Uma bela e comprida mesa de madeira já estava quase completa quando cheguei, por volta de 19h30, na casa do arquiteto e empresário Edvar Júnior. Era uma terça-feira, primeiro dia de abril, e logo percebi que não seria mentira que a ideia do encontro seria atendida — havia um debate intenso já acontecendo e estavam presentes gente de várias vertentes da cultura campista.
A ideia de promover um encontro plural não seria possível sem que houvesse representantes da “rua” à mesa. A arte urbana, os terreiros, o jongo, a mana-chica e o carnaval precisavam de representantes no fórum que estava se formando ali. E estavam, e tiveram voz, assim como todos os outros presentes. Os temas da defesa do patrimônio histórico, orçamento público, ausência de secretaria de cultura, os editais da leis de fomento (e suas tentativas de serem aplicados em Campos), a Bienal e o FDP! estavam por lá também, como sempre estiveram e, sempre, trazendo angústias.
Um fórum precisa ser plural e aberto (pelo menos, o mais aberto possível) e deve, para cumprir seu intento, ser despudorado na composição dos foristas e dos temas. Explico: não se faz um fórum propositivo e com possibilidades de gerar algum tipo de ação do poder público e da própria classe cultural se houver censura sobre falas e proposições e, pior ainda, quando se quer censurar previamente um tema.
Na mesa da casa de Edvar — cenário, palco e plateia do primeiro encontro do Fórum — não tinha censura no cardápio e, mesmo tendo vinho e cerveja à vontade, não foi visto nenhuma exaltação, além das habituais de quem vive e é apaixonado pela cultura campistas; e verdades não se furtaram a serem ditas.
Entre as verdades, falou-se da falta de uma secretaria de cultura em Campos (o papel é exercido por uma Fundação, a FCJOL) e da incapacidade orçamentária e de pessoal para fazer acontecer, como se deve, todas as ações da “pasta”. Embora vista como secundária e “coisa de artista”, a cultura é geradora de receitas e de empregos como poucos outros setores — quando bem administrada e com condições para tal. Aliada ao turismo, a cultura movimenta economias em cidades grandes e importantes no mundo inteiro, assim como patrimônios históricos preservados levam milhões de pessoas para continentes distantes. Em Campos não seria diferente, mas é, na prática, por diversos fatores.
Reproduçao
O encontro foi promovido por Edvar Júnior, pelo produtor cultural Wellington Cordeiro e pelo jornalista Matheus Berriel. Dividiram entre eles as responsabilidades dos convites aos foristas e da organização do espetáculo. Com alto prestígio na classe, os três não tiveram dificuldades em preencher todos os assentos. E deles também veio a promessa de independência do fórum que, não fosse a conhecida postura dos anfitriões, seria difícil de acreditar: haveria gente do governo à mesa, da FCJOL e o próprio Edvar Júnior está como subsecretário de Turismo.
Ser independente não é apenas uma questão de postura. É preciso de condições materiais mínimas para exercê-la e muitas vezes a necessária resistência para as inevitáveis desavenças advindas da independência. E é preciso olhar para o próprio umbigo para ser independente, não por ego ou por interesse, mas para tratar das próprias ambiguidades. No fórum estavam gente da literatura, do patrimônio histórico, da música, do cinema, da fotografia, da educação, da produção e gestão cultural, da imprensa e da iniciativa privada; e nenhum deles se furtou a agir assim.
Edmundo Siqueira
Como anfitrião e exercendo um cargo de comando na prefeitura, Edvar não precisou de esforço para reforçar sua independência, pois ela já era conhecida de todos ali. Como um agregador nato, alguém com capacidade para juntar gente muito diferente em um propósito comum, Edvar chamou para a foto, ao final do encontro, e todos foram posar com um sorriso no rosto.
Todos estavam ali unidos pela cultura. Ele, o caldo cultural campista, era o elemento que dava corpo e sabor ao fórum. Esse caldo já foi reduzido muitas vezes por todos presentes e invariavelmente havia ficado azedo, por falta de apoio governamental, por burocracia, por vaidade, por falta do conhecimento do campista de sua terra ou por insensibilidade do empresariado. Mas, pelo menos pareceu, que todos saíram com esperança, novamente, e com a insistência ingênua de alma de artista.
Mesmo sendo 1º de abril, não faltou verdade no primeiro encontro do fórum. Resta saber se elas chegarão a ser ouvidas nos ouvidos insensíveis.
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979
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Orlando Brito
Em 15 de março de 1979, o Brasil assistia à posse de mais um general como presidente da República. João Baptista Figueiredo — o último dos ditadores do regime militar — teve em suas mãos o dever histórico de redemocratizar o país.
“É meu propósito inabalável fazer deste país uma democracia (...) purificado o processo das influências desfigurantes e comprometedoras de sua representatividade”, disse o general Figueiredo em seu discurso de posse. Disse mais: “reafirmo a mão estendida em conciliação. Para que os brasileiros convivam pacificamente”.
A “mão estendida” de Figueiredo ganhava contornos legais alguns meses depois de sua posse. A Lei da Anistia fora aprovada no Congresso — não sem manifestações contrárias — em apenas três semanas, depois sancionada pelo governo militar. Com base no novo ordenamento, estavam anistiados os chamados “subversivos”: os que se manifestavam contrariamente ao governo e os que haviam pegado em armas contra o regime. A lei permitiu que exilados voltassem ao país e quem estivesse na clandestinidade ou figurasse como réu em tribunais militares pudesse viver livremente.
Mas o dispositivo legal não seria usado apenas para anistiar quem lutou contra a ditadura. Propositadamente obscura, a redação que a legislação trazia permitia que a anistia fosse estendida aos “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, ou “praticados por motivação política”, e ainda aos “crimes conexos”. Essa extensão legal, que de forma generalista tentava avançar sobre os que poderiam receber a anistia, acabava por abrigar os agentes da repressão, que torturaram, mataram e ocultaram cadáveres.
Mesmo assim, a promessa de Figueiredo de redemocratizar o país, trazendo de volta à vida pública os presos e exilados políticos, se cumpriu. Os anos de ditadura militar chegaram ao fim definitivamente alguns anos depois, uma nova constituição foi promulgada em 1988 e eleições civis, diretas e democráticas, voltaram a acontecer. A “autoanistia” que veio a reboque quis atender ao corporativismo que os militares brasileiros sempre apresentaram, e seu gosto pelo poder igualmente contumaz.
Negar ao país a possibilidade de punir os ditadores e torturadores, e de colocar a limpo sua própria história, também permite que o militarismo golpista e ditador permaneça na caserna.
Anistia de ontem e de hoje
Na última terça-feira (18), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi denunciado ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sob acusação de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Bolsonaro e mais 33 pessoas foram acusados pela PGR de praticar os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
A denúncia da PGR e as investigações até aqui demonstram que os atos de 8 de janeiro foram a parte final de uma trama golpista com objetivo de derrubar um governo eleito democraticamente e subverter a ordem vigente.
O STF condenou 371 pessoas das mais de duas mil investigadas pelos atos. A maioria dos condenados (225) teve suas ações classificadas como graves com penas que variam de três anos a 17 anos de prisão. Segundo o Supremo, entre os condenados ao regime fechado (223 no total), 71 já iniciaram o cumprimento das penas e 30 aguardam o esgotamento das possibilidades de recurso (trânsito em julgado) nas suas ações penais para o início da execução penal.
Gabriela Biló - 18.fev.25/Folhapress
Como estratégia de defesa, Bolsonaro e apoiadores articulam junto ao Congresso para que seja aprovada uma lei que anistie os envolvidos no 8 de janeiro. No mesmo dia da denúncia da PGR, o ex-presidente afirmou que não haveria “dificuldade para colocar em pauta” a anistia. Embora Bolsonaro afirme o contrário, uma anistia aos envolvidos no 8 de janeiro iria beneficiar os agora denunciados ao STF.
