Anistia de ontem, de hoje e os seus méritos
22/02/2025 | 11h33
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979 / Orlando Brito

Em 15 de março de 1979, o Brasil assistia à posse de mais um general como presidente da República. João Baptista Figueiredo — o último dos ditadores do regime militar — teve em suas mãos o dever histórico de redemocratizar o país.

“É meu propósito inabalável fazer deste país uma democracia (...) purificado o processo das influências desfigurantes e comprometedoras de sua representatividade”, disse o general Figueiredo em seu discurso de posse. Disse mais: “reafirmo a mão estendida em conciliação. Para que os brasileiros convivam pacificamente”.

A “mão estendida” de Figueiredo ganhava contornos legais alguns meses depois de sua posse. A Lei da Anistia fora aprovada no Congresso — não sem manifestações contrárias — em apenas três semanas, depois sancionada pelo governo militar. Com base no novo ordenamento, estavam anistiados os chamados “subversivos”: os que se manifestavam contrariamente ao governo e os que haviam pegado em armas contra o regime. A lei permitiu que exilados voltassem ao país e quem estivesse na clandestinidade ou figurasse como réu em tribunais militares pudesse viver livremente.

Mas o dispositivo legal não seria usado apenas para anistiar quem lutou contra a ditadura. Propositadamente obscura, a redação que a legislação trazia permitia que a anistia fosse estendida aos “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, ou “praticados por motivação política”, e ainda aos “crimes conexos”. Essa extensão legal, que de forma generalista tentava avançar sobre os que poderiam receber a anistia, acabava por abrigar os agentes da repressão, que torturaram, mataram e ocultaram cadáveres.
Figueiredo_Assina)Lei_Da_Anistia_OrlandoBrito
Figueiredo_Assina)Lei_Da_Anistia_OrlandoBrito / Orlando Brito


Mesmo assim, a promessa de Figueiredo de redemocratizar o país, trazendo de volta à vida pública os presos e exilados políticos, se cumpriu. Os anos de ditadura militar chegaram ao fim definitivamente alguns anos depois, uma nova constituição foi promulgada em 1988 e eleições civis, diretas e democráticas, voltaram a acontecer. A “autoanistia” que veio a reboque quis atender ao corporativismo que os militares brasileiros sempre apresentaram, e seu gosto pelo poder igualmente contumaz.

Negar ao país a possibilidade de punir os ditadores e torturadores, e de colocar a limpo sua própria história, também permite que o militarismo golpista e ditador permaneça na caserna.

Anistia de ontem e de hoje

Na última terça-feira (18), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi denunciado ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sob acusação de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Bolsonaro e mais 33 pessoas foram acusados pela PGR de praticar os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.

A denúncia da PGR e as investigações até aqui demonstram que os atos de 8 de janeiro foram a parte final de uma trama golpista com objetivo de derrubar um governo eleito democraticamente e subverter a ordem vigente.

O STF condenou 371 pessoas das mais de duas mil investigadas pelos atos. A maioria dos condenados (225) teve suas ações classificadas como graves com penas que variam de três anos a 17 anos de prisão. Segundo o Supremo, entre os condenados ao regime fechado (223 no total), 71 já iniciaram o cumprimento das penas e 30 aguardam o esgotamento das possibilidades de recurso (trânsito em julgado) nas suas ações penais para o início da execução penal.
Gabriela Biló - 18.fev.25/Folhapress

Como estratégia de defesa, Bolsonaro e apoiadores articulam junto ao Congresso para que seja aprovada uma lei que anistie os envolvidos no 8 de janeiro. No mesmo dia da denúncia da PGR, o ex-presidente afirmou que não haveria “dificuldade para colocar em pauta” a anistia. Embora Bolsonaro afirme o contrário, uma anistia aos envolvidos no 8 de janeiro iria beneficiar os agora denunciados ao STF.

Este espaço no Folha1 ouviu Pedro Estevam Serrano, advogado e doutor em direito do Estado, e professor de direito constitucional, sobre a admissibilidade de uma lei de anistia neste momento:

Pedro Serrano
Pedro Serrano / Divulgação/PUC
— Caso aprovada, essa lei de anistia poderia ter fundamento legal, mas o problema não seria exatamente esse. Haveria um desvio de poder, dependendo como for aprovada a anistia. Desvio de poder é uma forma especial de inconstitucionalidade, então daria para questionar a constitucionalidade da lei, caso aprovada.


Serrano confirma que a lei beneficiaria os agora denunciados, disse que sua aprovação “influenciaria no caso dos denunciados pela PGR, eles estariam anistiados, pois ela [a lei de anistia] pegaria todo mundo que cometeu ou participou do crime, então não teria sentido prosseguir o processo contra eles”.

O esquecimento e a necessidade de julgamento

Anistia é esquecimento. Quando se propõe que um processo de anistia aconteça no país, recorre-se ao interesse público e político de apagamento de fatos e crimes ocorridos durante um período histórico. A centralidade da ideia de anistia é absolver os culpados pelos crimes cometidos, conceder perdão e reconhecer que o que foi feito não é mais passível de punição.

E para que aconteça, a anistia deve obrigatoriamente ter a intenção de construir uma nova marcha para o futuro, com o desarme dos espíritos antes revoltosos, buscando uma convivência pacífica que possibilite reconstruir uma civilidade democrática.

A anistia aprovada por Figueiredo em 1979, mesmo tendo colocado sob o mesmo guarda-chuva quem lutou contra a ditadura e quem a praticou, cumpriu o papel de repactuar a convivência democrática. Havia a promessa real de construção coletiva de um novo futuro. No atual momento, algumas perguntas ficam. Existe o mesmo ânimo agora, na atual proposta de anistia? Estaria, quem praticou os atos no 8 de janeiro, disposto a conviver pacificamente com uma pluralidade de ideias e ideologias? Os denunciados por golpe de Estado ficariam sujeitos a uma pactuação onde a democracia não esteja novamente ameaçada?

A questão não reside no conceito de anistia. Há pactuações possíveis de serem feitas que visem construir uma convivência democrática possível. Como sistema imperfeito e de poucas defesas, a democracia deve permitir acordos entre os diferentes e até anistiar crimes contra ela mesma. A questão está no mérito.
 
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Lula III e o beep no caixa do supermercado
10/02/2025 | 12h11
Arte digital gerada por IA
Arte digital gerada por IA / Edmundo Siqueira
Não é nenhuma novidade que a economia interfere na política. Seria uma estupidez acreditar o contrário. Porém, comunicar as interferências econômicas é tão necessário quanto conter a alta dos preços.

Na última quinta-feira (6), o presidente Lula disse em uma entrevista a rádios da Bahia que os brasileiros precisam de um “processo educacional” para aprender a “ter consciência” e não comprar os produtos mais caros.

— Uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo. Se você vai no supermercado e você desconfia que tal produto está caro, você não compra. Se todo mundo tiver a consciência e não comprar aquilo que acha que está caro, quem está vendendo vai ter que baixar para vender, porque, senão, vai estragar”, disse o presidente.

Colocar a culpa na população — embora Lula não tenha explicitamente culpado a população, sua fala deu margem para essa interpretação — certamente não é a melhor escolha para comunicar uma crise inflacionária de alimentos. As leis do mercado, de oferta e de procura, podem explicar a dinâmica de um produto ficar mais caro ou mais barato, mas alguém investido no cargo máximo de uma nação não pode querer controlar os preços do supermercado, muito menos acreditar que isso ocorra por ação do povo.

Existem políticas públicas e ações governamentais que agem para evitar que a inflação venha a corroer os salários. Lula, Haddad e a oposição sabem bem disso. Porém, colocá-las em prática pode afetar um jogo de poder já muito desgastado e dependeria de um Congresso coeso e comprometido com o interesse público — algo distante da realidade atual.

