Trump grita, Nova York mastiga: a vitória de Mamdani e o novo apetite político da América
09/11/2025 | 00h19
Zohran Mamdani em campanha pelas ruas de NY.
Zohran Mamdani em campanha pelas ruas de NY. / Reuters

Nascido em Uganda e nova-iorquino desde os sete anos, Zohran é como a maioria dos habitantes da Big Apple: apaixonado por comida de rua. Há nove meses gravou um vídeo para o YouTube (veja aqui) dizendo que Nova York vivia uma crise e, como a boca cheia com uma porção do prato que segurava, explicou que se tratava de “halalflation” (a inflação do halal).

Halal é uma referência aos alimentos permitidos pela lei islâmica (sharia), que devem ser preparados em rígidas regras de abate — segundo a tradição invoca-se o nome de Alá — e manuseio do animal, sem nenhum vestígio de carne de porco e álcool, entre outras adequações.

Zohran, muçulmano, entrevistou durante o vídeo alguns donos de food trucks perguntando sobre o custo dos alimentos, as taxas para vender nas ruas de NY entre outras dificuldades. Com desenvoltura de youtuber e discurso afiado, Zohran termina o vídeo comendo novamente e, quando perguntado pelo vendedor de rua como estava o gosto da comida, disse que estava “com gosto de 10 dólares, mas que deveria ser 8”.

Ele fez história na terça-feira (4). Com apenas 34 anos, Zohran Mamdani será o primeiro prefeito muçulmano de Nova York e o mais jovem em pouco mais de um século a governar a maior cidade dos Estados Unidos. Inimigo declarado do presidente Donald Trump, o deputado estadual democrata assume a gestão de NY a partir de janeiro de 2026.

Woke, imigrante, jovem e socialista

A eleição de Mamdani em uma cidade da importância de Nova York representa mais que uma simples vitória democrata. Ele consegue reunir em sua persona muitos dos elementos atualmente combatidos pelo presidente Trump, principalmente por ser imigrante e de esquerda.

No discurso de vitória, o prefeito eleito de NY deu um recado direto ao presidente: “Donald Trump, eu sei que você está assistindo. Só tenho quatro (turn up the volume) palavras para você: Aumente o volume!”. Eloquente e carismático, Mamdani acabou atraindo olhares do mundo inteiro, e se tornando uma esperança e exemplo para a esquerda — socialista ou não — que segue carente de lideranças assim.
Prefeito eleito de Nova Iorque, Zohran Mamdani, comemora vitória no Brooklyn Paramount Theater. Apelo jovem na retórica, cores, fontes e estilo da campanha.
Prefeito eleito de Nova Iorque, Zohran Mamdani, comemora vitória no Brooklyn Paramount Theater. Apelo jovem na retórica, cores, fontes e estilo da campanha. / ANGELINA KATSANIS / AFP


Embora se declare como socialista, Mamdani é, antes de tudo, woke — termo que surgiu na comunidade afro-americana, que originalmente significa “estar alerta para a injustiça racial”, mas hoje tem sentido mais amplo, algo como estar “consciente sobre temas sociais e políticos”. No Brasil, o paralelo importado da cultura woke é o identitarismo.


O prefeito eleito de NY é filho de pais cosmopolitas, sofisticados e altamente respeitados no meio acadêmico. Sua mãe, Mira Nair, graduou-se em Harvard e é uma cineasta festejada, ganhou prêmios em Cannes, no Festival de Veneza e foi indicada ao Oscar. O pai, o antropólogo Mahmood Mamdani, é professor de política e antropologia na Universidade Columbia, com vasta produção intelectual, diretamente relacionadas às arrojadas e progressistas propostas que o filho Zohran apresenta.

Nada mais woke, nada mais anti-Trump.

De NY para o restante da América?

Mamdani tornou-se cidadão americano em 2018, e portanto, pela lei americana, não pode ser eleito presidente. Contudo, pode exercer outros cargos importantes ao ponto de alterar o jogo político dos EUA. Porém, é cedo para afirmar.

Nova York é uma cidade-símbolo dos EUA. Uma metrópole moderna, de forte apelo ao poder financeiro e que consegue simbolizar o “sonho americano” e a “terra de oportunidades”, ideais caros ao povo norte americano. Mas ao mesmo tempo, também pelas oportunidades que traz, é uma cidade altamente cosmopolita, construída e vivida por imigrantes. E muitas vezes não representa o que pensa o restante do país.


