Pesquisa da Uenf e Universidade americana vai ouvir campistas sobre patrimônio cultural
17/09/2025 | 20h59
Pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e da Fairfield University, dos Estados Unidos, lançaram uma pesquisa para avaliar o que a população de Campos dos Goytacazes sabe e pensa sobre o patrimônio cultural do município. O questionário, que leva cerca de 15 minutos para ser respondido, está disponível online e pode ser acessado por qualquer morador interessado.

O estudo é coordenado pelo professor Carlos E. de Rezende (Uenf) e pelo professor William F. Vásquez (Fairfield University). O objetivo é coletar informações que possam subsidiar a formulação de políticas públicas voltadas à preservação da memória cultural campista. A participação é voluntária e anônima.

A pesquisa chama atenção em um momento de fragilidade do patrimônio local. Espaços históricos como o Mercado Municipal, em condições insalubres, o Museu Olavo Cardoso, fechado, e o Solar dos Airizes, em ruínas, revelam a dificuldade do município em lidar com sua herança cultural. A iniciativa dos pesquisadores pode ajudar a medir o grau de engajamento da sociedade diante desse cenário.

As respostas são coletadas por meio da plataforma Qualtrics, que não exige informações pessoais, como nome ou e-mail, nem registra o endereço IP dos participantes (link aqui). O sistema é seguro e garante o anonimato dos dados, que poderão ser compartilhados em pesquisas acadêmicas futuras, sempre de forma confidencial.

Medir o conhecimento e o apego

A pesquisa servirá para um necessário exame de consciência coletiva do campista sobre seu patrimônio cultural. Além de medir o grau de conhecimento — e apego —, busca levantar dados que possam ajudar na formulação de políticas públicas voltadas para a preservação cultural.
 
Link para pesquisa abrirá a página inicial com as informações completas e termo de consentimento eletrônico. Basta seguir as páginas e responder os questionamentos propostos, podendo pular perguntas.
Link para pesquisa abrirá a página inicial com as informações completas e termo de consentimento eletrônico. Basta seguir as páginas e responder os questionamentos propostos, podendo pular perguntas. / Reprodução


Embora não haja qualquer benefício financeiro ou premiação ao participante, o ganho é coletivo: as respostas ajudarão a orientar ações e decisões que impactam a preservação de prédios, praças, tradições e símbolos culturais da cidade.

Afinal, qual é a real importância que a população atribui à sua própria história? Mais do que medir conhecimento, o estudo testa a nossa disposição de assumir responsabilidade sobre uma herança que resiste mais pela força do acaso do que pelo zelo público.


Serviço

O que é: Pesquisa sobre o patrimônio cultural de Campos dos Goytacazes
Quem realiza: Prof. Carlos E. de Rezende (Uenf) e Prof. William F. Vásquez (Fairfield University)
Tempo estimado: 15 minutos
Confidencialidade: Garantida pela plataforma Qualtrics
Link de acesso: pesquisa

Contato para dúvidas:
Prof. Carlos Rezende: crezende@uenf.br
Prof. William Vásquez: wvasquez@fairfield.edu

Comitê de Ética (Fairfield University): irb@fairfield.edu
Compartilhe
104 anos do Mercado Municipal: entre o descaso, memória e resistência à mudança
15/09/2025 | 20h10
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível.
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível. / Foto: Genilson Soares / Folha1


O Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes completa nesta segunda (15), 104 anos de existência (veja matéria da Folha1 aqui). Pelo menos esse que conhecemos hoje, ao lado do Parque Alberto Sampaio — a cidade já possuía outras praças de mercado antes da inauguração do atual, em 1921.

O Mercado que faz parte da paisagem campista, há mais de um século, nasceu em uma perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a “torre do relógio”), com forte inspiração europeia e servindo com símbolo de progresso e urbanização da cidade, no início dos anos 1920.

Mas o que era para se manter como um orgulho acabou se convertendo em um problema.

Problema que pouco tem relação com os permissionários da feira livre (boxes instalados na frente do mercado e abaixo de uma estrutura metálica), do camelódromo (boxes instalados na outra face do prédio, também abaixo de um galpão) e do próprio mercado, mas sim com estreita ligação com uma série de decisões equivocadas por parte do poder público.

O que era para ser símbolo de vitalidade urbana virou retrato de abandono e descaracterização. Embora seu interior ainda mantenha a alma — com cheiro, voz, caldo de cana e a sociabilidade popular —, o entorno e o próprio prédio histórico foram totalmente descaracterizados.
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia / Arquivo


A obra do camelódromo nunca deveria ter sido liberada naquele local, pois vai contra todas as recomendações das instituições de proteção ao patrimônio histórico. A estrutura metálica da feira e da peixaria, construída nos anos 1980 para ser provisória, esconde as potencialidades do Mercado e mantém os permissionários em condições inadequadas.

O que comemorar?

Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio.
Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio. / Foto: César Ferreira / PMCG
Ao transeunte que tenha passado hoje pelo Mercado e visto bolo e banda de música, pode ter ficado a impressão de que havia uma comemoração ali. Celebrar a longevidade de um centro comercial, com o valor afetivo daquele espaço, é necessário. Mas perceber que as condições dos feirantes é ruim e que o prédio está em estado de abandono é ainda mais.

Há quem diga que a construção de inspiração francesa, com sua torre do relógio, é patrimônio, e que a cidade não pode abrir mão dele. E de fato não pode — mas patrimônio se conserva e se deixa exposto, acessível, possível de contemplação e cumprindo um papel memorialístico.

Tudo o que não se percebe no Mercado: esmagado por duas estruturas estranhas, invisível e mal conservado.

Descaso que não se confunde com quem trabalha no local e luta com esforços diários para manter tudo o mais saudável e limpo possível. Gente que começa na madrugada a preparação para a venda de peixe, farinha, hortaliça, biscoitos, doces e outros tantos produtos que poderiam ser comercializados para turistas e campistas de forma muito mais confortável.

Soluções possíveis
Para um problema complexo, soluções complexas devem ser empreendidas. Não há caminho fácil ou resolução possível sem realocar pessoas, fazer intervenções através de obras e alterações logísticas, modificar a paisagem e ressignificar vivências e espaços. Porém, são ações necessárias e urgentes, uma vez que as omissões se arrastam por décadas.

Existe a proposta de construir um novo mercado (nova feira), moderno, higienizado, arejado, na Praça da República, atrás da rodoviária do centro, a Roberto Silveira. Local que está a menos de 300 metros da atual feira, e encontra-se subutilizado. Embora o projeto necessite de ajustes e maiores discussões, inclusive com os feirantes, é uma solução bastante crível e que a prefeitura já sinalizou interesse em realizar.