Algumas crises recentes que o governo Lula III enfrentou, como a questão que envolvia a taxação do Pix no início de janeiro, não conseguiram ser contornadas com uma comunicação eficiente. A oposição dominou as redes e impôs sua versão da história. De quebra, alçou heróis populares como o deputado federal Nikolas Ferreira.

Há problema na comunicação do governo, mas também há falhas de conteúdo. Assim como não se pode culpar a população pela alta dos preços, não se pode colocar na conta da comunicação os erros de estratégia política e econômica.

No fim das contas, a economia não se resolve na base da boa vontade do consumidor. Quando o caixa passa um produto e o “beep” ecoa no supermercado, ele não distingue quem tem consciência econômica de quem não tem — só registra o preço, que segue subindo.

A inflação de alimentos não some com um toque de pedagogia presidencial, mas com medidas concretas. Se o governo não quiser ouvir um outro beep, esse vindo de votos contrários nas urnas eletrônicas, precisará agir além dos discursos.
 
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Moraes, a Vespa e a Quimera: a justiça e a tragédia no Brasil do golpe
26/11/2024 | 08h54
Belerofonte, Pégasus e Quimera
Belerofonte, Pégasus e Quimera / Reprodução
A tragédia clássica é um gênero literário frequentemente utilizado para traçar paralelos com a vida cotidiana e, em última análise, confrontar os leitores de todas as épocas com dilemas morais, sentimentos ambíguos e questões atemporais de cunho filosófico.

Não é exagero dizer que o Brasil atravessa uma tragédia. Há todos os elementos para que o momento atual seja caracterizado assim, principalmente nos âmbitos jurídico e político: heróis, vilões, batalhas, golpes e atos de violência — com direito a planos de assassinatos envolvendo explosões e envenenamentos. Embora trágico, esse contexto pode servir para que a democracia brasileira trace linhas que deveriam ter sido desenhadas há muito tempo.

O Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de guardião da Constituição, é quem pode fazer com que essas linhas delimitantes estejam visíveis. Embora haja poderes independentes e se preze pela harmonia, o Supremo precisa ter a caneta e a régua para desenhá-las, e assumir-se como detentor da última palavra numa democracia.

Porém, não basta que a etimologia e a lei definam o Supremo como tal. Na democracia é preciso que ele seja assim reconhecido, assim seja aceito, sob pena de criar animosidades sociais que venham a questionar sua legitimidade. Não se trata de adequar as decisões e o próprio tribunal à opinião popular, ou submeter-se à “tirania da maioria” — citada no texto clássico de Tocqueville, Democracia na América (1835) —, mas é preciso cuidar para que os conceitos de justiça, igualdade e imparcialidade estejam colocados como balizadores inquestionáveis.

Moraes e Belerofonte

Belerofonte, um dos heróis trágicos mais célebres da mitologia grega, era um semideus destemido, filho de Poseidon. Após matar seu irmão acidentalmente em um treinamento, foi expulso de casa e se refugiou no reino de Proeto, onde serviu ao rei. Entretanto, envolveu-se com a rainha Antéia, que, rejeitada por ele, o acusou de assédio. Para resolver o impasse sem violar as leis da hospitalidade, o rei enviou Belerofonte a uma missão suicida: derrotar Quimera, um monstro com corpo de leão, cauda de serpente e uma cabeça extra cuspindo fogo.

Na contemporaneidade, Alexandre de Moraes desempenha um papel similar ao de Belerofonte, enfrentando a Quimera institucional brasileira — um monstro de múltiplas "cabeças" que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e tentativas de corroer o Estado de Direito.

Moraes, como protagonista do inquérito que apura a tentativa de golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder, mesmo derrotado na eleição de 2022, é perfeitamente comparável com Belerofonte. E Quimera com a crise política e institucional de muitas “cabeças”, que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e estratégias perversas que visam a erosão do Estado de Direito.

Assim como as impetradas pelo monstro mítico, as ameaças atuais — essas bastante reais enfrentadas por Moraes — são interligadas e exigem respostas rápidas, criativas e corajosas. No caso de Belerofonte, a vitória só foi possível com a ajuda de Pégasus, o poderoso cavalo alado gerado por Poseidon que dá nome a uma constelação do hemisfério celestial norte. Montado em Pégasus e contrariando o caráter suicida da missão de matar Quimera, Belerofonte conseguiu proferir um golpe mortal no coração da besta.
Min. Alexandre de Moraes
Min. Alexandre de Moraes / Gustavo Moreno/STF


Caso exista algum Pégasus para que o ministro do STF possa fazer de montaria e artifício vitorioso, ele ainda não foi revelado, mesmo porque nenhuma vitória no mundo real não é garantida. Se houver algum cavalo alado possível, deverá sair do relatório do inquérito de mais de 800 páginas que deverá ser remetido à Procuradoria-Geral da República (PGR) ainda neste mês.

Na última quinta-feira (21), a Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-ministro da Defesa Walter Souza Braga Netto, candidato a vice pelo PL nas eleições de 2022, e o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid por tentativa de golpe de Estado. Outras 34 pessoas também foram indiciadas. Na lista, estão ex-ministros do governo Bolsonaro, ex-comandantes do Exército e da Marinha, militares da ativa e da reserva.

A vespa da suspeição

Na mitologia, a derrota da Quimera trouxe para Belerofonte uma glória efêmera, seguida pela arrogância que o levou a tentar alcançar o Olimpo — um ato que resultou em sua queda e isolamento, após Zeus enviar uma vespa para picar Pegasus.

Na quimera institucional do Brasil de hoje, Alexandre de Moraes figura como juiz e como vítima. Concentrando a maior parte dos ataques bolsonaristas, visto como inimigo ainda durante o governo do ex-presidente, descobriu-se no curso da investigação da PF um plano para matá-lo, com participação ativa de um general da reserva.

O ordenamento penal brasileiro traz dois institutos para tratar os casos em que o julgador tem questionado sua capacidade de agir processualmente com distanciamento e imparcialidade: a suspeição e o impedimento.

O que parece pesar sobre a permanência de Moraes no julgamento dos atos antidemocráticos é o impedimento. Com rol taxativo, as hipóteses estão dispostas nos artigos 252 e 253 do Código de Processo Penal (CPP), estas não admitindo ampliação a partir de interpretações subjetivas. Mas parece claro, dado o que foi descoberto pela PF, que Moraes tem “ele próprio”, motivos suficientes para estar “diretamente interessado no feito” — inciso IV do art. 252 do CPP.

Tanto na doutrina quanto na jurisprudência, há um debate sobre a taxatividade das hipóteses de impedimento e suspeição previstas nos códigos. A doutrina defende a possibilidade de ampliar a aplicação dos artigos sobre suspeição e impedimento por meio da analogia e da interpretação extensiva. O artigo 3º do CPP, que permite a interpretação extensiva e aplicação analógica da lei processual penal, é citado como base para essa interpretação.

À margem dessa discussão, mas sem ignorá-la, um possível impedimento do ministro Moraes pode ser sustentada pela ideia de que os autores de um plano de assassinato contra ele não poderiam ser julgados com a imparcialidade necessária. Já a suspeição pode ser defendida a partir de critérios subjetivos, onde serão analisadas as relações de inimizade, no caso, e sua externalidade ao processo. Alexandre de Moraes seria um inimigo capital dos agora indicados? A resposta embora parece óbvia na atual conjuntura, não se aplica para determinar uma suspeição, uma vez que a inimizade não é recíproca, não há causa suficientemente lógica que faça com que o ministro do STF seja suspeito para julgar quem o coloca como inimigo.

Mas qual seria o peso para uma suspeição dos comentários ou posicionamentos públicos de um magistrado? Podem eles comprometer a imparcialidade, mesmo que não se enquadrem nas hipóteses previstas em lei? A Constituição de 1988 consagra o sistema acusatório, que por sua vez garante a imparcialidade do juiz, e tem o objetivo final de garantir a justiça e a equidade.