“A vitória do Mamdani na última terça chamou atenção por ser um candidato com um perfil diferente do tradicional em Nova York. Nas ruas, dá para perceber que ele tem apoio em alguns grupos, principalmente em bairros com populações mais jovens e diversas, mas a cidade é muito heterogênea e as opiniões variam bastante”. Essa é Letícia De Nadai, capixaba que vive em NY há mais de 15 anos. Ela e o marido foram para a cidade americana após um convite de trabalho.

Letícia continua:

“Mas, no geral, há uma certa cautela. É um momento para observar como ele vai se posicionar e o que realmente vai conseguir colocar em prática. Em nível nacional, ainda é cedo para dizer que ele tem um protagonismo forte, mas certamente ele é uma voz importante dentro do que chamam de “woke culture” nos EUA. Nova York abraça isso bastante, mas o restante do país está mais dividido”.

Geração Z, aluguéis e ônibus gratuitos

Assim como o Brasil, os Estados Unidos são um país dividido. Direita e esquerda são definições possíveis para analisar a política, mas, sendo também válido para os dois, até pelo tamanho que ambas nações possuem, há muitas direitas e muitas esquerdas.

Mamdani está mais à esquerda na régua progressista dos democratas. No Brasil, ele estaria filiado ao PSOL, e os democratas seriam o que representa o PT hoje, inclusive em suas vertentes de centro e centro-esquerda. Entre as propostas  principais do agora prefeito de NY estão ônibus gratuitos por toda a cidade, uma rede de supermercados públicos administrados pela prefeitura, congelamento de aluguéis e creche gratuita. Também pretende aumentar impostos sobre quem ganha mais de US$ 1 milhão.

A moradora de NY Letícia dá uma boa pista sobre o apelo dessas propostas na cidade, quando indagada sobre questões econômicas do dia a dia: “Sobre a economia, Nova York segue estável, mesmo com crescimento lento. O custo de vida continua altíssimo, especialmente aluguel e moradia, que é um problema constante. Muitas pessoas reclamam dos preços altos de moradia, transporte e alimentação”.
Zohran Mamdani e constante uso da culinária de rua nova-iorquina
Zohran Mamdani e constante uso da culinária de rua nova-iorquina / Getty Images


A motivação de quem saiu para votar em Mamdani (mais de 1 milhão de nova-iorquinos) talvez tenha sido elevada por um desejo de mudança. “Há quem apoie as mudanças sociais, e muita gente está frustrada com a situação econômica e o custo pesado de viver na cidade. A vida aqui é intensa e vibrante, mas cheia de desafios financeiros para a maioria”, continua Letícia.

A campanha de Mamdani atuou fortemente de porta em porta. Segundo o próprio candidato, que utiliza um sistema online para cadastro e registro de ações, foram mais de 90 mil voluntários inscritos, que realizaram mais de 3,6 milhões de abordagens nesse sistema presencial e personalizado. A estratégia também passava pelo digital, com Mamdani publicando vídeos virais, chamando as pessoas para se engajarem, e pedindo que elas comentassem para receber informações da campanha. De forma retroalimentar, os apoiadores nas ruas geravam imagens para serem usadas nas redes.

Assim, Mamdani conquistou boa parte da “geração Z” (nascidos entre meados da década de 1990 e o início dos anos 2010) de NY. Letícia confirma:

“O apoio dos jovens é bem perceptível. Ele se comunica bem, fala de temas que interessam a essa faixa etária e usa muito as redes sociais. Existe uma identificação natural com essa forma mais direta e idealista de fazer política”.
Calor, pressão e poder

Se o Zohran dos vídeos de comida de rua terá capacidade de se concretizar em um líder político influente, o tempo dirá. A sua vitória eleitoral dá um frescor ao campo progressista de toda América, mas precisa provar que será um governo exitoso. As esquerdas andam sedentas de rostos jovens e narrativas autênticas como a de Mamdani, mas é cedo para saber se o frescor sobreviverá ao calor do poder.

Além disso, a cultura woke — seja nos EUA ou no identitarismo à brasileira — é também excludente e promove cancelamentos constantes em quem pensa diferente ou usa termos inadequados. É uma forma de política em que a linguagem importa tanto quanto as identidades e que deve oferecer respostas para além das bolhas criadas pelo próprio movimento e de suas batalhas morais.