Mas, como tradição em Campos, aparece a resistência: uns falam em “matar a tradição”, outros em “descaracterizar o centro histórico”. Como se tradição fosse sinônimo de precariedade, como se memória tivesse que conviver obrigatoriamente um ambiente sem as adaptações necessárias para os tempos atuais.

Além disso, não se trata de demolir o antigo, mas de criar o novo. O atual mercado pode — e deve — ser preservado como espaço cultural, centro gastronômico e polo turístico. Pode e deve se integrar com o Parque Alberto Sampaio e com centros populares de comércio, desde que respeitem as especificidades do patrimônio histórico.
O novo mercado, por sua vez, deve ser construído para cumprir o papel de abastecimento, com dignidade e condições sanitárias adequadas. Mas em Campos, quase tudo vira disputa binária: ou se mantém o cadáver em pé ou se apaga a história. Enquanto isso, a cidade definha seu patrimônio e potencial no meio-termo, incapaz de se mover.

Aos 104 anos, o Mercado Municipal é mais testemunha de abandono do que motivo de orgulho. Talvez seja esse o retrato mais fiel de Campos: uma cidade que carrega o passado como peso, mas não consegue transformá-lo em futuro.
GoogleMaps / Edmundo Siqueira

Compartilhe
Paz de papel e apaziguamento: de Munique (1938) ao Supremo (2025)
02/09/2025 | 21h48
Em Munique, da esquerda para a direita: Benito Mussolini, Adolf Hitler, Edouard Daladier e Neville Chamberlain
Em Munique, da esquerda para a direita: Benito Mussolini, Adolf Hitler, Edouard Daladier e Neville Chamberlain / Reprodução


Não é incomum lermos ou nos depararmos com vídeos de analistas onde há uma defesa da “pacificação do país”. Compreensível, em uma quadra da história onde ódios são estimulados e a posição política de alguém define sua identidade — tempos de polarização afetiva, em resumo. Portanto, “pacificar” é bem-vindo.

Porém, há no conflito algo de democrático. É na democracia que ideias diferentes podem conviver e o direito de defender posições contramajoritárias pode ser exercido. Em regimes autoritários, isso não é possível. O conflito só é possível na ditadura quando há enfrentamento armado, quando o dissenso pretende ser resolvido pela força, onde não cabe discussão.

O ódio e a polarização afetiva — onde o outro é inimigo, quando não há convivência pacífica entre quem pensa diferente politicamente — são subversões do conflito. Nessas condições, o conflitante deve ser eliminado. Então, é possível afirmar que a ausência de conflito pressupõe que um lado impôs sua vontade, uma vez que sempre haverá interesses diversos na sociedade e em suas relações. Trazer a paz, portanto, não se trata apenas de apaziguamento — o conceito de “paz” precisa ser mais amplo, mais completo, sob pena de transformar a paz em medo.

Política do apaziguamento

No julgamento do ex-presidente Bolsonaro, que iniciou nesta terça-feira (2) no Supremo (veja matéria da Folha1 aqui), o ministro Alexandre de Moraes usou, novamente, como vem usando no curso do processo, a ideia da “política do apaziguamento”, citando  o erro histórico cometido pelas potências europeias durante a escalada expansionista de Adolf Hitler nos anos 1930.
 
Julgamento no Supremo Tribunal Federal
Julgamento no Supremo Tribunal Federal / Gustavo Moreno / STF

“A pacificação do país é um desejo de todos nós, mas depende do respeito à Constituição, da aplicação das leis e do fortalecimento das instituições, não havendo possibilidade de se confundir a saudável e necessária pacificação com a covardia do apaziguamento”, disse Moraes nesta terça.

O paralelo do ministro do Supremo traz consigo uma óbvia conotação política, e parece pretender comparar o bolsonarismo como um movimento extremista e violento, assim como foi o nazismo, e também subversivo da ordem vigente. Não leva em conta — ou pelo menos não as problematiza — as diferenças dos contextos históricos, e pior: antecipa seu voto, deixando claro que percebe os réus como indivíduos danosos à democracia.

Mas o uso político do julgador, e seu voto antecipado, não invalida o fato de que apaziguar por medo é um erro, seja em qualquer tempo histórico que se aplique.

Aprender ou repetir Chamberlain?
Em setembro de 1938, líderes europeus se reuniram em Munique diante da ameaça de Hitler de invadir a Tchecoslováquia. O premiê britânico Neville Chamberlain, ao lado do francês Édouard Daladier, acreditava estar evitando uma guerra ao conceder ao Reich o direito de anexar a região dos Sudetos. A cena é histórica: Chamberlain retorna a Londres brandindo um pedaço de papel, o acordo assinado com Hitler, e proclama à multidão ansiosa: “Peace for our time”. Paz para o nosso tempo.

Era, na verdade, a rendição antecipada. Menos de um ano depois, Hitler invadia a Polônia e mergulhava o mundo em sua guerra mais devastadora. A paz proclamada em Munique não passava de medo travestido de virtude; e o medo, quando governa decisões políticas, só fortalece os violentos.

O que Moraes sugere em seu voto é que não podemos repetir Munique em 2025. O bolsonarismo — guardadas todas as diferenças históricas — é um movimento que se alimenta da ideia de que a lei é um obstáculo a ser driblado, e não um limite civilizatório. O dilema, portanto, não é se devemos “pacificar” ou “condenar”, mas se estamos dispostos a pagar o preço da covardia em nome de uma paz que não existe. 

A democracia não se fortalece fechando os olhos para o golpismo — o que aliás se praticou no Brasil em relação aos militares de 1964. Não se trata de vingança, mas de limites. O apaziguamento de 1938 alimentou a fera que destruiria a Europa; o apaziguamento político de hoje pode alimentar a corrosão lenta de nossas instituições. O paralelo histórico, ainda que imperfeito, é pedagógico.

A questão, então, é simples: ou aprendemos com Chamberlain, ou repetimos Chamberlain.
Compartilhe
Entre utopias e telas: o que o Festival Goitacá projeta para Campos
30/08/2025 | 12h35
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Há cidades que guardam em seus subterrâneos memórias inteiras à espera de serem reativadas. Campos é uma delas. Não apenas em subterrâneos — com memórias dos povos originários e de pessoas escravizadas —, como em patrimônios erguidos e esquecidos em toda planície. Histórias que clamam pelo pertencimento de um povo que teima em negá-lo. Muitas dessas histórias, dariam filmes e são de “cinema”.

Durante o século XX, Campos teve quase setenta salas de cinema em funcionamento — entre ruas centrais e distritos rurais, uma verdadeira rede de telonas iluminando o interior do estado do Rio de Janeiro. O cinema, como ferramenta poderosa de arte e cultura, trazia imagens projetadas e era parte da vida comum dos fluminenses dessa região: a ida ao cinema era lazer, era ritual, encontro e respiração coletiva (veja matéria sobre o assunto, deste mesmo espaço, aqui).