Pesa ainda sobre Alexandre de Moraes uma postura, mesmo que cultuada alheia à sua vontade, de “combatente do crime”, que pode levar a pré-julgamentos e à produção de provas ex officio, violando o sistema acusatório e a imparcialidade. A separação clara entre as funções de investigar e julgar é essencial para a construção de um sistema acusatório genuíno.
Atos antidemocráticos em 8 de janeiro
Atos antidemocráticos em 8 de janeiro / Joedson Alves/Agência Brasil


Porém, o STF se mostra como a última instância em julgamentos dessa natureza, e há uma questão de definição dos sujeitos passivo e ativo atacados nos planos golpistas. Embora tenha se mostrado no inquérito que havia um plano para matar especificamente o ministro Moraes, a intenção dos golpistas seria um ataque mortal ao Supremo Tribunal Federal como um todo, e sua representação simbólica e prática na institucionalidade brasileira.

O STF age para remover o ferrão da vespa da suspeição

Em recente declaração pública, outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, disse que não faz sentido a discussão sobre a suspeição do colega Moares, uma vez que “seria muito fácil engendrar o impedimento do tribunal inteiro dizendo que todos eram alvos de ataques”. Mendes lembra que muitos ministros, e o próprio STF, também foram alvos de ataques.

O mesmo Código que diz sobre a suspeição e o impedimento, traz em seu artigo 256 a determinação de que “a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”. Parece ser com essa base legal que Gilmar Mendes constrói seu raciocínio, onde se rechaça a possibilidade do réu escolher seu julgador. No caso de um tribunal composto por 11 ministros, e sendo a última instância, seria possível facilmente, caso a tese de suspeição fosse acatada, inviabilizar toda corte.

O legislador diz que para a suspeição é preciso agir “de propósito” para motivá-la. Além disso, as relações hostis entre as figuras processuais necessariamente precisam atender a um caráter temporal, uma vez que a existência de relações conflituosas não poderiam ser anteriores à instauração do processo, podendo inviabilizar a aplicação do art. 256 (CPP).
Portanto, a intenção de causar nulidades e suspeição precisa ser explícita, não pode ser confundida com uma hostilidade que deriva de questões alheias ao julgamento. E também não poderiam antever a abertura de um processo penal, de forma preditiva.

O perigo da vespa


A democracia brasileira sofreu seu maior ataque desde a ditadura militar. A tentativa de subversão em 8 de janeiro de 2023 demonstrou o quão profundas eram as articulações antidemocráticas. Diante disso, discutir a suspeição ou impedimento de Moraes pode ser visto como uma tentativa de enfraquecer o sistema judicial em benefício de réus que buscaram aniquilar a ordem constitucional.

As características do ataque levaram a uma constatação óbvia: eles não poderiam acontecer alijados de contexto, tampouco desprovidos de financiamento e organização. Os planos golpistas começam a ser demonstrados em detalhes, trazidos pela investigação da PF, e revelam que havia orquestração de medidas e ações, e elas se estenderam antes e depois dos atentados de 8 de janeiro.

A discussão de suspeição ou impedimento de Alexandre de Moraes, embora válida juridicamente, pode trazer um entendimento de que os que cometeram tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito podem manejar a justiça para escolher seu julgador. E uma vez tendo sucesso na empreitada, fazer com que a Corte seja, de forma análoga, impedida de julgá-los.

Em situações de normalidade institucional, o STF poderia não ser competente para julgar o caso, e Moraes não deveria acumular funções investigativas e de julgamento. Porém, garantir o devido processo legal é fundamental, principalmente em momentos de crise.

Caso a vespa da suspeição seja afastada, e o impedimento não acatado pelo Supremo, Alexandre de Moraes subirá ao Olimpo da Constituição com um Pégasus inabalável, e tudo leva a crer que cumprirá seu dever com a determinação de um guerreiro vindo da mitologia.

Mas, um recorte temporal infinitamente menor da história brasileira em comparação com a mitologia grega, mostra que há um perigo real quando a justiça elege salvadores e guerreiros míticos. Em passado recente, um magistrado de primeira instância foi içado à essa categoria, e suas nulidades e parcialidades corroeram qualquer possibilidade de vitória legítima.

A vespa da suspeição ou do impedimento pode não ser capaz de derrubar um ministro da última instância, mas é preciso cautela quando a tragédia sobrevoa o Olimpo.







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Golpismo, Tiu França e planos de assassinatos: o ódio que acende os rastilhos
20/11/2024 | 04h37

Edmundo Siqueira


Era abril de 2016. O Brasil vivia uma turbulência política que culminaria no impeachment da presidente. Uma operação da polícia federal havia revelado um extenso esquema de corrupção que levava o país a ver políticos tradicionais serem presos e os subterrâneos do poder ficarem expostos.

O que poderia ser um processo de moralização da política se transformou em um espetáculo midiático, alimentado diariamente, com procuradores e juízes arvorados a salvadores da pátria corrompendo o devido processo legal. E o que poderia ser a queda de uma presidente impopular que produziu uma crise econômica gigantesca, se transformou em um julgamento parlamentar burlesco.

Entre os deputados mais grotescos que se manifestaram, um se destacava: Jair Messias Bolsonaro. Entre placas de “Tchau, querida!” e faixas verdes e amarelas, Bolsonaro dedicou o seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, ex-comandante do DOI-Codi — um dos maiores centros de repressão durante a ditadura militar — morto em 2015. Se não bastasse o absurdo de exaltar um torturador, o então deputado Jair complementou dizendo que ele seria o “pavor de Dilma Rousseff”, a mesma mulher que estava sendo julgada na ocasião.

No plenário da Câmara dos Deputados, aos olhos de todo país, em um julgamento acompanhado como uma novela ou um campeonato de futebol, um deputado homenageia um torturador que atuava em nome da odiosa ditadura brasileira, e de forma sádica fez questão de fazer com que uma mulher julgada lembrasse os atos de extrema violência sofridos.

Tanques de guerra em Brasília - golpes militares se repetem na história do Brasil.
Tanques de guerra em Brasília - golpes militares se repetem na história do Brasil. / Arquivo Nacional
O Brasil não julgou os torturadores e os líderes da ditadura. Brilhante Ustra foi um dos poucos a receber julgamento, sendo o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos. O golpe que levou o país ao regime ditatorial foi parcialmente esquecido, e nessa condição permitiu que a história, como elemento vivo e político que é, fosse ressignificada pela visão dos ditadores e torturadores.
Tiu França e o contexto

Por óbvio, o ódio na sociedade brasileira não começou com a lembrança criminosa de Ustra feita por Bolsonaro. Estamos entre os países que mais receberam escravizados da diáspora africana e entre os últimos a abolir a escravidão. Nossa história é repleta de golpes de Estado, e mantivemos uma desigualdade pornográfica, uma das maiores do mundo, e uma estrutura social violenta, autoritária, machista e preconceituosa.

Porém, não havia incitações de ódio e incentivo à toda sorte de ruptura institucional como experimentamos desde a operação Lava Jato. Criou-se no Brasil uma cultura, um ambiente que favorece que padrões de comportamento agressivos e de ressentimento se repitam em certos grupos, e se reproduzam ao ponto de se transformar em um movimento de massa, ou algo definidor de identidades.
 
Investigações no local do atentado a bomba realizado na Praça dos Três Poderes por Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’.
Investigações no local do atentado a bomba realizado na Praça dos Três Poderes por Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’. / Agência Brasil - EBC


Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’, como era conhecido, não se radicalizou a ponto de se transformar em um homem-bomba alijado de contexto social e político. Não haveria um atentado como o que ocorreu em Brasília no último dia 13 se não houvesse condições pregressas. O ódio acendeu os rastilhos das bombas.