Mas por ora, Trump ainda grita e Nova York mastiga. E quando a cidade que nunca dorme volta a ter fome de mudança, o banquete político dos Estados Unidos inteiro pode estar apenas começando.



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Entre a bala e o altar: o oportunismo sem pecado de Cláudio Castro e a hipocrisia da esquerda Zona Sul
01/11/2025 | 22h46
Agência Brasil
“Quem pode, por direito, reivindicar coragem para si mesmo é o servidor da Segurança Pública (...) não há Estado forte sem policiais fortes”.

A frase poderia facilmente ter sido retirada das declarações dadas pelo governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, após a “Operação Contenção” contra o Comando Vermelho (CV) nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte da cidade do Rio, deflagrada na última terça (28) — mas foram ditas no discurso de posse de Castro, em janeiro de 2023.

O tema “segurança pública” não é exatamente uma novidade em uma cidade com altos índices de violência e com milhões de pessoas vivendo em territórios dominados por facções criminosas. Já era central nas últimas eleições e continuará sendo para 2026. A questão é: por que o governador do Rio conseguiu nacionalizar o tema agora? Por que governadores de outros estados rapidamente vieram apoiar Castro e posar ao seu lado na foto?

O que parece começar a oferecer elementos para responder essas perguntas é a flagrante incapacidade do campo progressista em tratar o tema, seja na oferta de soluções ou no diagnóstico do problema. O Rio se tornou o espelho rachado de um país que terceiriza a responsabilidade e nacionaliza o medo. Claudio Castro não inventou a necropolítica, apenas entendeu seu valor de mercado, entendeu que o momento de baixa da popularidade de direita era o ideal para lançar esse ativo adormecido.

Do outro lado, o presidente Lula não soube aproveitar o momento de alta, e uma declaração infeliz, por coincidência ou não, alguns dias antes da operação no Rio, parece ter sido um tiro fatal no bom momento de seu governo, ou pelo menos na curva crescente de sua popularidade — Lula parece ter gastado sua conhecida fortuna (sorte, na concepção maquiavélica) na questão com o presidente americano Trump, pois não haveria momento pior para uma escorregada como essa.

Soma-se à dificuldade da esquerda no tema ao esvaziamento dos discursos de direita, e a segurança pública se transforma em ouro político. Com a extrema-direita ainda desestruturada pela possível prisão em regime fechado de seu líder maior, o ex-presidente Bolsonaro, havia esperança de que a retórica agressiva de Trump e a taxação sobre o Brasil provocassem danos maiores ao governo Lula, o que não apenas não aconteceu como o efeito foi contrário. Ali, o tiro saiu pela culatra.

Castro, o oportunista

A ida de Cláudio Castro ao Palácio Guanabara se deu pelo impeachment de Wilson Witzel, em 2021. Saindo de uma candidatura apagada na Câmara de Vereadores do Rio, Castro, advogado e cantor católico, foi eleito como vice de Witzel em uma vitória surpreendente, fortalecida por um discurso justamente calçado em segurança pública.

“O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”, disse Witzel em 2018.

A vitória de Witzel, ex-juiz federal nascido em Jundiaí (SP), aconteceu na esteira de um bolsonarismo então nascente, e demonstrou a insatisfação do eleitor fluminense com o poder constituído até então. O discurso contra corrupção e o tráfico de drogas e a pose construída de juiz honesto e duro com o crime, caiu como uma luva numa eleição em que o voto de revolta era a tônica. Em um Estado onde à época já contava com uma ficha de cinco governadores presos, não era de se estranhar.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) com o governador Cláudio Castro (PL) durante o ato de 7 de setembro de 2022, em Copacabana.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) com o governador Cláudio Castro (PL) durante o ato de 7 de setembro de 2022, em Copacabana. / Imagem: Saulo Angelo/ Futura Press/ Folhapress


O afastamento de Witzel por suspeitas de corrupção frustrou a aposta do fluminense em um governador diferente dos demais. Cláudio Castro assumiu o governo e percebeu que havia uma deficiência também em agradar o interior do estado, historicamente esquecido do orçamento e de ações estaduais.