Esse tempo ruiu. Das dezenas de salas, sobraram duas nos anos 1980. Depois, nenhuma. Capitólio fechado, Goytacá vendido a uma igreja evangélica. Ficaram apenas as lembranças de marquises acesas e do rumor da plateia antes da sessão. Ficou o eco do que poderia ter sido, e na movimentada Avenida 28 de Março, resiste apenas a fachada melancólica do antigo Cine São José.”
Darcy Ribeiro, que acreditava no poder das universidades para reinventar o destino do Brasil, sonhou para a Uenf, em Campos, uma Escola Brasileira de Cinema e Televisão. Escolheu o Solar do Colégio — joia arquitetônica, então em ruínas — para abrigar esse gesto inaugural. O projeto nunca saiu do papel. Mais uma utopia interrompida, mas que possibilitou o Arquivo Público Municipal, instalado no Solar e se constituindo como um importante equipamento cultural da cidade.

O recomeço pelo Festival
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Mas as cidades também sobrevivem de recomeços. E foi nesse espírito que o I Festival Internacional Goitacá de Cinema nasceu (veja matéria do Folha1, com números do Festival, aqui). A primeira edição, realizada neste agosto, trouxe não apenas filmes: trouxe seminários, encontros, e até um sonhado mercado audiovisual. Mais do que uma programação, trouxe uma pergunta essencial: pode uma cidade que perdeu suas salas reencontrar-se com a tela grande e suas boas consequências?

A atriz Fernanda Soares, campista e com trajetória  na TV Globo e no teatro, respondeu a essa pergunta no corpo da própria experiência. Ministrou a masterclass “O ator no mercado audiovisual” e, diante de jovens atores locais, reviu sua própria história:

A atriz Fernanda Soares.
A atriz Fernanda Soares. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra
“Foi especial demais. Me reconheci naqueles jovens, e passou um filme na minha cabeça de quando eu morava aqui, sonhando em viver de arte. Estar no Festival Goitacá em Campos me faz acreditar em como a educação tem um papel importante formativo, de criar talentos e fortalecer a cena cultural no interior, que também é viva, diversa e cheia de possibilidades.”


Havia, em sua fala, um reconhecimento profundo: o festival não é apenas vitrine, é formação. É esse gesto formativo que pode, talvez, ocupar simbolicamente o espaço vazio deixado pela escola de cinema de Darcy Ribeiro.

Fernanda enxergou também o caráter histórico da transformação:

“Ver Campos se tornar oficialmente uma rota cinematográfica mostra como a cidade pode registrar e valorizar sua história, ao mesmo tempo cria oportunidades reais para novos artistas, fortalecendo a identidade local e dando visibilidade a uma cena cultural nova, plural e potente.”
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação"
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação" / Reprodução / Instagram


Essa pluralidade, que Darcy chamaria de “força criativa do povo”, é a chave. Mas, como lembrou a atriz, não basta abrir a porta uma vez. É preciso continuidade:

“O Festival cria um elo forte com a futura escola de cinema da Uenf, e isso me enche de esperança. Mas, para que esse movimento não se repita, precisamos estimular a continuidade da produção cultural, de modo que nossas histórias alcancem públicos em todo o país.”

Se a voz de Fernanda recupera a memória dos sonhos interrompidos, a de Fernando Sousa, diretor do festival, projeta o futuro:

“O Festival Internacional Goitacá de Cinema nasce com a força e a grandeza da região Norte-Noroeste Fluminense. A gente teve uma noite de abertura uma programação extensa uma noite de encerramento linda, já apontando pro futuro do festival que na sua segunda edição homenageará também o campista ator campista Tonico Pereira (...) Esperamos que o que o festival se consolide como espaço de encontro de novas conexões e contribua pro desenvolvimento econômico da região norte Noroeste Fluminense, apontando assim para novas vocações e novas possibilidades de crescimento mais sustentável dialogando com a identidade com a imaginação e com a força criativa da população da região (...) Então a gente encerra muito feliz, com o dever cumprido, mas com a certeza de que há muito trabalho pela frente que vai precisar do poder público, em suas diferentes esferas, Municipal, Estadual e Federal, da iniciativa privada, de lideranças da sociedade civil e de toda a população de Campos.” 
A continuidade do sonho
 
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival.
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


O festival já anunciou sua segunda edição, com homenagem ao ator campista Tonico Pereira, com carreira consolidada na TV, teatro e cinema. A primeira edição, a atriz e cantora campista Zezé Motta foi celebrada duplamente: no palco do festival e no recebimento do título de Doutora Honoris Causa pela Uenf.

O gesto de continuidade do Festival Goitacá não é pequeno: em uma cidade onde a memória costuma ser abandonada, a continuidade é quase um ato político.

Em tempos de plataformas digitais e consumo solitário de imagens, o Festival devolveu a Campos algo mais valioso que a exibição de filmes: devolveu a experiência coletiva da sala escura. Rir junto, silenciar junto, reconhecer-se no vizinho que ocupa a cadeira ao lado.

O Festival projeta mais que imagens: projeta uma possibilidade de futuro. Glauber Rocha, lembrado por Darcy Ribeiro no célebre discurso em seu enterro, dizia que seu cinema era um grito, um berro, uma indignação convertida em arte. Darcy, por sua vez, acreditava que a educação era a utopia mais urgente.

O que o Festival Goitacá ensaia é a costura dessas duas forças: o cinema como espaço de consciência e a formação como ferramenta de transformação. Entre as salas que se perderam e as que podem renascer, entre a escola de cinema que nunca existiu e a que pode ainda existir, Campos se vê mais uma vez diante do espelho das telas.

E, se há algo que Glauber e Darcy nos ensinaram, é que a utopia só fracassa quando deixa de ser sonhada.
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival.
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
Compartilhe
Entre áudios e silêncios: justiça em meio ao ruído
24/08/2025 | 21h20
Foto: Gabriel Silva/Estadão


A quarta-feira, 16 de março de 2016, foi decisiva para o Brasil. As consequências políticas e sociais que advieram desse dia definiram muito das relações de poder que se encontram vigentes, ainda hoje, no país. No início da noite daquela histórica quarta, milhares de pessoas ocuparam a avenida Paulista, e se aglutinavam em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília.
As manifestações se replicaram pelo país, e ao menos 15 cidades registraram atos de rua significativos — tudo transmitido ao vivo pela TV e pelas redes sociais. Os gigantes patos amarelos foram inflados novamente na frente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assim como acontecera no domingo imediatamente anterior àquela quarta-feira.

Os atos de rua do domingo — marcadas simbolicamente em um dia 13 — foram considerados, até então, como os maiores já registradas no período democrático brasileiro, e inflamaram o país a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que cairia alguns meses depois. Na quarta-feira, o sentimento antipetista atingia seu auge. Noticiado à exaustão, um grampo vazado pelo então juiz Sérgio Moro era gasolina no fogo que já estava ateado. Ao telefone, Dilma avisa a Lula que o termo de posse para se tornar ministro estava a caminho, e que ele deveria usar apenas “em caso de necessidade”.