No último domingo, a casa onde morava Tiu França foi incendiada, em Rio do Sul, Santa Catarina, com sua ex-esposa no interior da residência, que encontra-se em estado grave. Uma das hipóteses investigadas é de que a própria ex-mulher do autor do atentado tenha provocado o incêndio.

É preciso dar às coisas os nomes que elas têm.
Quando há estímulos públicos para que as pessoas se exponham a um vírus letal e são tomadas decisões que venham a postergar e dificultar o acesso à vacinação, trata-se de necropolítica (política da morte). Quando alguém atuando na posição de liderança carismática de um movimento de massa, como Bolsonaro, age sistematicamente para questionar os poderes constituídos e propondo a eliminação de adversários políticos, esse alguém é fascista.
Os ‘ismos’ em seus tempos

As esquerdas brasileiras caíram na esparrela de vulgarizar conceitos e palavras fundamentais para entendermos o momento atual. O fascismo foi retirado de contexto e usado como adjetivo para gente como Fernando Henrique e Geraldo Alckmin em tempos da polarização PT x PSDB. Eles e outros democratas convictos eram taxados de autoritários e golpistas por ter pensamentos diferentes em relação à economia.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade - 1964
Marcha da Família com Deus pela Liberdade - 1964 / Arquivo Nacional
Há posições acadêmicas que procuram estacionar o fascismo em seu
tempo histórico, assim impedindo que tenha reproduções em outros contextos fáticos. Porém figuras como Trump e Bolsonaro personificam modos de fazer política que guardam semelhanças gritantes com o fascismo, inclusive no uso de expressões — na Alemanha de Adolf Hitler, um dos lemas mais repetidos era “Deutschland über alles”, em bom português: “Alemanha acima de tudo”.

Como no fascismo, a ideia construída na extrema-direita atual também acredita em uma “maioria nacional única”, que é personificada no homem, branco, heterossexual, de classe média urbana. É preciso, assim como nos fascismos, o culto à masculinidade, a negação do feminino e a aversão a minorias como negros e LGBTs.

Cultuar figuras como Brilhante Ustra é algo aderente a esse conjunto de ideias. O que pode parecer asqueroso para muitas pessoas, denota força e coragem para o grupo já iniciado no movimento de inspiração fascista. A ditadura e a tortura passam a ser instrumentos necessários para eliminar inimigos, mesmo que imaginários.

O plano para matar

Uma das características da extrema-direita brasileira é a participação das Forças Armadas. Diferente de outros países, como os EUA por exemplo, o braço armado do Brasil não se sente incomodado em participar da vida política. Pelo contrário: são instados como garantidores, ou como sendo a última alternativa para “manter a ordem”.

Basta olharmos para a construção política do país, desde o início da República, para percebermos que há uma significativa ala golpista nas Forças Armadas. Os militares assumiram a condição de governo na gestão do ex-presidente Bolsonaro, ocupando diversos cargos, inclusive do primeiro escalão.
 
Manifestantes golpistas protestam contra tentativa de desmonte de acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília -
Manifestantes golpistas protestam contra tentativa de desmonte de acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília - / Gabriela Biló - 29.dez.2022/Folhapress


O golpismo militar aliado do bolsonarismo radical ganhou contornos ainda mais inaceitáveis. Menos de uma semana do atentado em Brasília, uma investigação da Polícia Federal descobriu que cinco pessoas (quatro militares e um policial federal) conversavam em 2022 em um aplicativo de mensagens sobre um plano para matar o então presidente eleito, Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Para matar o presidente, segundo documento juntado aos autos pela PF, seria utilizado “envenenamento ou uso de [produtos] químicos”. No caso de Moraes, o grupo planejava “o uso de artefato explosivo”.

Pela primeira vez na história do Brasil, um general (Mário Fernandes, general da reserva e ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro) foi preso por conspirar contra o país.

Os rastilhos

A Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada de Bolsonaro ao poder, a condução da pandemia, o 8 de janeiro, o 13 de novembro e a descoberta do plano dos militares para eliminar a cúpula do poder no Brasil são explosivos detonados pelo ódio.

A ascensão da extrema-direita não é uma exclusividade brasileira, faz parte de nosso Zeitgeist (espírito do tempo), e tem origem por diversos fatores, com variáveis diferentes a depender do país, mas é possível traçar no Brasil uma linha do tempo do ódio, um encadeamento de fatos que possibilitaram a demonização da política e a cisão da sociedade.

Esse estado de coisas onde homens-bomba são criados e planos de assassinato são iniciados por quem perdeu as eleições, não é possível existir sem o ódio e o ressentimento. Fatos isolados como a homenagem ao coronel torturador Brilhante Ustra não explicam como chegamos até aqui. Mas a normalização sucessiva dos absurdos, certamente permitiu.
 
Plínio Salgado, ao centro, líder da AIB - Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista.
Plínio Salgado, ao centro, líder da AIB - Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista. / Reprodução

Na mesma votação em que Bolsonaro homenagiou Ustra, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse, quase em profecia: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação”. A palavra “misericórdia” deriva de miseratio (miséria) e cordis (coração). Literalmente, significa “coração que se debruça sobre a miséria humana”.

Que possamos sair da condição de miséria que a banalidade do mal criou; novamente.
 
 
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Trump, Kamala e um casamento em risco no Cinturão da Ferrugem
03/11/2024 | 12h12

Em uma matéria feita pelo editor de assuntos internacionais da rede britânica Sky News, Dominic Waghorn, publicada nesta sexta-feira (1), um casal de americanos foi entrevistado sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos, que acontecem na próxima terça-feira (5). Com seus votos já decididos, marido e mulher discordam frontalmente sobre os candidatos.

Don Young, 87 anos, é um ex-operário de uma das gigantescas siderúrgicas da Pensilvânia. Na entrevista, ele afirmou que a campanha de Donald Trump “literalmente reflete a de Adolf Hitler”. Já sua esposa, Barbara Young, é uma ativista pró-Trump, e, vestindo um boné de campanha de seu candidato, disse lamentar ouvir isso do marido.

A Pensilvânia faz parte do chamado "cinturão da ferrugem", um grupo de estados do nordeste e do meio-oeste dos Estados Unidos que também inclui Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa e Wisconsin. O cinturão reúne alguns estados decisivos para as eleições americanas — os chamados swing states — justamente pela oscilação de preferência entre democratas e republicanos.
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA / infográfico de O Globo


Por exemplo, esses estados foram decisivos para a vitória de Barack Obama, do Partido Democrata, em 2008 e 2012. Já em 2016, o republicano Donald Trump conquistou todos os delegados da região, com exceção de Minnesota.

O casal Don e Barbara é representativo da divisão ideológica dessa região dos EUA. Mais que isso, reflete como o cidadão votante de lá vê o mundo, com quais lentes ideológicas interpreta a realidade e, consequentemente, as opções eleitorais para a presidência. São estados divididos, onde tanto candidatos democratas quanto republicanos têm chance, dependendo das propostas e convicções de cada eleição.

Estados como o Texas, por exemplo, são redutos históricos dos republicanos, com forte viés conservador. Eles contrastam com os estados-pêndulos, pois geralmente podem ser previstos com maior certeza. Assim, o partido conta com esses delegados no resultado final — ou com sua ausência.

Contudo, isso não é uma certeza absoluta: o próprio Texas começa a mostrar sinais de mudança de tendência, e uma vitória democrata, embora improvável, não é impossível. O estado ainda é considerado "sólido", ou seja, historicamente previsível. Hoje, há 139 delegados que representam estados sólidos do lado democrata, contra 94 do lado republicano, de um total de 538 em disputa.