Este espaço no Folha1 ouviu Pedro Estevam Serrano, advogado e doutor em direito do Estado, e professor de direito constitucional, sobre a admissibilidade de uma lei de anistia neste momento:
Pedro Serrano
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Divulgação/PUC
— Caso aprovada, essa lei de anistia poderia ter fundamento legal, mas o problema não seria exatamente esse. Haveria um desvio de poder, dependendo como for aprovada a anistia. Desvio de poder é uma forma especial de inconstitucionalidade, então daria para questionar a constitucionalidade da lei, caso aprovada.
Serrano confirma que a lei beneficiaria os agora denunciados, disse que sua aprovação “influenciaria no caso dos denunciados pela PGR, eles estariam anistiados, pois ela [a lei de anistia] pegaria todo mundo que cometeu ou participou do crime, então não teria sentido prosseguir o processo contra eles”.
O esquecimento e a necessidade de julgamento
Anistia é esquecimento. Quando se propõe que um processo de anistia aconteça no país, recorre-se ao interesse público e político de apagamento de fatos e crimes ocorridos durante um período histórico. A centralidade da ideia de anistia é absolver os culpados pelos crimes cometidos, conceder perdão e reconhecer que o que foi feito não é mais passível de punição.
E para que aconteça, a anistia deve obrigatoriamente ter a intenção de construir uma nova marcha para o futuro, com o desarme dos espíritos antes revoltosos, buscando uma convivência pacífica que possibilite reconstruir uma civilidade democrática.
A anistia aprovada por Figueiredo em 1979, mesmo tendo colocado sob o mesmo guarda-chuva quem lutou contra a ditadura e quem a praticou, cumpriu o papel de repactuar a convivência democrática. Havia a promessa real de construção coletiva de um novo futuro. No atual momento, algumas perguntas ficam. Existe o mesmo ânimo agora, na atual proposta de anistia? Estaria, quem praticou os atos no 8 de janeiro, disposto a conviver pacificamente com uma pluralidade de ideias e ideologias? Os denunciados por golpe de Estado ficariam sujeitos a uma pactuação onde a democracia não esteja novamente ameaçada?
A questão não reside no conceito de anistia. Há pactuações possíveis de serem feitas que visem construir uma convivência democrática possível. Como sistema imperfeito e de poucas defesas, a democracia deve permitir acordos entre os diferentes e até anistiar crimes contra ela mesma. A questão está no mérito.
Não é nenhuma novidade que a economia interfere na política. Seria uma estupidez acreditar o contrário. Porém, comunicar as interferências econômicas é tão necessário quanto conter a alta dos preços.
Na última quinta-feira (6), o presidente Lula disse em uma entrevista a rádios da Bahia que os brasileiros precisam de um “processo educacional” para aprender a “ter consciência” e não comprar os produtos mais caros.
— Uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo. Se você vai no supermercado e você desconfia que tal produto está caro, você não compra. Se todo mundo tiver a consciência e não comprar aquilo que acha que está caro, quem está vendendo vai ter que baixar para vender, porque, senão, vai estragar”, disse o presidente.
Colocar a culpa na população — embora Lula não tenha explicitamente culpado a população, sua fala deu margem para essa interpretação — certamente não é a melhor escolha para comunicar uma crise inflacionária de alimentos. As leis do mercado, de oferta e de procura, podem explicar a dinâmica de um produto ficar mais caro ou mais barato, mas alguém investido no cargo máximo de uma nação não pode querer controlar os preços do supermercado, muito menos acreditar que isso ocorra por ação do povo.
Existem políticas públicas e ações governamentais que agem para evitar que a inflação venha a corroer os salários. Lula, Haddad e a oposição sabem bem disso. Porém, colocá-las em prática pode afetar um jogo de poder já muito desgastado e dependeria de um Congresso coeso e comprometido com o interesse público — algo distante da realidade atual.
Algumas crises recentes que o governo Lula III enfrentou, como a questão que envolvia a taxação do Pix no início de janeiro, não conseguiram ser contornadas com uma comunicação eficiente. A oposição dominou as redes e impôs sua versão da história. De quebra, alçou heróis populares como o deputado federal Nikolas Ferreira.
Há problema na comunicação do governo, mas também há falhas de conteúdo. Assim como não se pode culpar a população pela alta dos preços, não se pode colocar na conta da comunicação os erros de estratégia política e econômica.
No fim das contas, a economia não se resolve na base da boa vontade do consumidor. Quando o caixa passa um produto e o “beep” ecoa no supermercado, ele não distingue quem tem consciência econômica de quem não tem — só registra o preço, que segue subindo.
A inflação de alimentos não some com um toque de pedagogia presidencial, mas com medidas concretas. Se o governo não quiser ouvir um outro beep, esse vindo de votos contrários nas urnas eletrônicas, precisará agir além dos discursos.
Um velho e conhecido ditado diz que um cavalo selado não passa duas vezes na sua frente. No caso do cinema brasileiro, talvez seja o melhor momento de passagem de uma montaria encilhada; Globo de Ouro, indicações ao Oscar com direito a transmissão na Sapucaí e “Ainda Estou Aqui” renovando as forças do setor cinematográfico, deixando milhões de brasileiros interessados.
Em Campos, o cinema passou por um momento de auge que — quase — culminou com uma Escola de Cinema na Uenf. Havia na planície 70 salas de cinema de rua, nos anos 1960 e 70, de Santo Eduardo ao Centro, passando por Saturnino Braga, indo até Dores de Macabu.
Apenas três distritos não possuíram registros de cinemas de rua: Ibitioca, São Joaquim e Dr. Matos (estes dois últimos extintos na divisão geográfica atual), como informa Joilson Bessa, poeta e mestre em geografia pela UFF Campos. Em seu trabalho de mestrado, Bessa verificou que a sala de cinema de rua mais antiga foi em Goytacazes, então 2° distrito, em 1930. Por lá o maior cineteatro da área rural de Campos, o Cine Teatro São Gonçalo, projetava filmes e documentários.
Nos anos 1950, mais 14 salas foram inauguradas. Duas décadas mais tarde, somaram-se 68 salas de cinema em Campos — 20 na sede e 48 na área rural. Deste ápice, o declínio levou a duas salas apenas, em meados dos anos 1980. O Cine Capitólio e o Goytacá sobreviviam bravamente, até deixarem de existir. O primeiro em 2001 e o segundo vendido para uma igreja evangélica nos anos 1990. Cinema, Uenf, Darcy e o Festival Internacional Goitacá
Quando a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) nasceu, havia uma enorme expectativa, tanto dos moradores da região Norte Fluminense, principalmente da população campista que se mobilizou para a universidade acontecer, quanto dos acadêmicos empolgados com a ideia de Darcy de fazer algo do “terceiro milênio”, ainda no início dos anos 1990.
O educador-sonhador tinha no projeto inicial da Uenf uma escola de cinema. O Solar do Colégio, que hoje abriga o Arquivo Público Municipal, foi parcialmente restaurado e abrigaria o que seria a sede da Escola Brasileira de Cinema e Televisão. O projeto não foi à frente, mas caso esse sonho de Darcy se tornasse realidade, Campos certamente seria um polo de produção cinematográfica de excelência, como é o ensino da Uenf em outras áreas.