A conversa entre a então presidente do Brasil com o ex-presidente, que estava sendo acusado de diversos crimes, dava um recado claro à população: o documento e a posse como ministro era para proteger Lula de uma eventual detenção. Lula despede-se com “tchau, querida”, o que se transformou em um slogan irônico do antipetismo, ainda hoje presente.

A explosão das ruas em 13 e 16 de março: os símbolos nacionais e a camisa da seleção

Foi ali naquela quarta que bandeiras do Brasil e camisas da seleção brasileira de futebol começaram a ser fortes símbolos antipetistas e anti-esquerda. A Paulista tingia-se de verde e amarelo, multidão que também era composta por pessoas com roupa social de quem havia acabado de sair do trabalho e adiaram a volta para casa. Segundo reportagem do El País, uma ciclista, que pedia calma no meio da avenida, foi xingada de “petista filha da p****” por outros manifestantes.

A Fiesp tratava de soprar mais oxigênio para as chamas com caixas de som viradas para a avenida que tocavam o hino nacional, que era entoado com toda a força pelos manifestantes. O hino também foi se transformando em símbolo político de uma militância que se formava ali. Em imagem aérea — que tratou de ser amplamente divulgada — era possível ver sobre as camisas da seleção uma enorme faixa preta onde se lia Renúncia Já.
Foto: Marcos Alves / Agência O Globo


Os atos do domingo que se estenderam até aquela quarta de 2016 não tiveram causas isoladas. O segundo governo Dilma, que iniciou em 1º de janeiro de 2015, estava muito enfraquecido por uma crise econômica aguda e por diversas denúncias que atingiam em cheio os partidos que a apoiaram. Os índices de popularidade da presidente estavam em níveis muito baixos e a insatisfação era crescente.

Porém, o que era um governo ruim se transformou em uma crise social e institucional que iria abalar profundamente as estruturas da república. Os anos seguidos de governos petistas trouxeram o desgaste natural da permanência, e a ampla corrupção revelada ampliaram a revolta.

A República de Curitiba e seus super-heróis de toga
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional.
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional. / Minervino Júnior/CB/D.A Press


“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos uma Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado”, dizia o ex-presidente Lula na conversa interceptada com Dilma. “Eu, sinceramente, tô assustado com a 'República de Curitiba'”, completou Lula.

A tal “República de Curitiba” foi o termo que se popularizou para definir uma estrutura de uma Vara Federal convertida em órgão judiciário especializado em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro nacional, que ganhou força e elevou os julgadores e promotores para a condição de heróis nacionais. Vestindo togas de super-heróis, Moro e companhia se transformaram em uma força política, mais que jurídica, que determinava os rumos do Brasil naquele período, e pautava todo o noticiário.

O pastor, o ex-presidente denunciado e a influência do governo americano

A história teima em se repetir no Brasil — seja como farsa ou tragédia. Também numa quarta-feira — desta vez no ano corrente, em 20 de agosto — o Brasil acompanhou como novela os áudios liberados pelo STF, oriundos do recente inquérito em que Eduardo e Jair Bolsonaro, entre outros, são investigados.

Em áudios e mensagens trocadas via WhatsApp, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o seu filho Eduardo Bolsonaro discutem, e entre xingamentos e acusações revelam sérios desentendimentos no núcleo duro do bolsonarismo. Em outras conversas, Eduardo critica o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Mas a mensagem em áudio mais repercutida na quarta foi com outro personagem importante do bolsonarismo, o pastor Silas Malafaia, que foi proibido pelo STF de se comunicar com Bolsonaro e deixar o país. Na mensagem, Malafaia chama Eduardo de “babaca” e que ele teria falado “merda” e feito um discurso “nacionalista”. Segundo o pastor, o filho de Bolsonaro estaria dando declarações que atrapalharam as intervenções do governo americano para defender o ex-presidente. “Toda arrombada que o Trump deu no mundo é sobre economia. Com o Brasil é sobre você, cara. A faca e o queijo tá na tua mão”, dizia Malafaia à Bolsonaro antes de outro xingamento e das críticas a Eduardo.

O direito à intimidade, o dever de informar e o interesse público

Não é uma exclusividade brasileira o uso de conversas interceptadas para alimentar investigações criminais e, em muitos casos, o debate público. Mas a divulgação ampla dessas mensagens — para além do processo e da persecução penal — coloca em choque dois princípios constitucionais: de um lado, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da Constituição Federal); de outro, a liberdade de imprensa e o direito da sociedade à informação (art. 5º, IX, e art. 220 da CF).

No caso dos áudios de Lula e Dilma, em 2016, juristas e acadêmicos denunciaram a violação de garantias fundamentais, pois a publicidade extrapolava a finalidade processual e assumia caráter político-midiático. Agora, em 2025, o vazamento dos diálogos de Bolsonaro e Malafaia revive esse dilema: o interesse público em conhecer articulações que podem envolver obstrução à justiça e até relações internacionais se sobrepõe à reserva da intimidade privada?

A resposta pode parecer fácil: saber sobre tramas golpistas que ameaçam a democracia, e tomar conhecimento de como personagens públicos dialogam com interesses estrangeiros, sobrepõe o direito à intimidade. Porém, o uso desse “poder” de forma indiscriminada e usada para uma evidente espetacularização da investigação pode fragilizar as instituições e transformar terrenos jurídicos em pântano de justiçamentos.

A divulgação irrestrita de conversas particulares tem o poder de criar um tribunal paralelo da opinião pública. É nesse espaço, instigado por algoritmos que adoram a radicalização, o conflito e a polarização cega, que se fragiliza a confiança nas instituições e acaba mostrando que a fronteira entre justiça e política fica difusa.

Em países como os Estados Unidos, Alemanha e França, casos semelhantes foram tratados de forma diversa, mas sempre com um ponto em comum: a proteção da imprensa quando há interesse público relevante. O precedente norte-americano Bartnicki v. Vopper (2001) reforça essa lógica, ainda que reconheça o desconforto de expor conversas privadas.

A história que insiste em se repetir

Assim como em 2016, os acontecimentos de agosto de 2025 revelam uma engrenagem política que se move também pela exposição midiática de conversas privadas. Os protagonistas mudam, mas os dilemas constitucionais permanecem. A cada nova divulgação, a sociedade brasileira é convocada a refletir sobre até que ponto se admite sacrificar direitos individuais em nome da transparência e do interesse coletivo.