Os sete estados-pêndulos somam 93 delegados. O número mágico para conquistar a Casa Branca é 270, representando a maioria simples. Do lado democrata, Kamala Harris conta com o apoio de 226 delegados, enquanto Trump tem 219. A possibilidade real de vitória, portanto, recai sobre os 93 delegados dos estados pendulares. Nos EUA, o candidato que vencer no voto popular em um estado leva todos os seus delegados, seja por 1 ou por 1 milhão de votos. No cômputo final, é possível perder no voto direto e mesmo assim vencer a eleição, pois o número de delegados é o que define o presidente.


Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos.
Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos. / Reprodução


O trumpismo no Cinturão
A posição externada por Don Young na entrevista é uma exceção que confirma a regra. Em geral, o homem que vive no Cinturão da Ferrugem é alguém que perdeu seu lugar no mundo. Os empregos nas fábricas permitiam que esses homens fossem os provedores da família, que pudessem comprar uma casa, um carro e fazer churrascos aos fins de semana.

Essa visão do papel masculino numa sociedade de estrutura patriarcal sustenta o público conservador, que sente que seu espaço no mundo está se fechando. A figura de Trump, implícita e explicitamente, carrega a promessa de um retorno a esses valores e de uma recuperação desses empregos.

Além dos saudosistas que viveram tempos mais prósperos, as novas gerações também sentem a quebra de um antigo "acordo" geracional da sociedade americana: de que sua vida seria melhor que a de seus pais. A retomada desse acordo é encarnada no ideal trumpista.

Barbara Young, por exemplo, afirmou que Trump lembra seu pai, a quem descreveu como "forte, rigoroso e cumpridor de sua palavra". Isso reflete como os ideais do candidato republicano atraem eleitores de diferentes gêneros e gerações que viveram em uma lógica familiar e econômica cada vez mais difícil de manter.

Isso ajuda a explicar por que o sucesso econômico de um governo nem sempre é determinante na escolha do eleitor. Embora a economia americana esteja relativamente estável, o empate nas pesquisas entre Kamala e Trump mostra que a disputa é emocional e identitária.

O fascismo repaginado nos EUA e no Brasil
Ser conservador não é sinônimo de ser reacionário, mas a ideia de um passado idealizado é poderosa e mobilizadora. No Brasil, Bolsonaro traz uma visão semelhante, com adaptações naturais às particularidades do país.

O militarismo é uma marca do bolsonarismo, que vê as forças armadas como garantidoras da “ordem” — uma perspectiva fortalecida pela Constituição de 1988. Isso é diferente dos EUA, onde os militares não atuam politicamente e são mobilizados para a defesa contra ameaças externas.
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro / Reprodução/Folha de S.Paulo


Na entrevista, Don Young afirmou já ter visto muitos ditadores na história e que Trump se encaixa nesse perfil. Frequentemente, o republicano precisa refutar acusações de nazismo, o que sugere algumas similaridades aparentes.

O conceito de fascismo, embora específico de um período histórico, vem sendo repensado diante de líderes como Trump, Bolsonaro, Orbán, Putin e Netanyahu. Discursos de ódio, ataques a minorias, eliminação de adversários e negação da ciência e da intelectualidade são práticas comuns em suas plataformas.

Uma possível vitória de Donald Trump pode fortalecer e dar continuidade a esse ideal de extrema-direita que vem crescendo globalmente. A escolha entre Trump e Kamala pertence aos americanos, mas suas repercussões atingem o mundo todo, dado o poder dos EUA.

Na próxima terça-feira, os americanos decidirão entre dois candidatos com visões de mundo profundamente distintas, que definirão o papel do país em um mundo em tensão, como poucas vezes na história. No intrincado sistema eleitoral americano, o resultado final certamente não será conhecido no mesmo dia e deverá ser apertado.

Can your marriage survive a Donald Trump win (seu casamento sobreviverá à vitória de Donald Trump)?”, pergunta o título da matéria da Sky News. Mais que um casamento no Cinturão da Ferrugem, é preciso perguntar se o mundo, como o conhecemos, sobreviverá.

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Kassab é o centrista fisiológico que o Brasil criou contra a extrema-direita
13/10/2024 | 01h33
Arte digital, criada  por IA.
Arte digital, criada por IA. / Edmundo Siqueira


A preço de hoje, Lula e Tarcísio de Freitas são os nomes mais cotados para 2026. Existem muitos outros possíveis presidenciáveis, mas entre coachs e prefeitos de capital bem votados em primeiro turno, Lula e Tarcísio personificam duas grandes correntes no Brasil, algo em torno de 20-30% do eleitorado cada.

Tarcísio consegue vender uma imagem de moderado, mesmo apoiado por Bolsonaro e o reverenciar como mito. E caso consiga manter duas situações bastante críveis — a vitória de Ricardo Nunes para a prefeitura de São Paulo e a inelegibilidade de Bolsonaro — se cacifa para 2026 como o favorito do centrão, da Faria Lima e de boa parte da classe média.

Gilberto Kassab, presidente do PSD, vem sendo vendido como o “homem do jogo”, o grande vencedor das eleições municipais. Dá para entender: seu partido abocanhou 886 prefeituras. Porém, não se trata apenas da habilidade política de Kassab. Sem um Congresso com um poder gigante sobre o orçamento público federal não seria possível eleger prefeitos centristas fisiológicos com tanta facilidade.

Kassab mostrou ser o mais habilidoso em entender esse jogo, e com uma posição de neutralidade de ocasião e com a liberdade ideológica de quem está olhando de cima do muro, ele pode ser um instrumento poderoso nas mãos de quem estiver melhor colocado em 2026. Ou de quem pagar mais.

Como tudo mais na vida, há sempre lados positivos, mesmo quando servem para conter desgraças. Talvez um centro fisiológico tipicamente brasileiro seja a única força capaz de conter o avanço da extrema-direita. Por óbvio, não é a força ideal para políticas de interesse público, ou mesmo para uma democracia saudável, mas é o que o mundo real mostra.

Gilberto Kassab, presidente do PSD.
Gilberto Kassab, presidente do PSD. / Ed Alves/CB/D.A Press
A postura fisiológica de Kassab é justamente a mesma da mão que rege a batuta da orquestra mais poderosa no Congresso Nacional. E é justamente a que deu o tom nas eleições municipais. Por falar em centrão, o natural enfraquecimento do presidente da Câmara, Arthur Lira, que não pode se reeleger em 2025, abre mais um caminho para Kassab ser o maestro principal das eleições presidenciais de 2026.


Lula, a preço de hoje, é o favorito. Reconhecido pelos adversários como tal. E tem uma boa relação com Kassab. Caso a economia não desande, e o aparente voo de galinha seja mais duradouro que o previsto, a tendência é que Lula chegue muito forte em 2026.

“Ah, então se Lula for eleito, está resolvido e não ficaremos nas mãos do centrão”. “Ah, se Tarcísio se fortalecer, iremos moralizar o país!”; o que parece é que a orquestra continuará a tocar mesmo se o Titanic estiver afundando.
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Ao menos uma história romântica no PT campista
13/10/2024 | 12h14
Arte digital crida com IA
Arte digital crida com IA / Edmundo Siqueira

O amor da deputada Carla Machado foi uma mentira que a vaidade do PT de Campos quis acreditar. Ela não poderia ser candidata à prefeita de Campos por uma questão jurídica, e a proximidade dela com o também deputado e presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar, denunciava que haveria uma aliança.

O PT de Campos acertou no candidato, porém deveria — mesmo agindo em “poesia de cego” ou em um “amor inventado” — ter apostado no professor Jefferson desde o início. Mas decidiu, em um corte lento e profundo, o deixar como segunda opção.

Eleger alguém do PT em uma cidade como Campos não é tarefa simples. Seja prefeito ou vereador. Exigiria desconstruir uma rejeição enorme, ou pelo menos atrair a maioria do eleitorado que se identifica com o campo progressista na cidade. E pior: assim como em outros locais, as esquerdas são divididas, e os liberais, sociais democratas e liberais sociais não optam por votar no PT automaticamente; é uma escolha que requer cálculo político do eleitor desse campo.