Em 2021, Castro consegue emplacar o leilão que transferiu blocos da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) à iniciativa privada: o certame arrecadou cerca de R$ 22,6 bilhões, parcela expressiva dos quais — aproximadamente R$ 14,48 bilhões — ficou com o governo do Estado e parte considerável foi destinada aos municípios que aderiram ao plano de concessão.

Sem poder se candidatar ao estado novamente, Castro era visto como um potencial pré-candidato ao Senado, que em 2026 terá duas cadeiras vindas do Rio. Antes da operação no Alemão e na Penha, o governador não gozava de boa popularidade, e havia dúvidas se conseguiria se eleger. Em pesquisa DataFolha deste sábado (1º), a gestão do governador chegou ao seu maior índice de aprovação desde 2022, com 40% dos moradores do Rio de Janeiro e da região metropolitana da capital achando o trabalho ótimo ou bom.

Oportunismo político sem pecado, olhado por lentes exclusivas desse campo.
A esquerda, segue distanciada do povo

Inegavelmente, a direita domina o discurso da segurança pública, primeiro porque fala a língua do medo — e o medo é mais fácil de vender do que a esperança —, e depois por dar uma resposta fácil e violenta para um drama vivido diariamente por milhões de pessoas em cidades grandes como o Rio. Cansada, a população vê como uma vingança necessária aos bandidos que impõe restrições e medo em pessoas que honestamente vivem seus cotidianos.

O campo progressista se perde entre diagnósticos técnicos e discursos acadêmicos, incapaz de formular uma narrativa emocional sobre segurança pública. Fala de políticas de prevenção, mas esquece que o medo é o maior cabo eleitoral do país. O cidadão que vive sob toque de recolher não quer um seminário sobre desigualdade: quer a sensação, ainda que falsa, de que o Estado está no comando.

Enquanto isso, Cláudio Castro posa de xerife e redistribui holofotes. Transforma operação policial em ato de campanha. O discurso que promete “paz” pelo fuzil encontra solo fértil onde o Estado falhou em oferecer dignidade. Castro recebeu apoio de governadores de direita, embora esteja em evidente campo da retórica e da campanha eleitoral antecipada, que se reuniram no Rio de Janeiro nesta quinta-feira (30) para anunciar o que chamaram de “Consórcio da Paz”.
Cláudio Castro (RJ) entre os governadores Zema (MG) e Caiado (GO), no lançamento do "Consórcio da Paz".
Cláudio Castro (RJ) entre os governadores Zema (MG) e Caiado (GO), no lançamento do "Consórcio da Paz". / Charles Sholl/PhotoPress


A questão é que assim como o traficante não é uma vítima romântica do sistema, mas um agente brutal de sua própria guerra, o político que se omite diante da barbárie também é cúmplice. A diferença é que um opera no beco, o outro no palácio.

Então, uma ação direta do governador, ainda que deixe mais de uma centena de mortos, entre eles quatro policiais, é vista como necessária pela população. Há números: a operação foi considerada muito bem executada para 48% da população, considerada mal executada para 24%. Já 57% concordam com Castro sobre a operação ter sido um sucesso, e outros 39% discordam totalmente, segundo o DataFolha.

Entre direita e esquerda, o crime segue vencendo

Nos anos 1990, José Guilherme Godinho, o Sivuca, foi eleito deputado estadual pelo Rio de Janeiro. O slogan, ainda hoje usado por políticos e facilmente encontrado em comentários de redes sociais: “bandido bom é bandido morto”. Três décadas antes, Sivuca havia sido um dos integrantes da Scuderie Le Cocq, grupo de extermínio que deu origem às milícias.

Fila de corpos na Vila Cruzeiro, após operação no Complexo da Penha
Fila de corpos na Vila Cruzeiro, após operação no Complexo da Penha / Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo


O uso eleitoral da violência no Rio é percebido há pelo menos três décadas, onde ações como a Contenção apresenta grande rentabilidade eleitoral. Para além do financiamento direto de campanhas pelo crime — seja das milícias ou do tráfico —, o medo é diretamente proporcional ao desejo de uma solução rápida e por vezes violenta.

