de forma equilibrada? O direito, como ciência social, estabelece a intenção, o dolo, como um elemento central para o julgamento de crimes. A mesma conduta pode ter interpretações e punições diferentes a depender da intenção. Para se formar o dolo, o agente causador do ato ilícito precisa ter conhecimento da ilegalidade, vontade de agir e indiferença perante o resultado danoso.

Decisões judiciais que visam impedir que agentes políticos — investidos ou não em mandatos — atuem livremente para descumprir leis de forma dolosa, mesmo quando feito em ambientes virtuais, atendem à premissa da proteção do modo de vida da sociedade, do espírito das leis e da Constituição. Portanto, alguém que possui o dolo evidente de quebrar as vigas de sustentação da democracia precisa ser combatido, e calado quando o resultado danoso de sua conduta estiver em suas palavras.

Porém, mesmo havendo dolo no uso de liberdades individuais fundamentais como a livre expressão, é preciso que seu combate seja feito em bases razoáveis, e temporárias. Não se pode calar alguém na sociedade de forma indiscriminada, tampouco por tempo indeterminado. Caso contrário, estaremos supondo que aquele agente estará sempre cometendo ilegalidade em suas opiniões, e agiremos em censurá-lo previamente.

Karl Popper
Karl Popper / Reprodução
A tolerância e o debate público


O segundo conceito chave em uma democracia liberal, a tolerância, dialoga essencialmente com a liberdade de expressão nos tempos atuais. Produzimos a maior ferramenta de comunicação humana já vista, a mais global e a mais rápida que já existiu.

A internet não apenas possibilitou essa comunicação como retirou do processo entre emissor e receptor qualquer tipo de mediação ou filtro. Qualquer pessoa pode ser um produtor ou emissor de conteúdo e ele é distribuído para outrem sem passar por qualquer crivo de qualidade ou de senso de credibilidade.

A internet produziu um cenário libertário, mas concentrou em poucos controladores o poder sobre os meios em que as mensagens são produzidas. E criou os algoritmos para direcionar de forma automatizada as predileções e os ódios.

A questão é que “o meio é a mensagem”, como ensinou o filósofo canadense Marshall McLuhan. A forma como recebemos a informação é tão significativa quanto o conteúdo que ela transmite. Esse “meio”, apesar de aumentar significativamente a capacidade de comunicação entre os indivíduos, produziu paradoxalmente um enorme afastamento ideológico, social e afetivo.

Outro filósofo, contemporâneo de McLuhan, mas nascido em Londres, Karl Popper, ganhou notoriedade mundial ao descrever outro paradoxo: o da tolerância. Esse conceito é descrito por Popper em uma nota de rodapé em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, e sua essência está na primeira frase: “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”.

“Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, continua, na mesma nota de rodapé.

O que Karl Popper está dizendo é que as democracias liberais têm o dever de suprimir as tentativas intolerantes, e mesmo que “pela força”, pelo poder coercitivo do Estado, impedir que cresça na sociedade um sentimento de intolerância, de ódio ou de incapacidade de convívio.
Caso optamos por permitir, estaremos dando passos temporais largos para um passado incivilizado, e portanto destruindo o que chamamos de sistema democrático. Portanto, o debate público não pode acontecer à margem da lei, e jamais em bases intolerantes.

Se não defendermos a tolerância com firmeza, permitiremos que a liberdade, ao invés de um direito, se torne uma arma nas mãos de seus maiores inimigos.

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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com