A verdade é que o PT não conseguiu cumprir nenhum dos objetivos que parecia disposto nesta eleição. Não elegeu Jefferson, sequer conseguiu o número de votos esperado e não elegeu nenhum vereador. Existem muitas explicações, mas para uma enormidade de eleitores campistas, ver Lula no material de campanha dos candidatos locais não era “mais tão bacana quanto a semana passada”.

Mas, apesar da rejeição sabida, era Lula que aparecia na campanha petista. Pensar que o campista que votou em Lula na última eleição presidencial iria votar para prefeito e vereador, apertando o 13 novamente, foi mais uma mentira que a vaidade do PT quis.

Quando a eleição acaba, a gente pode pensar que ela nunca existiu. Mas há um trabalho necessário a ser feito. Campos precisa se reencontrar com as esquerdas e com a direita democrática (ou centro-direita). Os anos Bolsonaro criaram um campo de extrema-direita na cidade que não é saudável à nossa já combalida democracia.

A questão aqui não é culpar o PT, apontar erros gratuitamente ou mesmo ser engenheiro de obra pronta, como se diz. A questão é reconhecer que estaremos por mais quatro anos sem representação progressista em Campos. É claro que houve compra de votos e derrama de dinheiro. Uma conta de padaria rápida prova isso com a quantidade de bandeiras nas ruas. E é claro que pode-se olhar o copo meio cheio. O PT ampliou o número de votos comparado à última eleição. Mas o resultado foi insatisfatório; não se elegeu ninguém do campo progressista.

Muito pode ser feito sem mandato, mas uma representação formal, na Câmara de Vereadores, tem o poder de interferir em políticas públicas, formar maior consciência política, e dar pluralidade representativa. Ocupar espaços de poder é fundamental.

Mas ficou “tudo fora do lugar; café sem açúcar, dança sem par”. Mas as esquerdas podiam “ao menos contar uma história romântica” nesse interregno até 2028, passando por 2026. E uma um pouco mais pragmática nos anos decisivos.
 
*
O Nosso Amor a Gente Inventa
Cazuza


O teu amor é uma mentira
Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver

Não pode ver que no meu mundo
Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa

Te ver não é mais tão bacana
Quanto a semana passada
Você nem arrumou a cama
Parece que fugiu de casa

Mas ficou tudo fora do lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

Mas ficou tudo fora do lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu

O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa
 
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A sociedade aberta, seus inimigos e os debates intolerantes
19/09/2024 | 08h54
Os algoritmos, a liberade e a tolerância
Os algoritmos, a liberade e a tolerância / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Existem dois conceitos fundamentais quando pensamos em uma democracia liberal: liberdade e tolerância. E até mesmo por seus papéis fundacionais em um sistema repleto de freios e contrapesos, e com a necessidade perene de limitação de poder mesmo quando exercido pelo Estado (este limitado pela Constituição), são conceitos complexos e por vezes contraditórios.

Como a garantia de liberdade, que não pode assumir um caráter absoluto, devendo ser limitada e relativizada quando fere outros direitos fundamentais. Em uma democracia liberal deveria parecer claro que o limite da liberdade é a lei. Portanto, quando o direito de exercer a liberdade fere o ordenamento posto e pactuado coletivamente, essa garantia perde seu objeto; seu preceito.

Pode parecer uma contradição aparente, mas limitar a liberdade individual é papel de uma democracia liberal, justamente para garantir que haja convivência pacífica em âmbito coletivo. O direito de ir e vir, por exemplo, não pode ser exercido plenamente quando há uma situação extrema ou calamidade, justamente para proteger o indivíduo quando este quer assumir uma conduta que cause riscos para si e para seus conviventes. Limitações de direitos também falam sobre proteção.

Quando caminhamos em terrenos políticos, podemos perceber que a liberdade é usada como elemento central de discursos que buscam radicalidade e ruptura; travestidos de defensores da liberdade, subvertem seu real sentido. E por vezes conseguem convencer uma quantidade de pessoas suficiente para criar um movimento significativo socialmente, e é nesse ponto que as democracias liberais passam a ter um problema para resolver.
 
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas?
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas? / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Limitar ou ampliar?

A primeira reação dos democratas talvez seja limitar a presença desses transgressores libertários no debate público, bloqueando seus perfis nos ambientes digitais, impedindo que compareçam a debates televisionados ou mesmo dificultando seu acesso a partidos políticos ou candidaturas avulsas. A premissa é de que a voz desses indivíduos seja calada, impedindo que convençam outros de suas convicções deturpadas.

Mas como exercer esse controle de forma equilibrada? O direito, como ciência social, estabelece a intenção, o dolo, como um elemento central para o julgamento de crimes. A mesma conduta pode ter interpretações e punições diferentes a depender da intenção. Para se formar o dolo, o agente causador do ato ilícito precisa ter conhecimento da ilegalidade, vontade de agir e indiferença perante o resultado danoso.

Decisões judiciais que visam impedir que agentes políticos — investidos ou não em mandatos — atuem livremente para descumprir leis de forma dolosa, mesmo quando feito em ambientes virtuais, atendem à premissa da proteção do modo de vida da sociedade, do espírito das leis e da Constituição. Portanto, alguém que possui o dolo evidente de quebrar as vigas de sustentação da democracia precisa ser combatido, e calado quando o resultado danoso de sua conduta estiver em suas palavras.

Porém, mesmo havendo dolo no uso de liberdades individuais fundamentais como a livre expressão, é preciso que seu combate seja feito em bases razoáveis, e temporárias. Não se pode calar alguém na sociedade de forma indiscriminada, tampouco por tempo indeterminado. Caso contrário, estaremos supondo que aquele agente estará sempre cometendo ilegalidade em suas opiniões, e agiremos em censurá-lo previamente.

Karl Popper
Karl Popper / Reprodução
A tolerância e o debate público


O segundo conceito chave em uma democracia liberal, a tolerância, dialoga essencialmente com a liberdade de expressão nos tempos atuais. Produzimos a maior ferramenta de comunicação humana já vista, a mais global e a mais rápida que já existiu.

A internet não apenas possibilitou essa comunicação como retirou do processo entre emissor e receptor qualquer tipo de mediação ou filtro. Qualquer pessoa pode ser um produtor ou emissor de conteúdo e ele é distribuído para outrem sem passar por qualquer crivo de qualidade ou de senso de credibilidade.

A internet produziu um cenário libertário, mas concentrou em poucos controladores o poder sobre os meios em que as mensagens são produzidas. E criou os algoritmos para direcionar de forma automatizada as predileções e os ódios.

A questão é que “o meio é a mensagem”, como ensinou o filósofo canadense Marshall McLuhan. A forma como recebemos a informação é tão significativa quanto o conteúdo que ela transmite. Esse “meio”, apesar de aumentar significativamente a capacidade de comunicação entre os indivíduos, produziu paradoxalmente um enorme afastamento ideológico, social e afetivo.

Outro filósofo, contemporâneo de McLuhan, mas nascido em Londres, Karl Popper, ganhou notoriedade mundial ao descrever outro paradoxo: o da tolerância. Esse conceito é descrito por Popper em uma nota de rodapé em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, e sua essência está na primeira frase: “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”.

“Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, continua, na mesma nota de rodapé.

O que Karl Popper está dizendo é que as democracias liberais têm o dever de suprimir as tentativas intolerantes, e mesmo que “pela força”, pelo poder coercitivo do Estado, impedir que cresça na sociedade um sentimento de intolerância, de ódio ou de incapacidade de convívio.
Caso optamos por permitir, estaremos dando passos temporais largos para um passado incivilizado, e portanto destruindo o que chamamos de sistema democrático. Portanto, o debate público não pode acontecer à margem da lei, e jamais em bases intolerantes.