I Festival Internacional Goitacá de Cinema
Com a chegada de 2025, vai ganhando forma o I Festival Internacional Goitacá de Cinema, em Campos. Já estão confirmadas uma mostra internacional e uma brasileira, ambas com curtas e longa-metragens, tanto de ficção quanto documentários. O evento vai acontecer em agosto e abrigará o também inédito Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense recentemente aprovado em editais da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atualmente, os organizadores estão recebendo propostas de empresas que possam abraçar o projeto do festival enquanto patrocinadoras, uma vez que ele foi aprovado na Lei Rouanet e está sob análise na Lei Estadual de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei do ICMS (Folha1, veja aqui).
— Nosso objetivo é fomentar o debate a partir de diferentes perspectivas sobre a concepção da Escola de Cinema e Audiovisual na Uenf, considerando as experiências institucionais existentes a partir da perspectiva de professores, pesquisadores, profissionais do setor e gestores públicos — afirma o cineasta Fernando Sousa, diretor geral do festival e doutorando do programa de pós-graduação em Sociologia Política da Uenf (Folha1,, veja aqui).
A história de Campos com o cinema ainda está aqui
A história é um elemento vivo, e seu uso pode ser construtivo e educativo, ou omitido. Seja como for, é sempre uma decisão política e social, e econômica muitas vezes. Omitir que Campos já teve uma história interessante com o cinema pode ser uma forma de omissões em políticas públicas.
O que pessoas como Darcy e Fernando fazem, com apoio ou não do poder público — mas sempre dependendo da boa institucionalidade — são formas de manter vivas manifestações artísticas e culturais tão necessárias, principalmente em tempos sombrios.
Seja no Oscar ou no ortivo Festival Goitacá de Cinema, é preciso festejar o fato de ainda estarmos aqui, e ainda haver arte e história para festejar.
Quando alguém do poder executivo é reeleito, é comum haver mudanças no secretariado. Mudar a equipe é fundamental para oxigenar as pastas e incentivar novas políticas públicas. Mas é preciso que as movimentações de pessoas estejam acompanhadas da definição de novas prioridades, ou ao menos reforçar antigas que ainda não foram cumpridas.
No caso da cultura campista, há diversas questões em jogo que não serão oxigenadas com uma simples mudança de comando. Campos não tem uma “secretaria de cultura”, uma Fundação assume o seu papel: a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL). Há prós e contras da institucionalidade cultural ser exercida por uma Fundação, mas certamente isso não está entre os problemas principais da cultura campista.
A primeira questão é orçamentária. Dos recursos próprios do município, pouco é destinado à FCJOL. Este ano estão previstos míseros R$ 11 mil ao Fundo Municipal de Cultura. Os recursos mais volumosos estão nas leis federais de incentivo, como Aldir Blanc e Paulo Gustavo, porém a gestão desses recursos — desde a definição inicial de valores — depende de uma ação municipal efetiva, que passa por planejamento, base de dados de empresas e agentes culturais, criação de projetos e definição de políticas públicas da área.
O que o município vem mostrando é que a estrutura da FCJOL não permite que essas ações sejam feitas como se deve. Há atrasos nos editais, dificuldade no repasse, falhas de comunicação e insatisfação no setor cultural da cidade. O que deveria ser parte da solução e uma excelente forma de desenvolver toda cadeia produtiva, passa a ser um transtorno.
A segunda questão passa pelo desenho institucional da Fundação. A FCJOL acaba por ser um guarda-chuva de várias áreas afins que não dialogam, não apresentam resultados e não recebem os recursos que deveriam. Caberia à Fundação agir no planejamento e execução de políticas públicas para a área cultural, passando pela captação de recursos. Seria esse seu campo de atuação fundamental. Porém, está entre suas atribuições boa parte dos eventos municipais, inclusive o carnaval e shows do verão. Embora seja um campo importante de atuação, a falta de estrutura da FCJOL não permite que ela o abrace. A recém criada secretaria de Turismo poderia assumir a parte de eventos, ou mesmo outras secretarias em conjunto.
Por outro lado, Campos poderia perfeitamente estar no cenário nacional de teatro, cinema e arte. Há infraestrutura para isso. Além de vasta rede hoteleira e de restaurantes. Peças teatrais, exposições de arte, festivais de cinema e de literatura, dança e tantas outras manifestações artísticas poderiam ter em Campos uma referência e a cidade ser uma das rotas de agenda dos espetáculos.
A terceira questão está relacionada ao patrimônio histórico. Há no município imóveis com tombamento federal e estadual, protegidos, portanto, que podem servir de atrativo, gerar receitas e abrigar instituições. Citando apenas três deles — Solar dos Airizes, Solar da Baronesa e Solar do Colégio — é possível demonstrar o quanto de potencial se perdeu até aqui.
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Os solares dos Airizes e do Colégio passam por intervenções importantes, ambas conseguidas pelo esforço do município, é preciso fazer justiça aqui. Caso essas ações sejam levadas adiante, será um passo importante para criar em Campos alternativas no campo da educação patrimonial, cultural e turística. Porém ainda muito incipiente.
Mas, outras construções chamam a atenção pelo abandono. O Palácio da Cultura e o Museu Olavo Cardoso poderiam ser referências da área central e abrigar diversas iniciativas culturais. Porém, há anos estão fechados. O Olavo Cardoso com sério risco de ruína e o Palácio como um símbolo gritante de desperdício em pleno coração da área comercial mais valorizada da cidade.
No Centro, o Museu Histórico cumpre um papel importante em meio a tanta descaracterização, e realiza eventos de sucesso de público e crítica. Mas carece de integração e valorização.
Prioridades e políticas públicas
As características e complexidades da área cultural em uma cidade histórica como Campos exige políticas públicas de “estado”, não de governo. O Plano Municipal de Cultura e o Conselho de Cultura são instrumentos importantes que a cidade já possui, além de ter um órgão de tombamento, o Coppam.
É preciso definir prioridades e que os setores dialoguem. Falta muito por parte do município, mas falta bastante do setor também. É preciso abandonar vaidades e colocar os projetos e instituições acima das individualidades.
Viver em um eterno museu de novidades pode ser poético, mas não gera resultado.
A tragédia clássica é um gênero literário frequentemente utilizado para traçar paralelos com a vida cotidiana e, em última análise, confrontar os leitores de todas as épocas com dilemas morais, sentimentos ambíguos e questões atemporais de cunho filosófico.
Não é exagero dizer que o Brasil atravessa uma tragédia. Há todos os elementos para que o momento atual seja caracterizado assim, principalmente nos âmbitos jurídico e político: heróis, vilões, batalhas, golpes e atos de violência — com direito a planos de assassinatos envolvendo explosões e envenenamentos. Embora trágico, esse contexto pode servir para que a democracia brasileira trace linhas que deveriam ter sido desenhadas há muito tempo.
O Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de guardião da Constituição, é quem pode fazer com que essas linhas delimitantes estejam visíveis. Embora haja poderes independentes e se preze pela harmonia, o Supremo precisa ter a caneta e a régua para desenhá-las, e assumir-se como detentor da última palavra numa democracia.
Porém, não basta que a etimologia e a lei definam o Supremo como tal. Na democracia é preciso que ele seja assim reconhecido, assim seja aceito, sob pena de criar animosidades sociais que venham a questionar sua legitimidade. Não se trata de adequar as decisões e o próprio tribunal à opinião popular, ou submeter-se à “tirania da maioria” — citada no texto clássico de Tocqueville, Democracia na América (1835) —, mas é preciso cuidar para que os conceitos de justiça, igualdade e imparcialidade estejam colocados como balizadores inquestionáveis.