Na lógica bipolar atual brasileira, a direita clama por bala e a esquerda por direitos humanos — e nenhuma das visões oferece soluções reais ao problema, que é essencialmente de ordem técnica e dependente da cooperação federal. Além disso, operações policiais, bem sucedidas ou não, representam a força coercitiva e ostensiva do estado, e quando terminam, a ausência completa do ente estatal continua sentida, e a população permanece refém do crime.

O eleitor, exausto, tende a se agarrar ao primeiro que prometa segurança, ainda que a segurança venha marcada de sangue. Mas o que morre, antes de tudo, é a crença de que o Estado serve à vida.

E assim o Rio continua o mesmo laboratório de sempre, produzindo o melhor e o pior do Brasil, com todo peso histórico e simbólico de uma cidade que já foi capital do império e da república. No fim, o altar de Castro e a varanda gourmet de uma esquerda Zona Sul se encontram no mesmo templo: o da conveniência eleitoral. Um ora por votos, o outro por likes. E ambos, sem perceber, professam a mesma fé — a fé no oportunismo sem pecado.
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Aprovado recurso estadual que abre caminho para a 6ª edição do Festival Doces Palavras (FDP!) em Campos
22/10/2025 | 20h50
Reprodução Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 22/10/2025.


O tão aguardado passo para viabilizar a 6ª edição do Festival Doces Palavras (FDP!) foi dado: o projeto submetido junto ao estado teve sua aprovação concluída nesta quarta-feira (22). O evento receberá, pela aprovação do projeto, 210 mil reais. A previsão de datas segue a mesma, devendo o FDP! ocorrer de 5 a 9 de novembro, no Palácio da Cultura (veja matéria da Folha aqui).

Após meses de incertezas sobre verba e estrutura, os organizadores da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) e a sociedade civil têm o sinal verde estadual para viabilizar os recursos através da lei de incentivo, onde uma empresa pode direcionar parte do que paga em impostos para a iniciativa.

A aprovação do projeto é um passo importante e um alívio para organizadores e para toda a cena cultural da cidade.

Incertezas de antes, prazo apertado de agora

O FDP! já vinha com data confirmada: de 5 a 9 de novembro, conforme anúncio da Fundação. Em edições anteriores, o festival enfrentou atrasos e obstáculos logísticos – inclusive originalmente programado para final de setembro, mas remarcado para novembro.

Agora, com o aval do estado, abre-se o caminho para que a curadoria, autores, oficinas, debates e shows façam parte novamente deste importante momento de literatura, cultura e identidade campista.

O que parece ser o desafio agora é o tempo. Com a aprovação do projeto, os próximos passos precisam ser dados para que o recursos seja disponibilizado, e aplicado na execução do festival. Com apenas nove dias úteis pela frente, será preciso agilidade organizacional e vencer burocracias.

Um ponto positivo é que o FDP! já estava em andamento, tendo a FCJOL publicando edital essenciais para que o festival aconteça e já abrindo as inscrições para autores e escritores lançarem suas obras.

O edital, publicado na terça-feira (14), busca selecionar universitários voluntários para atuarem na organização do FDP 2025, com o credenciamento de 10 estudantes para as ações de apoio e produção do festival. Para escritores, as inscrições encerram-se hoje (22), e tem como proposta “valorizar a produção literária local, promover o encontro entre autores e leitores e estimular o acesso à leitura em diferentes faixas etárias”.
(Veja links da prefeitura no final desta matéria)

Reprodução
Significado local, impacto e desafios


O FDP! é entendido por muitos como mais do que uma feira literária: pode ser descrito como uma praça pública ocupada por livros, doces, música, debates, oficinas e vozes — elemento que reforça a riqueza cultural de Campos dos Goytacazes.

Tendo em vista que o interior fluminense historicamente lida com obstáculos de captação, execução e visibilidade para eventos culturais, a aprovação do projeto representa ao menos um avanço simbólico e prático. Ainda assim, a liberação dos recursos e concretização do evento dependem agora da boa articulação dos parceiros, da Prefeitura, do estado e dos patrocinadores interessados.

Fica o compromisso de que a programação seja divulgada em breve, bem como os nomes dos convidados, debates, oficinas e shows, com a certeza de que o calendário local terá novamente este momento literário-cultural mergulhado na identidade campista.