Se não defendermos a tolerância com firmeza, permitiremos que a liberdade, ao invés de um direito, se torne uma arma nas mãos de seus maiores inimigos.

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O avanço pedagógico do mar de Atafona e da decadência campista
14/09/2024 | 07h59
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas.
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas. / Felipe Fittipaldi - National Geographic
 
No início do século passado, ali pelos anos 1920, Campos experimentava um apogeu sucroalcooleiro. Quase três dezenas de usinas operavam no município. Abadia, Barcelos, Caconda, Cambahyba, Outeiro, Sapucaia…eram nomes do cotidiano de Campos, tanto nas áreas rurais como no centro urbano. O açúcar movia a cidade.

Havia diversas cadeias produtivas que as usinas movimentavam: comércio, mercado imobiliário, agronegócio, serviços e até arte e cultura. Elegantes cafés — como o emblemático Café High Life, na 7 de setembro —, teatros — sendo o Trianon como o mais importante —, restaurantes, hotéis, livrarias e o novo prédio de inspiração francesa do Mercado Municipal são pontos de convivência nesse período.

Campos se modernizava, e tentava construir uma elite culta, que se espelhava no Rio de Janeiro, que por sua vez ansiava o modo de vida europeu. Não por acaso, essa elite campista dava vida ao centro da cidade e estruturava a convivência urbana. Mas também, com consequências até hoje, sem se preocupar muito com a desigualdade que vinha a reboque.

Existe uma praia campista: Farol de São Thomé. Contudo, a distância do centro desmotivou a maioria das famílias que buscavam uma casa de veraneio que proporcionasse a ida e vinda para a cidade de modo constante. Isso era possível nas praias do município vizinho, São João da Barra, o que levou a até então bucólica e mágica praia de Atafona, onde o rio encontra o mar, ser um dos principais destinos dos campistas mais abastados, que primeiro alugavam casas de pescadores e depois passaram a construir palacetes à beira mar.
 
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães.
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães. / Podcast Elas tem História


Esse movimento de ocupação das praias sanjoanenses se intensificou na segunda metade do século XX, quando houve uma ascensão econômica de profissionais liberais, comerciantes e comerciários e os proprietários e trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar de Campos. E foi preciso criar núcleos com características urbanas ao redor, com a oferta de serviços públicos como saneamento e asfalto. E também problemas de toda ordem.

Ações, omissões e o inevitável

Não é impossível fazer uma correlação do avanço do mar nesses locais com a ocupação territorial. O aumento da urbanização e da exploração dos recursos naturais — não só em Atafona mas em toda região, ao longo da bacia do Rio Paraíba do Sul — contribuíram para a diminuição da vazão do Paraíba, o aumento do assoreamento e a redução do aporte de sedimentos na foz em delta que tem Atafona como seu estuário.

Claro, não foi apenas isso que levou Atafona a uma situação de dramaticidade apontada pela mídia mundial. Começa a partir da década de 1950, quando o Rio Paraíba do Sul passou por grandes intervenções, como a transposição de suas águas para o Rio Guandu e, mais tarde, para o Sistema Cantareira (maior produtor de água da região metropolitana de São Paulo), com o objetivo de abastecer as metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra. / Rafael Duarte - site Mongabay

O equilíbrio da foz do Rio Paraíba foi rompido por diversos fatores. Não apenas ambientais, diga-se de passagem. Ações ou omissões políticas foram também determinantes. Talvez a ocupação de Atafona pelos campistas fosse inevitável, assim como desviar uma quantidade abissal de água do Paraíba para abastecer grandes e populosos centros urbanos. Porém, mesmo o inevitável pode ser feito mantendo-se um sistema equilibrado, em medidas mais justas, mantendo-se direitos e ordenando quais áreas poderiam ser construídas, tendo os impactos compensados, ao menos.

Muito poderia ter sido feito: controle do assoreamento, recuperação da vegetação ciliar, estruturas de contenção, recuperação da vegetação de dunas, implementação de zonas de recuo, entre outras providências que reduzissem os impactos e contivessem o avanço do mar. Mas pouco decidiu ser colocado em prática.

O avanço de um mar de decadência

É preciso buscar compreender os porquês dos abandonos e qual contexto histórico se impôs à Campos no último século. O açúcar que movia a cidade foi ganhando contornos de amargura administrativa. As usinas, uma a uma, foram desligando suas máquinas e interrompendo um ciclo econômico virtuoso.

A derrocada sucroalcooleira, assim como o avanço do mar em Atafona, não pode ser explicada por um único fator, ou mesmo fatores isolados. A mudança na política nacional de produção de álcool, a falta de matéria prima em Campos, problemas na administração das usinas que configuravam-se essencialmente como empresas familiares de pouca sofisticação organizacional, falta de diálogo entre os industriais, e outros tantos problemas que começaram a se acumular.

Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970.
Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970. / Instituto Federal Fluminense (IFF) - portal2015.iff.edu.br
A decadência das usinas avançou como um mar furioso sobre a região. O fato de se ter descoberto uma bacia de petróleo gigantesca em Campos, durante o mesmo período, poderia ter sido a redenção, mas o dinheiro “fácil” dos royalties e de participação especial acelerou a deterioração do parque industrial campista — como sintoma evidente da chamada de “doença holandesa”, ou “maldição dos recursos naturais”.

O avanço do mar de decadência também não foi contido e deixou ruínas na paisagem urbana de Campos e na praiana, em Atafona. São marcas de um passado recente, visíveis após o recuo de um oceano de desmandos.

Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023.
Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023. / Folha1
O período áureo produziu lideranças políticas, a derrocada também. Com espaços de poder esvaziados pela falta de dinheiro dos prefeitos ligados às usinas, novos grupos políticos surgiram, e não por acaso evidenciando essas mesmas ruínas. Palanques foram erguidos com os tijolos das usinas desativadas e dos teatros e cafés do Centro Histórico.


O mar, o rio, a cana, o açúcar, o álcool e o petróleo são implacáveis. Não coadunam com omissões e pecados políticos. Podem ser elementos de desenvolvimento ou de destruição, a depender do uso dado. As ruínas deixadas podem servir de exemplo, como um aviso do que acontece quando há desleixo e mudanças no equilíbrio entre os recursos.

Mas, o que se vê até agora em Campos, é que nos habituamos com a paisagem, chutando os destroços que ainda estão pelo caminho, sem aprender com eles. E apagando definitivamente o Café High Life e do Trianon. E os desastres, pouco a pouco, vão perdendo o valor pedagógico.
 
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A falta de fisionomia dos tempos atuais e a democracia nas cordas
28/07/2024 | 08h03
Imagem gerada por IA
Imagem gerada por IA / Edmundo Siqueira
A história da humanidade é inegavelmente marcada por disputas de poder. E de espaço. Espaços vazios, especialmente os formados por vácuos de domínio — onde pessoas ou grupos, até então dominantes, entram em processos de decadência —, são ocupados por aglomerações periféricas que orbitavam o que antes estava centralizado. Essas aglomerações periféricas podem estar plenamente organizadas no momento em que os vácuos de poder se formam, mas frequentemente não estão. Quando a segunda situação ocorre, rearranjos tornam-se necessários. E esses processos demandam tempo.

A introdução dessa temática é demasiadamente extensa justamente por necessitar que algumas premissas históricas sejam apresentadas. Dentre elas, podemos falar dos declínios nas centralidades de poder que levaram à Renascença e ao Iluminismo. Mas o objetivo aqui não é fazer um recorte temporal tão dilatado.

É necessário, porém, refletir sobre o período após a Segunda Guerra como essencial para estabelecer relações de causas e efeitos com a contemporaneidade. É após esse conflito global que muitas democracias liberais conseguem se restabelecer, sobretudo na Europa ocidental e nos EUA, e se tem o início de um forte processo de universalização de direitos e da globalização de economias e culturas.

