
O quadro de natureza morta vai ficando mais visível, antes disforme pelos olhos lacrimejantes por acordar de pouco. Levanto a contragosto, me arrasto até o banheiro, passo um café forçado. Não ponho a mesa, levo apenas uma xícara esfumaçante e um biscoito desses de água e sal. Outros elementos da casa vão ficando mais nítidos na mesa de café; olho para as paredes e tento me alegrar, procuro sentimentos de antes, agora estáticos em porta retratos. Há na parede da sala outras obras de arte, e tento alguma profundidade em cores abstratas. Talvez fosse possível caso fossem pintadas à mão, mas a superficialidade atrás do vidro me deixa desencantado.
A casa que existia na minha memória era maior, mais movimentada e barulhenta. Havia sempre sons vindos da cozinha — vidros e louças se tocando; de água correndo também. Ouvia minha mãe reclamar dos cachorros, às vezes sozinha, outras me gritando para ajudar. A mim, ou ao meu irmão mais velho. A menina, do meio, ouvia e punha a mesa de vez em quando. Era uma família tradicional, com papéis definidos. O homem trabalhava, a mulher cuidava da casa e da prole. Igreja aos domingos. Assuntos proibidos. Estudo em dia, mesada para sair aos fins de semana.
Via meu pai, ainda vivo, lendo o jornal; papel físico, folhas amareladas, barulho e pigarro quando as páginas eram viradas. Isso acontecia mais aos domingos. Nos dias de semana saía cedo, despedia-se da mamãe enquanto ela lavava a louça. Não era um pai presente, mas sua ausência era sempre sentida. Principalmente por minha mãe e meu irmão, que sempre o procurava na arquibancada nos jogos de futebol e campeonatos de arte marcial. Minha irmã e eu estávamos mais envolvidos em experiências lúdicas; simulações de programas de TV ou salas de aula improvisadas no quintal.
Memórias que ficaram embaçadas ao ver meu filho entrar pela sala, sonolento, esfregando os olhos e sentando ao meu lado à mesa de café, ainda com apenas uma xícara. Esfrego seus cabelos e pergunto o que quer comer. Ele nega e mantém a cara de sono. Talvez o garoto tenha mais memórias com o avô que eu tenho. Com a idade, meu pai foi se transformando e os netos conseguiram aproveitá-lo com outra postura perante a vida — mais amorosa, mais dedicada à família e mais leve.
“Pai, o vovô sempre morou aqui?”, ele perguntou, também olhando para os porta-retratos. “Sempre. Gosta desta casa?”, continuo. A conversa que seguimos me mostrou que as crianças tinham apenas boas memórias da casa. Confirmou minha suspeita que percepções diferentes se dão sobre o mesmo local e contexto. Paredes e portas de madeira podem significar acolhimento ou abafamento, a depender da experiência. Barulhos na cozinha podem ser afetivos, ou prenúncios de choro abafado. Os cachorros latindo lembram brincadeiras no quintal do mesmo modo que podem recordar agitação por algum perigo iminente.
Estamos na mesma mesa que tomei café da manhã durante a infância e adolescência. Não voltava com frequência depois de adulto, talvez por algum bloqueio inconsciente. Mas sempre que teimava em contrariar as estratagemas da minha cabeça, gostava de estar ali. Meu pai invariavelmente também sentava-se à mesa nessas ocasiões. Talvez para ele eu ainda era o mesmo menino sonolento que vejo agora diante de mim. Talvez meu filho sempre será também, mesmo já homem feito. Gostava da conversa e pelas risadas mútuas ele também gostava. Algumas vezes me olhava com orgulho, em outras, reprovação. Política, motos e cavalos divergiam no gosto, mas sempre eram aprendizados irrevelados. Dinheiro e lembranças de família eram temas conflituosos, sempre. Evitávamos.
Meu pai faleceu há algumas horas. Minha mãe partiu antes dele, como sempre quis. Não sei se por pensar que não resistiria à saudade ou simplesmente por medo da solidão. Ele foi o único homem que ela se relacionou amorosamente. Mesmo que meu pai nunca tenha reconhecido, a partida dela o adoeceu; deprimiu. Quando o corpo demonstra fraqueza ou doenças, normalmente os pensamentos já foram comprometidos por angústias e dores repetidas.
O velório começará às onze. A casa já começa a transmitir outros barulhos. Outros cômodos começam a se abrir; familiares acordando, escovando os dentes e conversando baixo. Minha irmã dormiu no antigo quarto dela, eu quis dormir no quarto do papai. Meu irmão não veio, disse ter ficado preso em compromissos de trabalho. Sentimos sua falta. A casa estava cheia de gente. Apesar do pesar, parecia uma festa colorida, mas truncada. A falta de um dos filhos seria registrado no caderno de frustrações de meu pai — ele estaria anotando, mesmo enquanto plasma.
Já são quase dez e meia. Enquanto mudo a roupa no quarto, buscando algo de meu pai para vestir, o som do abrir das velhas portas do armário embutido dele me trazem lembranças dos bons momentos. Sorrio. Na cama, o celular acende. É uma mensagem de meu irmão: “estou indo”; respondo perguntando se queria que o esperasse em casa. Demonstro uma frieza de quem já sabia que ele não deixaria de estar presente. Digo que estamos felizes de voltar, todos, à antiga casa. “Não consigo, irmão”. Respeito. Lembranças diferentes de ambiências iguais.