Moraes e Belerofonte
Belerofonte, um dos heróis trágicos mais célebres da mitologia grega, era um semideus destemido, filho de Poseidon. Após matar seu irmão acidentalmente em um treinamento, foi expulso de casa e se refugiou no reino de Proeto, onde serviu ao rei. Entretanto, envolveu-se com a rainha Antéia, que, rejeitada por ele, o acusou de assédio. Para resolver o impasse sem violar as leis da hospitalidade, o rei enviou Belerofonte a uma missão suicida: derrotar Quimera, um monstro com corpo de leão, cauda de serpente e uma cabeça extra cuspindo fogo.
Na contemporaneidade, Alexandre de Moraes desempenha um papel similar ao de Belerofonte, enfrentando a Quimera institucional brasileira — um monstro de múltiplas "cabeças" que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e tentativas de corroer o Estado de Direito.
Moraes, como protagonista do inquérito que apura a tentativa de golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder, mesmo derrotado na eleição de 2022, é perfeitamente comparável com Belerofonte. E Quimera com a crise política e institucional de muitas “cabeças”, que combina desinformação em massa, ataques às instituições democráticas e estratégias perversas que visam a erosão do Estado de Direito.
Assim como as impetradas pelo monstro mítico, as ameaças atuais — essas bastante reais enfrentadas por Moraes — são interligadas e exigem respostas rápidas, criativas e corajosas. No caso de Belerofonte, a vitória só foi possível com a ajuda de Pégasus, o poderoso cavalo alado gerado por Poseidon que dá nome a uma constelação do hemisfério celestial norte. Montado em Pégasus e contrariando o caráter suicida da missão de matar Quimera, Belerofonte conseguiu proferir um golpe mortal no coração da besta.
Na última quinta-feira (21), a Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-ministro da Defesa Walter Souza Braga Netto, candidato a vice pelo PL nas eleições de 2022, e o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid por tentativa de golpe de Estado. Outras 34 pessoas também foram indiciadas. Na lista, estão ex-ministros do governo Bolsonaro, ex-comandantes do Exército e da Marinha, militares da ativa e da reserva.
A vespa da suspeição
Na mitologia, a derrota da Quimera trouxe para Belerofonte uma glória efêmera, seguida pela arrogância que o levou a tentar alcançar o Olimpo — um ato que resultou em sua queda e isolamento, após Zeus enviar uma vespa para picar Pegasus.
Na quimera institucional do Brasil de hoje, Alexandre de Moraes figura como juiz e como vítima. Concentrando a maior parte dos ataques bolsonaristas, visto como inimigo ainda durante o governo do ex-presidente, descobriu-se no curso da investigação da PF um plano para matá-lo, com participação ativa de um general da reserva.
O ordenamento penal brasileiro traz dois institutos para tratar os casos em que o julgador tem questionado sua capacidade de agir processualmente com distanciamento e imparcialidade: a suspeição e o impedimento.
O que parece pesar sobre a permanência de Moraes no julgamento dos atos antidemocráticos é o impedimento. Com rol taxativo, as hipóteses estão dispostas nos artigos 252 e 253 do Código de Processo Penal (CPP), estas não admitindo ampliação a partir de interpretações subjetivas. Mas parece claro, dado o que foi descoberto pela PF, que Moraes tem “ele próprio”, motivos suficientes para estar “diretamente interessado no feito” — inciso IV do art. 252 do CPP.
Tanto na doutrina quanto na jurisprudência, há um debate sobre a taxatividade das hipóteses de impedimento e suspeição previstas nos códigos. A doutrina defende a possibilidade de ampliar a aplicação dos artigos sobre suspeição e impedimento por meio da analogia e da interpretação extensiva. O artigo 3º do CPP, que permite a interpretação extensiva e aplicação analógica da lei processual penal, é citado como base para essa interpretação.
À margem dessa discussão, mas sem ignorá-la, um possível impedimento do ministro Moraes pode ser sustentada pela ideia de que os autores de um plano de assassinato contra ele não poderiam ser julgados com a imparcialidade necessária. Já a suspeição pode ser defendida a partir de critérios subjetivos, onde serão analisadas as relações de inimizade, no caso, e sua externalidade ao processo. Alexandre de Moraes seria um inimigo capital dos agora indicados? A resposta embora parece óbvia na atual conjuntura, não se aplica para determinar uma suspeição, uma vez que a inimizade não é recíproca, não há causa suficientemente lógica que faça com que o ministro do STF seja suspeito para julgar quem o coloca como inimigo.
Mas qual seria o peso para uma suspeição dos comentários ou posicionamentos públicos de um magistrado? Podem eles comprometer a imparcialidade, mesmo que não se enquadrem nas hipóteses previstas em lei? A Constituição de 1988 consagra o sistema acusatório, que por sua vez garante a imparcialidade do juiz, e tem o objetivo final de garantir a justiça e a equidade.
Pesa ainda sobre Alexandre de Moraes uma postura, mesmo que cultuada alheia à sua vontade, de “combatente do crime”, que pode levar a pré-julgamentos e à produção de provas ex officio, violando o sistema acusatório e a imparcialidade. A separação clara entre as funções de investigar e julgar é essencial para a construção de um sistema acusatório genuíno.
Atos antidemocráticos em 8 de janeiro
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Joedson Alves/Agência Brasil
Porém, o STF se mostra como a última instância em julgamentos dessa natureza, e há uma questão de definição dos sujeitos passivo e ativo atacados nos planos golpistas. Embora tenha se mostrado no inquérito que havia um plano para matar especificamente o ministro Moraes, a intenção dos golpistas seria um ataque mortal ao Supremo Tribunal Federal como um todo, e sua representação simbólica e prática na institucionalidade brasileira.
O STF age para remover o ferrão da vespa da suspeição
Em recente declaração pública, outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, disse que não faz sentido a discussão sobre a suspeição do colega Moares, uma vez que “seria muito fácil engendrar o impedimento do tribunal inteiro dizendo que todos eram alvos de ataques”. Mendes lembra que muitos ministros, e o próprio STF, também foram alvos de ataques.
O mesmo Código que diz sobre a suspeição e o impedimento, traz em seu artigo 256 a determinação de que “a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”. Parece ser com essa base legal que Gilmar Mendes constrói seu raciocínio, onde se rechaça a possibilidade do réu escolher seu julgador. No caso de um tribunal composto por 11 ministros, e sendo a última instância, seria possível facilmente, caso a tese de suspeição fosse acatada, inviabilizar toda corte.
O legislador diz que para a suspeição é preciso agir “de propósito” para motivá-la. Além disso, as relações hostis entre as figuras processuais necessariamente precisam atender a um caráter temporal, uma vez que a existência de relações conflituosas não poderiam ser anteriores à instauração do processo, podendo inviabilizar a aplicação do art. 256 (CPP).
Portanto, a intenção de causar nulidades e suspeição precisa ser explícita, não pode ser confundida com uma hostilidade que deriva de questões alheias ao julgamento. E também não poderiam antever a abertura de um processo penal, de forma preditiva.
O perigo da vespa
A democracia brasileira sofreu seu maior ataque desde a ditadura militar. A tentativa de subversão em 8 de janeiro de 2023 demonstrou o quão profundas eram as articulações antidemocráticas. Diante disso, discutir a suspeição ou impedimento de Moraes pode ser visto como uma tentativa de enfraquecer o sistema judicial em benefício de réus que buscaram aniquilar a ordem constitucional.
As características do ataque levaram a uma constatação óbvia: eles não poderiam acontecer alijados de contexto, tampouco desprovidos de financiamento e organização. Os planos golpistas começam a ser demonstrados em detalhes, trazidos pela investigação da PF, e revelam que havia orquestração de medidas e ações, e elas se estenderam antes e depois dos atentados de 8 de janeiro.