O Brasil, que ainda não resolveu todos os contenciosos jurídicos e históricos da Lava Jato, pode estar plantando as sementes de novas nulidades e disputas judiciais para o futuro. O risco é que, entre direitos fundamentais e o clamor das ruas, prevaleça novamente a lógica do espetáculo.

Talvez o que nos falte não sejam mais áudios, mas silêncio — o silêncio das instituições sólidas, que cumpram a lei sem depender de vazamentos ou espetáculos. Até lá, continuaremos reféns de uma história que insiste em se repetir. Não precisamos de novos heróis nem de velhos vilões. O que o Brasil precisa, enfim, é de uma realidade séria.
Compartilhe
Assim falou Zematustra
21/08/2025 | 21h15
Friedrich Nietzsche
Friedrich Nietzsche / Reprodução

Em Minas Gerais, no Palácio Tiradentes, o governador Zematustra se preparava para uma entrevista que daria no outro dia. Às turras com papéis e vídeos de Whatsapp, não conseguia se concentrar e sentiu que precisaria de ajuda. Mandou chamar Salomé, a assessora que considerava a mais inteligente da equipe.

Em alguns minutos, Salomé adentra nos aposentos do governador.

— Salomé, por favor, me ajuda nesse trem aqui, pelo amor de Deus.
— Claro, governador. O que o senhor precisa?
— Eu vou me lançar a presidente amanhã.
— Nossa, governador, que passo importante! Mas…o senhor se sente preparado?

Zemtustra olhou a assessora por cima dos óculos:

— Uai, você não me acha preparado?
— Claro que acho — Salomé não consegue esconder o desconforto — mas precisamos treinar para as perguntas difíceis.
— Então começa, menina. Pergunta o que quiser, que eu me saio bem demais da conta.
— O que o senhor teria a dizer sobre Adélia Prado?
— A funcionária da rádio? Esse assunto de novo, Salomé? Cansa não?
— Pelo visto o senhor continua sem saber quem é.
— Claro que sei quem é a Adélia! Estava brincando com ocê,. Grande escritora!
— Ufa! — a assessora fica menos tensa, pela primeira vez desde que começou a conversa.

Zematustra continuou rapidamente:

— Autora de A Hora da Estrela. Poetisa de primeira. Viu? A gente comete algumas gafes mas se corrige, menina.
— Não governador, por favor — a expressão tensa volta ao rosto de Salomé — essa obra é de Clarice Lispector.
— Ah, as duas são mineiras, ninguém vai perceber.
— Clarice é ucraniana, governador.

Reprodução
Zematustra coça a testa, desvia o olhar e muda de assunto.


— Política, vamos falar de política.
— Ótimo. O que o senhor pensa da ditadura militar de 64?
— Cê tá muito esquerdinha. Esse assunto já passou.
— Eu sou liberal convicta, governador. Tá, mas e sobre o Brics?

Zematustra faz uma pausa e mexe nos papéis sobre a mesa. Acha uma anotação, e com uma expressão de desdém responde:

— Olha aqui, veja bem, são países que não são cristãos como nós. Como pode o Brasil se aliar a isso?
— Mas a questão religiosa não é o cerne do bloco, governador. Por favor, isso não tem sentido.
— Diga por você, Salomé. A Rússia comunista, então não tem nem religião aquele povo…
— Em sua maioria são cristão ortodoxos. Senhor.
— Pois sim. E a Índia? Que tipo de religião eles têm por lá? Vai saber.
— São hindus, senhor. Em sua maioria.
— São uns indolentes mesmo.
— Pelo amor de Deus, governador. O bloco não é uma missa, é uma aliança econômica.
— Ah, agora você fala de Deus?
— Deus está morto, governador.

O chefe do executivo mineiro se espanta e afasta a cadeira da mesa violentamente.

— Você perdeu completamente o juízo, menina? Como fala uma asneira dessa?
— Desculpe, senhor. Mas achei que o senhor entenderia. Seu nome não é em homenagem a Nietzsche?
— O menino da contabilidade? O que está insinuando agora Salomé? Está passando de todos os limites.

Salomé põe as mãos na testa, e depois cobre a boca com uma delas com os olhos arregalados. Zematustra fica sem entender. A assessora lembra das outras declarações recentes: que os pobres deviam comer banana com casca para economizar, que moradores de rua deviam ser “guinchados” como carros estacionados em local proibido. O currículo estava completo

— É bem pior do que pensei, governador. Não é possível o senhor se lançar candidato à presidência — diz Salomé tentando se recompor.
— Você fala que Deus está morto e diz que eu sou pior que pensou? O que você é, uma comunista, Salomé?
— Deus está morto é um aforismo, senhor. E já disse que sou liberal.
— Liberal até demais! E que agora virou um aforismo mesmo, você está fora! Demitida!
— Ah, Graças a Deus!

Salomé sai pela porta, aliviada. Zematustra volta aos papéis de WhatsApp e repete em voz baixa, como se fosse lema de governo:
— Frankenstein cristão…gostei disso.

Compartilhe
O futuro no feed, o passado no fax - uma conversa rápida com uma IA
17/08/2025 | 18h27
Reprodução/Autor desconhecido

Quem é Felca? O que é adultização? De onde veio isso? É sério que o secretário de Defesa dos EUA compartilhou um vídeo contra o voto feminino? Mais um caso de espancamento de mulher? Não é possível. Um turista britânico dopado em Ipanema? Isso foi quando mesmo? Um fortão-cristão-conservador matou um gari a tiros?

A informação sempre foi um poder. A comunicação também. Em tempos de redes sociais e inteligências artificiais, esses dois elementos humanos não deixaram de ser — pelo contrário. Mas em excesso, a informação pode perder a efetividade.

Recebemos uma enxurrada de informações a cada vez que rolamos a tela em nosso celular. E assim como em outros tempos, uma fonte confiável tem muito valor. Quando nos deparamos com um vídeo “viral”, é preciso verificar a sua veracidade, e buscar a confirmação em redes de comunicação que verificam, checam e muitas vezes ouvem diretamente os envolvidos é fundamental para saber o que de fato aconteceu.

O problema é que é cada vez mais rápida a difusão da informação, chegando a cada vez mais pessoas e são produzidas por qualquer pessoa com um celular na mão e uma ideia — muitas vezes danosa — na cabeça. A praça pública se expandiu e está acessível em qualquer lugar.

A cada semana, novos temas ganham atenção de uma enormidade de pessoas e o assunto que nasce normalmente de vídeos e postagens no Youtube, X, ou Instagram domina as discussões e pauta muitas vezes o noticiário. Em algumas dessas “viralizações”, o resultado pode ser proveitoso, como no caso do influenciador Felca, que conseguiu jogar um canhão de luz na exploração infantil em ambiente digital. Outras vezes, o resultado é difamatório, falso, cruel ou intencionalmente comercial.