Com o aval estadual, a 6.ª edição do Festival Doces Palavras está pronta para sair do papel — o que motiva não apenas a FCJOL e a Prefeitura, mas toda a comunidade literária, artística e cidadã de Campos. Resta agora que a pauta administrativa e organizacional seja bem cumprida para que o festival reafirme seu lugar no calendário cultural da região, sem que o silêncio volte a dominar no lugar das “palavras doces”.
 
Veja publicação da prefeitura de Campos sobre credenciamento de estudantes aqui.
Veja publicação da prefeitura de Campos sobre inscrições de autores aqui.
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Vai ter ou não vai ter FDP!? Futuro do festival decidido na próxima quinta-feira (9)
07/10/2025 | 21h00
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A apresentação que o jornalista Vitor Menezes transmitida no telão da Academia Campista de Letras (ACL), no último 22 de setembro, trazia um histórico do Festival Doces Palavras (FDP!), desde sua concepção até a edição atual, de 2025. O público presente ouvia atentamente, e a mesa composta pela direção da Fundação Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) aguardava sua vez de falar e prestar esclarecimentos sobre os andamentos do FDP! até aquela data.

Após a apresentação de Menezes, é concedida a palavra ao escritor e dramaturgo Adriano Moura, que pondera sobre o prazo exíguo para a organização do festival e faz a pergunta que todos se faziam naquela ocasião: “vai ter ou não vai ter o FDP! este ano?”.

Para responder a pergunta, Fernanda Campos, atual presidente da FCJOL, começa sua fala agradecendo os que falaram antes dela e quem estava ali presente, e relata o empenho de sua equipe em fazer com que a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, através de leis de incentivo, aprovasse o projeto do FDP! inscrito algum tempo antes. Sobre a possibilidade de realização às expensas do município de Campos, a presidente disse que as condições atuais dos cofres públicos locais não estavam favoráveis, principalmente por entraves no repasse de recursos estaduais na área de saúde. Mas, termina sua fala afirmando que o FDP! será realizado, e que “daria um jeito” do festival ser posto em prática.

Um festival genuinamente campista

O Festival Doces Palavras é um evento literário genuinamente campista. Pensado para ser realizado no interregno da bienal local, o FDP! desde o início se propôs a aliar diversas manifestações da cultura de Campos, inclusive levando as tradicionais doceiras da cidade para expor e comercializar seus produtos. 

Artigo do jornalista Vitor Menezes, no "Monitor Campista" onde nasce a ideia do FDP!.
Artigo do jornalista Vitor Menezes, no "Monitor Campista" onde nasce a ideia do FDP!. / Wellington Cordeiro
A prefeitura de Campos seguiu apoiando e realizando o FDP!, até 2019, quando decidiu não mais participar. Na ocasião, a sociedade civil abraçou o evento e o realizou com uma programação descentralizada, ocorrendo durante um mês, em vários espaços culturais da cidade. Em 2021 foi retomada a realização pela prefeitura, que precisou planejar atrações híbridas por conta da pandemia da Covid-19.

A edição atual do FDP! encontra uma situação semelhante à de 2019. Embora a FCJOL não se negue a promover o evento, as dificuldades financeiras alegadas já fizeram com que o evento inicialmente marcado de 24 a 28 de setembro fosse adiado para novembro, do dia 5 ao dia 9.
Na última quarta-feira (1), uma nova reunião, dessa vez no Museu Histórico de Campos e sem a presença da presidente da FCJOL, o diretor artístico da Fundação, Fábio Matos, reforçou que o FDP! acontecerá no novo período acordado, e com previsão de ser realizado nas dependências do Palácio da Cultura — equipamento localizado no coração de um dos bairros mais valorizados de Campos.

Um dilema FDP!

Apesar das confirmações da Fundação Cultural — instituição que faz as vezes de Secretaria de Cultura em Campos —, o FDP! segue com a dúvida sobre qual será a origem dos recursos para sua realização.

No Estado, dois projetos com o festival como objeto seguiam, em paralelo, para buscar aprovação. O primeiro, de número 73.541, foi desclassificado pela secretaria estadual em 23 de setembro deste ano, informado pelo Diário Oficial do Rio. O segundo, registrado com a numeração 74.088 segue em análise, e terá seu destino decidido daqui a dois dias, na próxima quinta-feira (9).