A discussão de suspeição ou impedimento de Alexandre de Moraes, embora válida juridicamente, pode trazer um entendimento de que os que cometeram tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito podem manejar a justiça para escolher seu julgador. E uma vez tendo sucesso na empreitada, fazer com que a Corte seja, de forma análoga, impedida de julgá-los.
Em situações de normalidade institucional, o STF poderia não ser competente para julgar o caso, e Moraes não deveria acumular funções investigativas e de julgamento. Porém, garantir o devido processo legal é fundamental, principalmente em momentos de crise.
Caso a vespa da suspeição seja afastada, e o impedimento não acatado pelo Supremo, Alexandre de Moraes subirá ao Olimpo da Constituição com um Pégasus inabalável, e tudo leva a crer que cumprirá seu dever com a determinação de um guerreiro vindo da mitologia.
Mas, um recorte temporal infinitamente menor da história brasileira em comparação com a mitologia grega, mostra que há um perigo real quando a justiça elege salvadores e guerreiros míticos. Em passado recente, um magistrado de primeira instância foi içado à essa categoria, e suas nulidades e parcialidades corroeram qualquer possibilidade de vitória legítima.
A vespa da suspeição ou do impedimento pode não ser capaz de derrubar um ministro da última instância, mas é preciso cautela quando a tragédia sobrevoa o Olimpo.
Era abril de 2016. O Brasil vivia uma turbulência política que culminaria no impeachment da presidente. Uma operação da polícia federal havia revelado um extenso esquema de corrupção que levava o país a ver políticos tradicionais serem presos e os subterrâneos do poder ficarem expostos.
O que poderia ser um processo de moralização da política se transformou em um espetáculo midiático, alimentado diariamente, com procuradores e juízes arvorados a salvadores da pátria corrompendo o devido processo legal. E o que poderia ser a queda de uma presidente impopular que produziu uma crise econômica gigantesca, se transformou em um julgamento parlamentar burlesco.
Entre os deputados mais grotescos que se manifestaram, um se destacava: Jair Messias Bolsonaro. Entre placas de “Tchau, querida!” e faixas verdes e amarelas, Bolsonaro dedicou o seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, ex-comandante do DOI-Codi — um dos maiores centros de repressão durante a ditadura militar — morto em 2015. Se não bastasse o absurdo de exaltar um torturador, o então deputado Jair complementou dizendo que ele seria o “pavor de Dilma Rousseff”, a mesma mulher que estava sendo julgada na ocasião.
No plenário da Câmara dos Deputados, aos olhos de todo país, em um julgamento acompanhado como uma novela ou um campeonato de futebol, um deputado homenageia um torturador que atuava em nome da odiosa ditadura brasileira, e de forma sádica fez questão de fazer com que uma mulher julgada lembrasse os atos de extrema violência sofridos.
Tanques de guerra em Brasília - golpes militares se repetem na história do Brasil.
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Arquivo Nacional
O Brasil não julgou os torturadores e os líderes da ditadura. Brilhante Ustra foi um dos poucos a receber julgamento, sendo o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos. O golpe que levou o país ao regime ditatorial foi parcialmente esquecido, e nessa condição permitiu que a história, como elemento vivo e político que é, fosse ressignificada pela visão dos ditadores e torturadores.
Tiu França e o contexto
Por óbvio, o ódio na sociedade brasileira não começou com a lembrança criminosa de Ustra feita por Bolsonaro. Estamos entre os países que mais receberam escravizados da diáspora africana e entre os últimos a abolir a escravidão. Nossa história é repleta de golpes de Estado, e mantivemos uma desigualdade pornográfica, uma das maiores do mundo, e uma estrutura social violenta, autoritária, machista e preconceituosa.
Porém, não havia incitações de ódio e incentivo à toda sorte de ruptura institucional como experimentamos desde a operação Lava Jato. Criou-se no Brasil uma cultura, um ambiente que favorece que padrões de comportamento agressivos e de ressentimento se repitam em certos grupos, e se reproduzam ao ponto de se transformar em um movimento de massa, ou algo definidor de identidades.
Investigações no local do atentado a bomba realizado na Praça dos Três Poderes por Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’.
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Agência Brasil - EBC
Francisco Wanderley Luiz, o ‘Tiu França’, como era conhecido, não se radicalizou a ponto de se transformar em um homem-bomba alijado de contexto social e político. Não haveria um atentado como o que ocorreu em Brasília no último dia 13 se não houvesse condições pregressas. O ódio acendeu os rastilhos das bombas.
No último domingo, a casa onde morava Tiu França foi incendiada, em Rio do Sul, Santa Catarina, com sua ex-esposa no interior da residência, que encontra-se em estado grave. Uma das hipóteses investigadas é de que a própria ex-mulher do autor do atentado tenha provocado o incêndio.
É preciso dar às coisas os nomes que elas têm.
Quando há estímulos públicos para que as pessoas se exponham a um vírus letal e são tomadas decisões que venham a postergar e dificultar o acesso à vacinação, trata-se de necropolítica (política da morte). Quando alguém atuando na posição de liderança carismática de um movimento de massa, como Bolsonaro, age sistematicamente para questionar os poderes constituídos e propondo a eliminação de adversários políticos, esse alguém é fascista.
Os ‘ismos’ em seus tempos
As esquerdas brasileiras caíram na esparrela de vulgarizar conceitos e palavras fundamentais para entendermos o momento atual. O fascismo foi retirado de contexto e usado como adjetivo para gente como Fernando Henrique e Geraldo Alckmin em tempos da polarização PT x PSDB. Eles e outros democratas convictos eram taxados de autoritários e golpistas por ter pensamentos diferentes em relação à economia.
Marcha da Família com Deus pela Liberdade - 1964
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Arquivo Nacional
Há posições acadêmicas que procuram estacionar o fascismo em seu
tempo histórico, assim impedindo que tenha reproduções em outros contextos fáticos. Porém figuras como Trump e Bolsonaro personificam modos de fazer política que guardam semelhanças gritantes com o fascismo, inclusive no uso de expressões — na Alemanha de Adolf Hitler, um dos lemas mais repetidos era “Deutschland über alles”, em bom português: “Alemanha acima de tudo”.
Como no fascismo, a ideia construída na extrema-direita atual também acredita em uma “maioria nacional única”, que é personificada no homem, branco, heterossexual, de classe média urbana. É preciso, assim como nos fascismos, o culto à masculinidade, a negação do feminino e a aversão a minorias como negros e LGBTs.
Cultuar figuras como Brilhante Ustra é algo aderente a esse conjunto de ideias. O que pode parecer asqueroso para muitas pessoas, denota força e coragem para o grupo já iniciado no movimento de inspiração fascista. A ditadura e a tortura passam a ser instrumentos necessários para eliminar inimigos, mesmo que imaginários.
O plano para matar
Uma das características da extrema-direita brasileira é a participação das Forças Armadas. Diferente de outros países, como os EUA por exemplo, o braço armado do Brasil não se sente incomodado em participar da vida política. Pelo contrário: são instados como garantidores, ou como sendo a última alternativa para “manter a ordem”.
Basta olharmos para a construção política do país, desde o início da República, para percebermos que há uma significativa ala golpista nas Forças Armadas. Os militares assumiram a condição de governo na gestão do ex-presidente Bolsonaro, ocupando diversos cargos, inclusive do primeiro escalão.
Manifestantes golpistas protestam contra tentativa de desmonte de acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília -
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Gabriela Biló - 29.dez.2022/Folhapress
O golpismo militar aliado do bolsonarismo radical ganhou contornos ainda mais inaceitáveis. Menos de uma semana do atentado em Brasília, uma investigação da Polícia Federal descobriu que cinco pessoas (quatro militares e um policial federal) conversavam em 2022 em um aplicativo de mensagens sobre um plano para matar o então presidente eleito, Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Para matar o presidente, segundo documento juntado aos autos pela PF, seria utilizado “envenenamento ou uso de [produtos] químicos”. No caso de Moraes, o grupo planejava “o uso de artefato explosivo”.