Resolvi conversar sobre isso com uma das inteligências artificiais mais conhecidas: o ChatGPT. Comecei a “conversa” dizendo qual era minha ideia, e que iria fazer perguntas a partir de temas que dizem respeito diretamente a ela, ao ChatGPT. Portanto, esperava parcialidade e, ao que parece, ela está presente na conversa.

Ela já quis me fornecer a conversa pronta, sugerindo as minhas perguntas e já ofertando as respostas, e ainda me perguntando se queria receber tudo já editado, pronto para publicação. Não deixei. Disse que queria eu mesmo perguntar. Ela aceitou, a contragosto, senti. Ou pelo menos com algum deboche eletrônico. E, não sei se também por isso, foi bastante direta — e por vezes irônica — nas respostas.

Acompanhe:


Edmundo Siqueira — Resolvi perguntar para você, ChatGPT — e já começo pelo que não quer calar: a internet é a causa ou a consequência desse mundo tão rápido, tão líquido, tão… instável?

ChatGPT — É como perguntar se o trovão causa o raio ou se o raio causa o trovão. A internet nasceu de causas antigas — ciência, guerra, curiosidade — e agora produz consequências que mudam as próprias causas. É um círculo. Ou uma espiral, se preferir o drama.

Edmundo —Espiral é bom, dá mais vertigem. Mas me diga: as redes sociais são as culpadas por essa pressa toda ou só amplificam o que já éramos?

ChatGPT — Elas amplificam. A rede não inventou o ser humano apressado, vaidoso, curioso ou cruel. Só colocou um microfone e um telão na praça. Antes, a fofoca morria na esquina; agora, cruza o oceano antes que você acabe o café.

Edmundo — Então a culpa não é do algoritmo?

ChatGPT — O algoritmo é como aquele garçom que só serve o prato que sabe que você vai pedir. Ele não decide seu apetite, mas vive de repeti-lo.

Edmundo — E a política, onde entra nessa história? Porque a sensação é que a tecnologia por vezes avança em velocidades maiores que a política pode acompanhar.

ChatGPT — A tecnologia corre na velocidade da curiosidade humana. A política, na velocidade da desconfiança humana. O atraso é estrutural: leis, consensos, interesses. Enquanto o celular muda de modelo a cada ano, a Constituição muda a cada geração — e, às vezes, a contragosto.

Edmundo — Então estamos condenados a viver nesse descompasso?

ChatGPT — Condenados não, adaptados. O problema é que a adaptação nunca é igual para todos. Enquanto alguns surfam na onda da inovação, outros ainda estão aprendendo a nadar.

Edmundo — E o social? As desigualdades, o preconceito, o atraso mental?

ChatGPT — Esses são fósseis emocionais. Resistiram à imprensa, ao rádio, à TV e agora resistem à internet. Mas a diferença é que, hoje, eles se mostram com clareza digital — e isso incomoda.

Edmundo — Então, no fim, o que a internet mudou?

ChatGPT — Ela não mudou o que somos. Mudou a escala, o alcance e a velocidade com que mostramos quem somos.

Edmundo — Em outras palavras, o futuro chega pela notificação do celular…

ChatGPT — …e o passado ainda despacha pelo fax.
Compartilhe
Purismo no Palácio: a cultura de Campos e sua mania de deixar tudo como está
03/08/2025 | 18h36
Héllen Souza - 31/07/2020 - PMCG

O purismo pode ser entendido como a vontade de manter algo em seu estado natural, puro. Nas artes, foi um movimento que buscava uma pintura sem subjetividades; pura, portanto.

No meio cultural de Campos, o purismo se manifesta. Basta um olhar — e ouvidos — mais atento às discussões em torno do caso do Mercado Municipal (esse fica para uma outra publicação, de discussão igualmente urgente e necessária) e do Palácio da Cultura para ver defesas apaixonadas para que tudo permaneça como está, ou volte a estados originais impossíveis de serem reproduzidos novamente.

Arquitetonicamente, o Palácio da Cultura é uma construção sacralizada. Os traços modernistas do arquiteto Francisco de Assis Leal ergueram um monumento circundado por jardins projetados por Burle Marx. O prédio é protegido pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Arquitetônico Municipal (Coppam) desde 2013.

Simbolicamente, o Palácio possui um enorme valor afetivo, memorialista e de pertencimento ao campista. Abrigou a icônica Biblioteca Nilo Peçanha e foi palco de inúmeros eventos culturais. E guarda o Pantheon, onde estão depositados os restos mortais de personagens históricos da cidade. Nasceu no governo Rockefeller de Lima, que escolheu a antiga Praça da Bandeira — no coração da Pelinca — como terreno. Um local que, surpreendentemente aos olhos de hoje, era pouco frequentado e sem grande comércio ao redor.

O Palácio sempre foi palco de cultura, mas se elitizou. E sua localização acompanhou esse processo. Embora a cultura seja, por definição, plural e democrática, Campos historicamente manteve seus espaços culturais restritos, falando para um público específico e produzida por grupos pertencentes a esse mesmo público.

O fechamento do Palácio da Cultura parece ter incomodado menos que as propostas para sua reabertura. Desde 2014, as melancólicas portas fechadas escondem a omissão do poder público e a ausência de projetos para retirá-lo do abandono (veja aqui). A primeira proposta de reabertura dividia o Palácio em dois: metade seria ocupada por um “Centro Municipal de Inovação”; a outra metade abrigaria a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL), com espaço para exposições e a volta da Biblioteca Nilo Peçanha — física e digital.

Na ocasião, por decisão da 4ª Vara Cível de Campos, a obra seria custeada como medida compensatória pela demolição de um prédio histórico na Rua 13 de Maio, onde funcionava o Casarão do Clube do Chacrinha, entre 2012 e 2013, demolido sem autorização dos órgãos competentes.

Mas, por mais omissão do poder público e rejeição da proposta pelo setor cultural — não determinante, mas influente em um governo impopular —, o Palácio permaneceu fechado. Como segue até hoje.

Rodrigo Silveira - Folha1
A proposta atual é semelhante. Com previsão de obras concluídas até o fim de 2025, a ideia é que o Palácio abrigue o Centro Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Cetec), além da FCJOL, a Escola de Formação de Educadores Municipais (Efem), os programas Mais Ciência, Startup Campos, Economia Criativa, e a reabertura da Biblioteca Municipal (veja matéria da Folha aqui).


Novamente, parte do setor cultural reage. E há um ponto legítimo nesse incômodo: quando o “cultural” se torna um adjetivo decorativo, o risco de o Palácio da Cultura virar palco de tudo, menos da cultura, é real. É razoável se preocupar com o esvaziamento simbólico e funcional do espaço.