As sociedades tornam-se interdependentes, não apenas em suas relações econômicas e de abastecimento de energia, mas também culturalmente. Modos de vida e formas de ver o mundo influenciam diretamente nas decisões de consumo, e afetam as percepções e a relação das pessoas com a informação. Em mercados globais, é interessante que grandes massas de pessoas, de países diferentes, tenham os mesmos objetos de desejo, consumam os mesmos produtos de lazer e se comportem de forma semelhante. E até tenham predileções políticas mais uniformes.

Essa é uma lógica que fez bastante sentido em um mundo de realidade industrial. Nações menos desenvolvidas ofereciam trabalhadores e mercado consumidor de produtos de baixo valor agregado, deixando a tecnologia e serviços especializados com o chamado “primeiro mundo”. Dividia-se o planeta em regiões comandadas por países concentradores de poder e dinheiro. Era preciso centralidade e globalização nas medidas certas, para um equilibrado sistema retroalimentar.
Linha de montagem, criou um sentimento de lealdade à companhia e de orgulho em trabalhar para a Ford
Linha de montagem, criou um sentimento de lealdade à companhia e de orgulho em trabalhar para a Ford / Wikimedia Commons


Embora se apresente como um modelo insustentável e romântico, percebido assim pelas classes dominantes desde seu nascedouro, ele era difundido como dogma; e estimulado. Para o leitor com mais de 30 anos, não deve ser difícil rememorar os livros didáticos que nomeavam o primeiro e o terceiro mundo, definindo a partir do equador o sul subdesenvolvido e o norte primeiro mundista.

Mas retirando-se as simplificações propositais, numa sociedade de consumo global, com papéis definidos e centros poderosos intocáveis, um operário de fábrica conseguia viver com dignidade, mesmo trabalhando mais de 10 horas diárias e morando em periferias com baixo investimento público.

Esse trabalhador teria condições de participar de um modelo de vida comum, teria uma casa financiada no banco, um carro popular e faria parte de um clube onde pudesse levar sua família aos finais de semana. O homem exercia o papel de provedor, a mulher cuidava do lar e as crianças poderiam apenas estudar. As grandes cidades acumulavam serviços como saúde, lazer e educação e mesmo separados por um zoneamento definido por renda, poderiam frequentar praticamente os mesmos espaços.

A chamada “classe média” — nomeada assim justamente por ser alargada e permitir direitos medianos — tende a conviver bem com brutais concentrações de renda e uma parcela crescente de pobres e miseráveis. Como dependem menos de serviços do Estado, percebem como assistencialismo as iniciativas sociais, a distribuição de renda e ações afirmativas. E tentam ao máximo se diferenciar dessa parcela empobrecida, principalmente no consumo.

As crises de identidades e os extremismos

Essas visões tradicionais, e os papéis estabelecidos por elas — como a do “homem provedor” e da classe média “diferenciada” —, começam a ser questionadas a partir das mudanças estruturais vindas da globalização e mais recentemente da transição tecnológica.

Em uma realidade industrial, de papéis definidos e fisionomia social visível, a percepção de injustiças e desigualdades concentrava-se em questões econômicas e geográficas, partindo-se de princípios de capacidade e oportunidade, e mesmo sendo uma percepção distorcida, o poder era aceito quando exercido por elites, vindas do dinheiro ou da consequência dele, como acesso à educação superior.

Acontece que as injustiças passam a ser também sentidas por quem ocupava lugares de privilégios. A “classe média” que tentava a todo custo se diferenciar dos mais pobres começou a perder espaço e diminuir consideravelmente suas perspectivas de uma realidade confortável. Boa parte dos empregos que conferiram boas condições de vida, ou deixaram de existir ou estão seriamente ameaçados. O mundo passou a necessitar com mais evidência e em mais áreas, de cérebros, de conhecimento e da capacidade de transformar estudos e tecnologia em algo consumível.

Soma-se a isso as transformações na matriz energética da maioria dos países e se tem um mundo em transição, e sem fisionomia clara. Onde estaremos daqui a cinco ou dez anos? Quais empregos permanecerão? Como iremos nos relacionar com nossos vizinhos e amigos? Como se dará a geopolítica? São perguntas que deixam sem resposta clara uma quantidade enorme de pessoas. E isso assusta.

Não é por acaso que vivemos uma era de extremismos e de nacionalismos. Incerteza e transição — e a falta de uma fisionomia social — provocam medo e tendem a realocar posições definidas, às vezes por séculos. E a tendência é que os grupos se fechem neles mesmos e se radicalizem. Alguns países conseguem fazer isso de forma ampla, e tendo identidade nacional mais definida, e quando vivenciando crises econômicas e sociais, levam a maior parte da população a ser convencida que os problemas vem de fora, dos imigrantes ou de “raças impuras”.
Grupo neonazista, pedindo a supremacia branca, nos EUA, em 2017.
Grupo neonazista, pedindo a supremacia branca, nos EUA, em 2017. / Twitter / http:/ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2017-08-14/supremacia-branca-eua-neonazismo.html
Em países mais dispersos, com realidades mais heterogêneas, inimigos internos são criados e os ódios nutridos são direcionados ao bode expiatório doméstico, favorecendo o binarismo político e sufocando o centro democrático.

Rousseau e Comte, com o Iluminismo e o Positivismo, respectivamente, trazem a ideia de que as sociedades constroem pactos civilizatórios, com contratos sociais que devem ser respeitados em suas evoluções. A democracia, como a conhecemos, foi construída a partir da promessa que esses pactos serão honrados, e que será buscado uma condição melhor de vida para todos.

Mas esse cenário entra em crise sistêmica justamente por promessas não cumpridas. Crises econômicas sucessivas, com efeitos globais e causas semelhantes, fizeram com que a social-democracia, o liberalismo e os centros políticos perdessem significativamente suas representatividades. A globalização teve efeitos não esperados, e conflitos regionais, como no Oriente Médio, produzem crises diplomáticas, de abastecimento e migratórias com impactos em todo o globo.
Fluxos migratórios - Século XXI
Fluxos migratórios - Século XXI / https:/pedromartins.comunidades.net/mobilidade-da-populacao


EUA, França, Inglaterra e Alemanha, como atores democráticos de papel central nessa realidade pós-guerra, comportaram-se como sociedades de evolução constante, que poderiam suprir seus concidadãos com um estado de bem-estar social cada vez mais aprimorado. Uma lógica positivista e evolucionista que não se sustenta na realidade, produtora de desigualdades locais e globais. E de conflitos armados que tentam preservar essa centralidade econômica e política.

Democracia nas cordas?

Diversos trabalhos acadêmicos e bestsellers tentam demonstrar como as democracias morrem e como as instituições podem ser corroídas “por dentro” ao ponto de não conseguirem servir aos freios e contrapesos democráticos. Porém a realidade de um tempo ainda sem fisionomia deixa as incertezas ainda mais evidentes, seja para determinar o fim da democracia liberal ou para garantir sua sobrevivência.

É certo que o sistema político e social que possibilitou o aperfeiçoamento das democracias liberais está em crise, e que tem se colocado “nas cordas” do ringue, sendo esmurrado. Sem conseguir proferir contra-ataques. Mas, experiências recentes na França e no Reino Unido, e os processos eleitorais nos EUA e na Venezuela, para citar alguns exemplos, poderão demonstrar que é possível cansar os golpeadores.

Mesmo saindo das “cordas”, a democracia não estará vencendo, e não estará certo que alguma fisionomia social esteja se formando a partir de movimentos pendulares. As transições ainda estarão em curso e as identidades em crise.

As disputas de poder contemporâneas e futuras determinarão quais espaços serão ocupados, como sempre foi a tônica das sociedades. O que se difere agora são as escalas e a velocidade. Medidas de grandeza determinantes nos próximos rounds.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com