Pela primeira vez na história do Brasil, um general (Mário Fernandes, general da reserva e ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro) foi preso por conspirar contra o país.
Os rastilhos
A Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada de Bolsonaro ao poder, a condução da pandemia, o 8 de janeiro, o 13 de novembro e a descoberta do plano dos militares para eliminar a cúpula do poder no Brasil são explosivos detonados pelo ódio.
A ascensão da extrema-direita não é uma exclusividade brasileira, faz parte de nosso Zeitgeist (espírito do tempo), e tem origem por diversos fatores, com variáveis diferentes a depender do país, mas é possível traçar no Brasil uma linha do tempo do ódio, um encadeamento de fatos que possibilitaram a demonização da política e a cisão da sociedade.
Esse estado de coisas onde homens-bomba são criados e planos de assassinato são iniciados por quem perdeu as eleições, não é possível existir sem o ódio e o ressentimento. Fatos isolados como a homenagem ao coronel torturador Brilhante Ustra não explicam como chegamos até aqui. Mas a normalização sucessiva dos absurdos, certamente permitiu.
Plínio Salgado, ao centro, líder da AIB - Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista.
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Reprodução
Na mesma votação em que Bolsonaro homenagiou Ustra, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse, quase em profecia: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação”. A palavra “misericórdia” deriva de miseratio (miséria) e cordis (coração). Literalmente, significa “coração que se debruça sobre a miséria humana”.
Que possamos sair da condição de miséria que a banalidade do mal criou; novamente.
Reprodução Instagram Rick Azevedo
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edmundosiqueira@hotmail.com
Se há um ensinamento possível para as esquerdas vindo das últimas eleições municipais no Brasil, e da eleição de Donald Trump nos EUA, é que existe um problema de comunicação. Há um evidente distanciamento do pensamento de esquerda com uma parcela significativa da população.
São muitos os motivos, mas quando verificamos que é um fenômeno globalizado, e que está aliado a um avanço da extrema-direita, como visto em diversos países, podemos dizer que essa dificuldade de comunicação do pensamento progressista faz parte de uma dinâmica mundial, que decorre dos próprios tempos. Parece vago, mas tentarei explicar.
A democracia liberal, como a conhecemos, passa por uma crise profunda. Abandonou-se a ideia de que os intolerantes não podiam ser tolerados, justamente pela sobrevivência da democracia. Portanto, não é gratuita a defesa libertária da extrema-direita. É preciso que ideias intolerantes circulem livremente na sociedade para que se crie um clima de hostilidade entre as pessoas, e nas suas relações com as instituições. A ideia de uma liberdade de expressão absoluta não passa de cortina demagógica para esconder autoritarismos.
O problema é que para combater o avanço de extremismos dessa natureza é preciso trabalhar conceitos abstratos. Democracia é um deles. Estado de Direito, freios e contrapesos, outros. Eles são elementos de respostas complexas para problemas complexos. E também por isso são conceituações difíceis de comunicar, principalmente no instantâneo e vazio de conteúdo mundo imposto pelas redes sociais. É impossível explicar o paradoxo da tolerância, por exemplo, em um vídeo de 15 segundos no TikTok.
Essa batalha tem sido perdida nos últimos anos. As promessas quebradas pela democracia em relação à segurança, educação, cultura, moradia, transporte, empregos e igualdade de direitos vem sendo comunicadas pelo extremismo trazendo dois elementos de grande eficácia: a apresentação direta de um inimigo — um bode expiatório para os ressentidos e os que buscam culpados — e um punhado de respostas fáceis. Exemplifico: o comunismo no Brasil e os imigrantes nos EUA como inimigos; a morte de bandidos para resolver a violência e deportação em massa como uma respostas fáceis.
No caso específico do Brasil as esquerdas decidem por abandonar a comunicação com os trabalhadores — onde exerciam historicamente um caminho de luta para obtenção e manutenção de direitos trabalhistas — para assumir uma posição identitária. Assim como o extremismo de direita, optou por uma resposta fácil, mas sem o êxito de comunicação, justamente por ser exercida por uma intelectualidade que olha para o povo de cima.
Talvez a PEC seja também uma resposta fácil para problemas complexos, mas o fato é que ela se mostrou como centro de um assunto de enorme repercussão e que foi reconhecido como uma pauta das esquerdas. O campo progressista pautou o debate público, assumiu a dianteira e manteve o controle da chamada “narrativa” — como há muito não se via.
Existem bons argumentos contra e a favor da proposta de reduzir a escala de trabalho dos brasileiros, que tem uma das maiores do mundo. A ideia é acabar com a possibilidade de escalas de 6 dias de trabalho e 1 de descanso, chamada de “6x1”, e aderir a um modelo em que o trabalhador teria três dias de folga, incluindo o fim de semana.
Experiências internacionais mostram que escalas mais humanas aumentam a produtividade e possibilitam aumento significativo de qualidade de vida dos trabalhadores. Por outro lado, não há estudos robustos sobre os impactos nos pequenos negócios e não tem se discutido sobre a enorme massa de precarizados do Brasil, que inclusive não tem CLT.
A PEC tem poucas chances de ser aprovada. Mesmo que se ache um meio termo possível, uma alteração constitucional desse peso depende de muita pressão popular e muito esforço político. Porém, já é uma expressiva vitória política das esquerdas no Brasil. A reação às derrotas recentes parece ter se iniciado agora, e pode ser que um caminho para voltar a se conectar com a população tenha sido encontrado. Ainda é cedo para afirmar que ele será evolutivo, mas até aqui foi uma experiência exitosa.
O Brasil e os EUA são países semelhantes em muitos aspectos. Foram construídos através de colonizações europeias e passaram por adequações sociais parecidas. E as últimas eleições realizadas nos dois países mostraram que há uma massa de desalentados que precisam reencontrar seu lugar no mundo, perdido principalmente pelas mudanças nas relações de trabalho impostas pela globalização e pela tecnologia.
Para voltar a ficar saudável, as democracias vão precisar encontrar um jeito de garantir alternância de poder e de ideologias, com propostas de ambas que busquem o bem estar social por meio de visões de mundo diferentes, mas essencialmente defensoras da democracia. Para ser saudável, essas visões de mundo precisam saber dialogar com a realidade, pois o extremismo sempre venderá ilusões.
Talvez o atraso nas obras do Arquivo Público Municipal de Campos não seja culpa da Uenf. Aliás, devemos penalizar, quando há dolo, as pessoas à frente das instituições; e não a institucionalidade. Mas toda essa história tragicômica talvez mostre a cara de alguns outros vilões.
Mas antes de apresentá-los, é preciso fazer algumas ponderações históricas.
O Arquivo de Campos nasceu de uma iniciativa legislativa, em maio de 2001, proposta pelo então vereador Edson Batista. Na ocasião, a Uenf havia começado a preparar um solar do século XVII, em Tocos, para abrigar sua escola de cinema. A ideia não deu certo — havia uma dificuldade de preenchimento de vagas dos docentes e uma cultura de produção e comercialização cinematográfica teria que ter certa aceitação na região. Com a descontinuidade, esse prédio, o Solar do Colégio, ficaria novamente abandonado, apesar de sua importância. E para aproveitá-lo, o Arquivo nasceu ali, como Campos, na Baixada.