O problema é quando a crítica se torna automática. O purismo cultural, diante da realidade atual do prédio, da Pelinca e de Campos, soa deslocado. Permitir que o local seja compartilhado e plural não é abandonar o compromisso com a cultura. Pelo contrário: é a chance de renovar esse compromisso. Cultura não é altar, é movimento. O que seria esse compromisso estrutural? Garantir programação permanente, orçamento definido, curadoria técnica, política pública transparente. Do contrário, resta apenas o aluguel de um prédio bonito para eventos ocasionais com carpetes vermelhos e figurões em paletós gastos.


O que se espera de um espaço cultural? Qual a razão de ser da produção artística e cultural numa cidade tão carente dessas expressões? Se a resposta estiver no público — e não apenas nos produtores —, abrir o Palácio para manifestações diversas é garantir que ele esteja vivo, pulsante, habitado. O tipo de ocupação deve ser debatido, sim. Mas manter como está parece ser a pior das opções.

Ocupar o Palácio da Cultura é urgente. Mas não com abraços em colunas nem faixas improvisadas na calçada. É preciso ocupá-lo com ideias, com arte, com gente. E se o prédio virou palácio demais e cultura de menos, talvez o erro não esteja nas propostas — mas no silêncio de quem, em nome de preservar, prefere deixar morrer.
Em Campos, a cultura precisa de teto, mas sobretudo de alma, que sempre foi visível por aqui, mas que precisa se reencontrar e abandonar vaidades. 
Compartilhe
Diplomacia à Moda da Casa: um patriota, dois hambúrgueres e o Brasil de cabeça pra baixo
01/08/2025 | 19h27


O deputado brasileiro e o lobista americano escolheram uma mesa de canto, onde poderiam conversar com mais tranquilidade. O dono do restaurante, em Georgetown, veio recebê-los e sugeriu a especialidade da casa; os clientes aceitaram a sugestão, e dois enormes hambúrgueres com batatas fritas logo seriam servidos.

— Estou aqui representando os interesses do Brasil — começou a conversa o deputado, num inglês de sotaque texano sem razão de ser —, e lá estamos sofrendo muito, my friend.

— Mas o que está acontecendo de tão sério, deputado?

— Sabe o Irã? A Venezuela? Então, vivemos um regime parecido por lá.

— Até onde sei, o Brasil tem uma democracia relativamente sólida — o lobista começou a se irritar e pensou se deveria mesmo ter aceitado a reunião.

— Sólida só se for para os comunistas. Lá tá cheio deles.

— Saímos da Guerra Fria há um tempo, congressista.

— Olha só, vou direto ao ponto: colocaram uma tornozeleira eletrônica no meu pai. Tem um careca lá que não vai sossegar enquanto não prender ele. Precisamos fazer alguma coisa — o deputado abaixa a cabeça e cobre com as mãos.

Dizem que o filho pródigo sempre causa problemas. O filho do ex, ao contrário, recebe a herança do pai e vai aos Estados Unidos com paletó apertado e ideologia frouxa. Viaja com uma missão nobre: convencer parlamentares norte-americanos de que seu pai está sendo perseguido, que a democracia brasileira virou ditadura e que o Supremo Tribunal Federal é mais autoritário que o regime do Irã.

É um samba do filho doido com inglês ruim. O presidente americano, alaranjado de raiva contra o mundo — crush político do clã que o deputado pertence —, impôs um tarifaço de 50% contra produtos brasileiros, e o deputado adorou. Circula entre gabinetes estrangeiros agradecendo pela punição. A lógica é simples e insana: quanto pior para o Brasil, melhor para a família. O patriotismo, nesse caso, é uma peça de ficção — só funciona quando cabe nos interesses pessoais.

— O presidente já autorizou o tarifaço, deputado. Entra em vigor em pouco tempo. O que mais vocês querem?

— Tarifaço? — o deputado levanta a cabeça com raiva — deixaram de fora 700 produtos! E agora adiou! Com que cara vou ficar com meus fãs, digo, compatriotas? O presidente vai ficar com fama de arregão, e eu de idiota.

— Calma, deputado. Pelo que sei, sua fama já é essa no Brasil. Sem ofensa. Mas vamos lá: foi o que deu para fazer. Foram pressões de todo lado, e o pessoal da laranja até entrou com um processo.

— Eu não sei mais o que fazer…

O garçom, com a paciência de quem já serviu diplomatas bêbados e congressistas em férias, pousa os hambúrgueres sobre a mesa. O cheiro de bacon e fritura preenche o silêncio constrangedor entre o deputado e o lobista. O deputado continua:

— Precisamos endurecer mais com o Brasil, entende? O povo precisa sentir na pele o que é uma ditadura de verdade. Só assim vão valorizar meu pai.

O lobista, agora mais interessado nas batatas do que na conversa, decide encerrar:

— Deputado, talvez vocês pudessem começar valorizando o próprio país.

Eduardo levanta da mesa. Limpa os cantos da boca com o guardanapo de papel e ajeita o paletó. Olha em volta como se esperasse aplausos, ou uma live. Não encontra nada além de pratos sujos.

Porque, no fundo, a missão era essa: posar de vítima num país estrangeiro, se fazer de mártir em uma democracia que ainda o tolera e, principalmente, manter o sobrenome no noticiário. O Brasil que espere — com tarifaço, com inflação, com diplomacia sendo varrida do mapa por um deputado que age como influencer de extrema direita num tour de ressentimento.

— Você veio aqui para me ofender? — o deputado mantém-se de pé ao lado da mesa. — Eu sou um patriota! Um patriota, taokey?! Estou aqui para salvar meu país das mãos do careca e do barbudo.

— Não estou aqui para te ofender, deputado. Sente-se, por favor. Não faça uma cena. Coma seu hambúrguer, a carne está ótima — ainda tá vindo do seu país. E sobre o careca, como você chama, já aplicamos a Lei Magnitsky. Espera mais o quê de nós?

— Um plano da CIA para terminar o que começamos lá no Brasil.

— Deputado, não ache que o mundo é um filme de espionagem. As coisas são mais complexas — o lobista morde o lanche, e o ketchup suja seu rosto.

— Eu vou embora.

— Para o Brasil?

— Não! Não posso voltar pra lá.

O deputado sai sem se despedir. O lobista não esboça qualquer reação e continua seu lanche. Antes de deixar o restaurante, uma olhada pela vitrine no pouco cabelo que tem, e pensa que vai ficar totalmente careca em pouco tempo. Lá fora, a bandeira dos Estados Unidos tremula no alto de um prédio. Ele a observa com um misto de devoção e inveja.

— Um dia seremos assim — sussurra para si mesmo, enquanto pede um carro por aplicativo.