Como o nome sugere, se tratava de um solar jesuítico. Foi construído para impor religião e a “domesticação” indígena, essencialmente. Após a expulsão da Companhia de Jesus dessas terras, em 1759, a edificação é vendida a Joaquim Vicente dos Reis por 187 contos 953 mil réis. Depois, Sebastião Gomes Barroso, genro de Joaquim, cria ali um grande engenho de açúcar.
O Solar do Colégio e o Solar dos Airizes (às margens da BR-356) são representantes fiéis de como Campos e a região se constituíram: enormes fazendas, plantações de cana-de-açúcar e escravidão. As fazendas eram centros de serviços públicos, havia hospitais e maternidades, escolas e amontoados de casebres que formavam pequenas comunidades.
O centro urbano de Campos crescia sustentado pela plantation, e queria a todo custo ser o Rio de Janeiro, ou qualquer cidade europeia. Cafés, livrarias, hotéis e teatros eram frequentados por motivo de status, não de cultura. Os preços das commodities eram definidos nos cafés e os teatros apresentavam musicais enlatados vindo do Rio.
Pois bem, Campos acabou se tornando uma cidade de costas para sua história, querendo ser o que não era e consumindo cultura alheia. Havia alguns elementos culturais orgânicos, que vinham principalmente da baixada. Até de costas para o rio Paraíba Campos está.
Parte significativa dessa história está no Arquivo Público. Jornais, documentos de tribunais, cartas testamento, registros de nascimento e morte, comprovações dos movimentos revolucionários contra a Coroa Portuguesa, cartas de fundação das primeiras Câmaras, e toda sorte de atrocidades registradas em comercialização de seres humanos advindos da diáspora africana.
Citei o Airizes acima por ele também ser um estorvo para a maioria dos campistas — algo a ser demolido para dar espaço a algum condomínio.
Há pouco mais de entrei no Solar e vi no fundo de um cômodo algumas dezenas de sacos de lixo. Eles encobriram milhares de fotos, documentos, obras de arte, mapas, livros e correspondências pessoais dos antigos moradores. Certamente, muito a ser contado dali, caso o destino não fosse a fogueira.
Além desse acervo recente, o que havia de valioso (valor histórico, cultural e financeiro) foi vendido para um museu em Niterói e para a USP. O geógrafo e escritor Alberto Lamego, proprietário do Solar dos Airizes e garimpeiro desse acervo, era visto com desconfiança pelos campistas, que achavam que era tudo falso e sem valor, mas o Solar era constantemente visitado por gente como Oswald de Andrade.
A Uenf recebeu R$ 20 milhões há quase três anos para restaurar o prédio e fazer a digitalização do acervo. Além de oferecer as mínimas condições de funcionamento e visitação de ambos. Por diversas desculpas, uma parte minúscula do dinheiro foi aplicado, e o Solar continua sob risco, assim como o acervo que guarda.
A Uenf não tem expertise para tocar uma obra dessa complexidade, e não faz parte de sua atividade fim fazer intervenções em patrimônios históricos. E ao que parece, a aceitação da missão aconteceu sem ouvir a universidade e seu Conselho. Mas o fato é que aceitou. E também é fato que a lei que rege o Fundo Especial da Assembleia Legislativa, de onde veio o recurso, exigia à época que fosse destinado a alguma instituição estadual ou federal.
Mas, ficam algumas perguntas.
Deveria a Uenf ter aceitado? Sim. O Solar do Colégio tem uma relação próxima e bela com a universidade, e tratar documentos históricos, possibilitando que eles sejam fonte de pesquisa, é algo que a Uenf deve zelar, além de ser uma universidade que nasceu para cooperar com a comunidade que está inserida.
Precisava de tanta burocracia? Sim. Trata-se de dinheiro público e de um patrimônio histórico de alta relevância. Além de abrigar um acervo inestimável. É preciso dar transparência, lisura e abertura ao processo. E contratar empresas de alto gabarito. E existem leis que regem com muita rigidez algo assim.
Demora tanto assim? Não. Há um leque enorme de excelentes empresas no Brasil que aceitariam essa obra, que participariam das licitações e entregariam algo sensacional em bem menos tempo. É possível licitar obra e projeto juntos, desde que cumpra-se alguns requisitos.
Devemos culpar a Uenf? Não. A universidade, enquanto sua institucionalidade, está prestando um serviço e precisa direcionar esforços de uma estrutura apertada e sem experiência em obras. Porém, gestores podem ser culpabilizados. Prioridades foram definidas e o Arquivo e Solar não estavam nelas. Se algo acontecer nesse período de chuvas, podem e devem responder pela letargia e omissão na aplicação de recursos públicos.
O Arquivo poderia estar no centro de Campos? Claro. Seria o ideal. Um Palácio da Cultura climatizado, acessível, com funcionários concursados tratando documentos antigos e catalogando os atuais, e com agendamento frequente das escolas. Mas além de ser utópico na realidade atual, perderíamos um local único, carregado de história, exalando educação patrimonial. Desistiríamos de particularidades excepcionais para aceitar algo ordinário, comum. Isso se o comum fosse existir, de fato.
Os vilões possíveis
E então chegamos aos vilões. O mundo real dificilmente é explicável pela dicotomia herói-vilão. Há uma zona cinzenta entre essas personas que é onde a maioria está. Talvez todos estejamos, instituições e pessoas.
Mas o descaso com o Solar do Colégio, dos Airizes e com o Arquivo é a metástase de um patologia que Campos arrasta através dos séculos. A culpa, caso seja possível definir, é de uma sociedade que quebrou os espelhos, que vive olhando para as sombras na parede da caverna.
Mas se há um verdadeiro vilão possível, está entre os que olham para a história, a entende, compreende sua riqueza, percebe a existência de um elemento extraordinário, que alia patrimônio e pesquisa, algo de potencial inexaurível, e diz que é melhor abandonar. “Deixa cair”; “não gosto de fulano e fulana, melhor que aquilo acabe”; “aqui é assim mesmo”.
O enredo é de novela. Em outubro de 2021, há pouco mais de três anos, a cidade tomava conhecimento (veja aqui) de um acordo que poderia ser a salvação de dois patrimônios históricos importantes, ambos em situação precária, tanto financeira quanto estrutural: o Solar do Colégio e o Arquivo Público Municipal.
O acordo envolvia Alerj, prefeitura de Campos, Uenf e o Arquivo, e repassava parte das economias — dos chamados duodécimos — da Assembleia Legislativa para a universidade estadual, sediada em Campos. Em 15 de dezembro, menos de 2 meses do acordo firmado, a Lei 5.275/2021 autorizava a transferência de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf; alguns dias depois o dinheiro estava na conta da universidade.
O Fundo Especial tem lei própria (6.041/2011), onde é definido como os superávits podem ser repassados a outras instituições. Na ocasião do acordo, o art. 2º da lei determinava que os recursos poderiam ir para instituições de ensino e pesquisa, desde que fossem “federais ou estaduais de ensino superior”. Foi apenas em 2022 que a Lei 9.760 incluiu a possibilidade do Fundo repassar recursos diretamente aos “municípios fluminenses” ou a consórcios públicos, como o Cidennf.
Acordo firmado, dinheiro repassado e leis cumpridas. Tudo parecia fluir bem para que o restauro do Solar e a reestruturação do Arquivo, incluindo a digitalização do acervo, acontecessem na prática. Mas não foi bem assim.
A publicação da lei que autorizou o repasse de R$ 30 milhões do Fundo Especial da Alerj para a Uenf
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Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
Os impasses em Campos
Do total dos recursos, a Uenf ficaria com a responsabilidade de aplicar R$ 20 milhões no patrimônio campista e R$ 10 milhões na Fazenda Campos Novos, em Cabo Frio. Porém, as prioridades da reitoria na ocasião foram todas direcionadas ao litoral. As obras em Cabo Frio aconteceram de forma eficiente e célere — dada a complexidade que qualquer restauro de patrimônio histórico impõe. Houve grupos de trabalho com a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde o início, e a relação com a prefeitura de Cabo Frio era próxima e azeitada.
Isso não aconteceu em Campos. A relação sempre foi de desconfiança entre universidade e prefeitura, e os gestores pareciam distantes administrativa e politicamente. A Uenf decidiu corretamente por fazer um processo licitatório para a aplicação dos recursos, mas pecou na letargia.
Quando o acordo com a Alerj aconteceu, havia uma parceria formalizada entre o poder público municipal e uma associação mineira chamada Sociedade Artística Brasileira (Sabra). Os termos da parceria diziam que a Sabra iria atuar na captação de recursos e na cooperação técnica com fins de restaurar patrimônios históricos em Campos. Na ideia inicial da prefeitura, seria essa associação que tocaria as obras no Solar do Colégio.
A Uenf, novamente com a razão, rechaçou a indicação direta e quis dar transparência na escolha da executora das obras, via licitação pública. E novamente pecou por inércia.
Em novembro de 2022, mais de um ano do acordo, portanto, acontecia uma reunião na Alerj (veja aquie aqui) com a presença de todos os envolvidos, onde o reitor da Uenf à época surpreendeu a todos com a justificativa pela demora. Segundo ele, seria necessário que a prefeitura contratasse, pagasse e apresentasse o projeto de restauro do Solar.
Conduzindo a reunião, o então diretor administrativo da Alerj, Wagner Victer, sugeriu ao reitor o óbvio: licite o projeto executivo e pague com os R$ 20 milhões depositados.
Saímos da Alerj naquele dia (eu estive presente como jornalista e ativista cultural) com outro acordo firmado. No prazo de 30 dias, a Uenf faria a licitação do projeto executivo com previsão orçamentária e o processo imediato de contratação da digitalização do acervo histórico do Arquivo Público Municipal.
Outro acordo quebrado
Foi apenas em 31 de julho de 2023 que a primeira contratação para o Arquivo aconteceu. Com 214 dias de atraso (contados do segundo acordo e já descontados os 30 dias) a empresa Technische Engenharia e Consultoria Ltda recebeu R$ 350 mil para “assessoria e consultoria” na “elaboração de projeto básico e auxílio a termo de referência” para licitar o projeto executivo (como sugerido na Alerj em 2022).
Contratação da empresa que prestou serviços de assessoria e consultoria para desenvolver o projeto básico e Termo de Referência para o projeto de restauro total do Solar do Colégio.
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Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
A ideia a partir daí, por indicação do Iphan, foi construir uma estrutura metálica externa ao Solar, que não alterasse sua estrutura mas que o protegesse das chuvas e outras intempéries enquanto o restauro total não acontecesse. Novamente, acertava-se na decisão e pecava-se na letargia.
A segunda licitação, dessa vez para construir a sobrecobertura, só seria publicada em 9 de julho de 2024, no valor de R$ 1,7 milhão (veja aqui). Por ironia do destino — e para dar mais cara de enredo de novela —, a empresa ganhadora desse segundo processo licitatório é ligada diretamente à Sabra, a SVG Construções e Consultoria Ltda.
Edital para contratação de empresa que irá construir a sobrecobertura. A empresa vencedora do certame pode ser inabilitada.
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Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
Vereadores entram no enredo novelístico
Em duas reuniões seguidas, a primeira nesta quinta-feira (7), e outra ontem (8), a Uenf recebeu vereadores que foram cobrar sobre o início das obras no Solar e as intervenções no Arquivo.
A atual reitora, Rosa Rodrigues, e a equipe de licitação da Uenf, receberam os vereadores Juninho Virgílio, Kassiano Tavares e Fábio Ribeiro (que é servidor da universidade licenciado), além do chefe de gabinete do vereador Edson Batista, Fernando Machado. A diretora do Arquivo, Rafaela Machado, participou do segundo dia de reunião, e expôs as dificuldades diárias na instituição.
Reunião na Uenf com os vereadores: novo acordo firmado, prazos estabelecidos e promessa de comissão na Câmara para acompanhamento.
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Reprodução/Redes Sociais
Segundo Virgílio, a primeira reunião serviu para organizar o segundo encontro, onde também estiveram presentes representantes da procuradoria da prefeitura e da parte jurídica e técnica da Uenf.
Como resultado desse segundo encontro, ainda segundo o vereador, a Uenf disse que pretende chamar a segunda colocada da licitação feita para a sobrecobertura, uma vez que a primeira, segundo a universidade, não conseguiu comprovar a expertise necessária. Discutiu-se ainda a possibilidade de fazer intervenções emergenciais, pela proximidade do período de chuvas.
Os vereadores decidiram, em concordância com a Uenf, que farão uma “Comissão de Representação” para acompanhar mensalmente o andamento das obras. Para a comissão realmente nascer, Virgílio disse que irá alinhar com os demais colegas para ser apresentado um requerimento na próxima terça-feira (12), em plenário.
A Comissão, caso aprovada, deverá ter fim ainda nesta legislatura, porém há o compromisso de apresentação de novo requerimento, para continuidade da Comissão, na primeira sessão ordinária da Câmara, em 2025.
Reunião na Alerj, uma ano depois do primeiro acordo e firmado e da inércia da Uenf.
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Folha1
Chove no Solar e nos documentos do Arquivo enquanto a novela continua
Embora a entrada da Câmara de Vereadores dê novo fôlego às cobranças de celeridade das obras, já se iniciou em Campos o período de chuvas fortes e intensas, e não há indicativo algum que seja realizado algo efetivo para proteger, a tempo, o patrimônio histórico e o acervo.
Além da Câmara, que tem o dever de agir em interesses públicos dessa monta, é essencial que a sociedade civil também se envolva no assunto. Por ser uma instituição também de memória, garantir seu funcionamento deve ser uma preocupação de todos, além de ser um assunto que envolve dinheiro público.
É louvável que a Câmara entre para a linha de frente, mesmo que de forma tardia, e se proponha a ser um instrumento de solução e não mero apontar de dedos. Aliás, a omissão de alguns pesquisadores, professores, acadêmicos e instituições culturais de Campos dá um bom indicativo para explicar como perdemos tanto em relação ao patrimônio histórico.
É preciso entender que estamos falando de instituições: Alerj, Uenf, Prefeitura, Arquivo e Câmara. Não se trata das pessoas à frente delas, mas sim do papel coletivo que desempenham. E as soluções devem sair da institucionalidade. Deixemos as pessoalidades para quem só aponta dedos.
A simbiose formada pelo Arquivo, Solar e Uenf – O Arquivo Público Municipal está instalado em um solar jesuítico do século 17, que conta parte importante da história de Campos e região. Sob a guarda do Solar e do Arquivo estão documentos de interesse mundial, uma vez que também dizem sobre a diáspora africana, ocorrida principalmente devido ao tráfico transatlântico de escravizados.
O Solar do Colégio tem uma relação próxima com a Uenf desde a instalação da universidade em Campos, uma vez que lá seria a Escola de Cinema, projeto que foi descontinuado e que hoje tenta-se a sua retomada. Passou a ser Arquivo Público por Lei Municipal do vereador Edson Batista.
Localizado em Tocos, na Baixada Campista, é preciso em formas de acessibilidade para o Solar e Arquivo, principalmente após o restauro acontecer, para escolar, pesquisadores, turistas e público em geral. Mas o que garantiu até aqui a sobrevivência de ambos é a simbiose entre instituição e patrimônio.