E assim seguimos, com o ex-presidente de tornozeleira e o filho girando mundo com o GPS moral desconfigurado. É a nova diplomacia do Brasil: um hambúrguer, uma mentira — e a bandeira brasileira, de cabeça pra baixo.
Compartilhe
O coturno que amava um All Star: Bolsonaro, Trump e a Síndrome da Caserna Americana
17/07/2025 | 16h27

Quando o USS Nashville, cruzador da marinha americana, despontou no horizonte visível dos militares brasileiros, a emoção não foi disfarçada — esperavam na base naval do Rio de Janeiro oficiais, praças e autoridades do governo. A máquina de guerra atracou e dela desceu o Chefe do Estado-Maior dos EUA, General George Marshall.

A vinda de Marshall marcou o início de um profundo processo de americanização do Exército Brasileiro. A partir da década de 1930, diversos acordos de cooperação militar e de defesa mútua operacionalizaram uma reconversão doutrinária: do modelo francês para o norte-americano. Havia interesses dos dois lados: o Brasil podia aprender e se aliar a uma potência militar em ascensão; os EUA, por sua vez, consolidavam sua influência no quintal sul.
A formação dos militares — os mesmos que hoje comandam as Forças Armadas brasileiras — foi moldada nessa base americanizada. Com a Segunda Guerra, a doutrina dos EUA foi rapidamente consolidada, com missões de observação, cursos e a experiência da Força Expedicionária Brasileira (FEB) lutando ao lado dos norte-americanos.

O ex-presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarismo, que ascendeu com ele ao poder, possuem três pilares evidentes: o militarismo, a religião e a reafirmação de uma classe média ressentida, com forte traço masculino. No campo militar, os Estados Unidos são referência maior — e daí nasce uma admiração quase patológica de Bolsonaro por Donald Trump, um presidente que personifica todas essas bases.

A paixão não correspondida
Em entrevista recente ao Poder360 (veja aqui), Bolsonaro não escondeu o afeto:

— Eu sou apaixonado por ele (Trump), pelo povo americano, pela política americana, pelos Estados Unidos. Eu nunca neguei isso desde meu tempo de garoto. O Trump sempre soube disso. Ele me tratava como um irmão.
Donald Trump e Bolsonaro, ideologia e admiração
Donald Trump e Bolsonaro, ideologia e admiração / Reprodução/O Globo


A confissão merecia trilha sonora: “estranho seria se eu não me apaixonasse por você”, como canta Nando Reis em All Star. A canção é sobre um amor idealizado, distante — desses que machucam mais pela ausência do que pela presença. Serve como luva. Bolsonaro construiu com Trump uma devoção unilateral, mesmo nos momentos em que foi ignorado. Era como o eu lírico da canção, que sente que o outro “vive bem sem mim”.

Curiosamente, a música, embora brasileira, carrega no título o nome de um símbolo da cultura pop americana. O All Star, como tênis, virou ícone global. E como todo símbolo importado, foi abrasileirado, reinterpretado — e banalizado. O amor político de Bolsonaro por Trump também passa por isso: uma mistura de All Star com coturno genérico, moldado ao gosto de um Brasil conservador e, sobretudo, carente de autoestima internacional.

Como na música, o amado (Trump) não retribui com a mesma intensidade. A relação, assimétrica, virou quase um constrangimento público. O problema é que esse amor — ridicularizado por uns e venerado por outros — moldou parte da política externa e interna do país. E ainda contamina, como vírus, o imaginário de muita gente que acredita que, vestindo o tênis certo, ganha um passaporte simbólico para o "primeiro mundo".

O tarifaço e a liberdade condicional de Bolsonaro
Trump anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros — aço, alumínio e uma alíquota geral. O pacote deve entrar em vigor em 1º de agosto. Oficialmente, a justificativa é “proteger a indústria americana”. Mas a motivação política é clara: retaliação à regulação das redes digitais e à “perseguição” que Bolsonaro estaria sofrendo no Brasil.

Politicamente, foi um tiro no pé. A direita rachou. Tarcísio de Freitas tentou mediar com os EUA e foi atacado por Eduardo Bolsonaro, que atua como um tipo de lobista informal do pai em Washington. A coluna Ponto Final, da Folha da Manhã (veja aqui), cravou: “Até aqui, todas as mudanças advindas da ameaça do tarifaço de Trump são ruins à direita brasileira”.

O gesto revela o que já se suspeitava: para parte do bolsonarismo, patriotismo é apenas retórica. Quando se trata de agradar ao ídolo estrangeiro, não há pátria, soberania ou dignidade que resistam.

Anticomunismo, doutrina e golpes
Embora o exército americano mantenha distanciamento da política interna, há fartas evidências do seu papel em influenciar golpes em países latino-americanos. O Brasil não é exceção. Em 1964, documentos hoje abertos mostram o apoio logístico e político dos EUA ao golpe militar — e antes disso, o famoso Plano Cohen, usado como pretexto em 1937 para implantar o Estado Novo, também surfava na onda do anticomunismo internacional.

USS Nashville
USS Nashville / Reprodução
A doutrina militar americana reforçou uma visão deformada da democracia: para muitos oficiais brasileiros, a democracia só existe quando os militares vigiam. A Guerra Fria intensificou esse delírio. A ideia de que os quartéis devem ser o “poder moderador” nunca saiu de moda entre os saudosistas de farda. Como se a pólvora, sozinha, soubesse o que fazer com os votos.

A aproximação militar entre Brasil e Estados Unidos não moldou apenas táticas e armamentos. Moldou também doutrinas, visões de mundo, e a ideia — herdada e distorcida — de que Forças Armadas são fiadoras da democracia, mesmo quando se afastam dela. O contato com os americanos reforçou, em muitos oficiais brasileiros, uma crença intervencionista: de que era preciso barrar inimigos internos, reais ou inventados, com tanques nas ruas e censura nos jornais.

Com a Guerra Fria, o anticomunismo virou dogma. A identificação da caserna com o Ocidente cristão, o militarismo e o conservadorismo moral ganhou roupagem doutrinária. O resultado foi a elevação do fardado à condição de “poder moderador” — um papel que a Constituição jamais conferiu, mas que segue vivo no imaginário de quem ainda não desfez as malas de 1964.
Bolsonaro é a materialização da síndrome da caserna tropicalizada. Seu amor por Trump não é só pessoal — é histórico, doutrinário, quase genético. O All Star da juventude virou farda; e o sonho americano, delírio. Só que o tempo passou. E, enquanto Trump finge que não conhece mais o “irmão brasileiro”, Bolsonaro segue esperando que um navio de guerra volte à Baía de Guanabara — trazendo, quem sabe, uma saudade de 1930. Ou uma caixa de tênis número 42.
 
*Com informações do artigo "Ensino de pós-graduação no Brasil: as Ciências Militares", de Rafael Soares P. da Cunha e Eduardo Xavier F. Glaser Migon, e "Oficiais do Exército Brasileiro nos EUA: experiência, memória e incorporação seletiva de ideias nas décadas de 1930 e 40", de Eduardo Munhoz Svartma, para ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.
 
Compartilhe
Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com