A plataforma estadual é estruturada em lei de incentivo fiscal, onde empresas aportam recursos que seriam usados no pagamento de impostos. Apoiando o FDP! estaria a rede de supermercados “Dom Atacadista”.
Reunião na quarta (1º) sobre o FDP!, no Museu Histórico de Campos, contou com representante da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, mas não com a sua presidente, Fernanda Campos (Foto: Rodrigo Silveira/Folha da Manhã)
Reunião na quarta (1º) sobre o FDP!, no Museu Histórico de Campos, contou com representante da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, mas não com a sua presidente, Fernanda Campos (Foto: Rodrigo Silveira/Folha da Manhã)


Consultado pelo Folha1 sobre o projeto, a Secretaria de Cultura do Estado informou, através da assessoria de comunicação, que “o proponente (FCJOL) ainda não anexou ao sistema a declaração de patrocínio, documento obrigatório para a liberação do recurso. Assim, mesmo que o projeto seja aprovado pela CAP, sua fruição só poderá ocorrer após a apresentação da referida declaração”.

O prefeito de Campos, Wladimir Garotinho, e a presidente da FCJOL, Fernanda Campos, contestaram a informação do Estado, ao Folha1. “Não é verdade, o documento foi entregue, eu mesmo busquei o documento com o representante do Dom Atacadista”, disse Wladimir. Já Fernanda, disse ser “improcedente” a informação, e confirmou o envio do documento exigido pelo Estado em “22 de agosto, tão logo obtivemos importante e fundamental documento em mãos”.


Procurado, o prefeito de Campos disse “não ser verdade” que o documento não foi entregue. E que ele próprio havia buscado o documento com o representante do Dom Atacadista, que teria sido encaminhado ao estado há cerca de 30 dias.

Sobre a contestação da Prefeitura, a secretaria estadual insiste: “reiteramos que o projeto Festival Doce Palavras foi submetido ao Sistema Desenvolve Cultura em 29 de agosto e será analisado no dia 9 de outubro (...) em um período consideravelmente mais rápido do que o possível de acordo com a legislação vigente”, e que “o modelo padrão (da declaração), encontrado no nosso site oficial, não foi anexado ao sistema, em discordância com a legislação em vigor”.

Além de alegar desconformidade do documento, a secretaria informa que “é necessário que a empresa (Dom Atacadista) apresente certidão negativa de débitos trabalhistas, o que não consta no parecer da Justiça do Trabalho”. Informa ainda que tentou contato com a FCJOL, via sistema, “buscando solucionar as questões apresentadas, mas não obteve resultado”.

Enquanto os documentos cruzam prazos e protocolos e as declarações se transformam em versões contraditórias, o tempo corre contra o festival. O FDP! nasceu da vontade de unir palavra e identidade, mas parece agora aprisionado no labirinto da burocracia e das alegações de falta de recursos.

Cultura, como direito difuso e constitucional, pode servir também de ganho turístico e econômico para a cidade — mas, antes de tudo, é um direito. E não um favor.
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FDP! Festival Doces Palavras: quando a cidade precisa escolher entre silêncio e palavra
01/10/2025 | 14h51
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Campos dos Goytacazes tem um festival que é mais do que evento: é manifestação local de cultura. O FDP! Festival Doces Palavras, organizado pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) em parceria com a sociedade civil, nasceu como uma rara convergência entre literatura, música, patrimônio e cidadania. Um espaço onde o setor cultural da cidade, tantas vezes acusada de não se escutar, finalmente pôde se reconhecer na própria voz.

Mas para que palavras ecoem, é preciso microfone e estrutura. E para que microfones funcionem e estrutura aconteça, é preciso orçamento. Orçamento que a prefeitura alega buscar junto ao Estado, através de edital de apoio da Secretaria de Cultura estadual. A questão é que o festival, que já foi adiado (veja matéria do Blog de Matheus Berriel aqui) para novembro (5 a 9/11), precisa de tempo hábil para organização.

Com a preocupação de quem milita na área cultural há algum tempo e percebe a importância de um evento como o FDP!, tentei conciliar obrigações e interesses dos poderes públicos, e para isso me reuni com o presidente da Câmara, Fred Rangel através do vereador Dudu Azevedo. A posição da Câmara é de apoio ao evento, mas segundo o presidente não haveria caminho jurídico e administrativo para aplicação de recursos diretamente do legislativo.

No mesmo sentido, busquei a reitoria da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), através da reitora Rosana Rodrigues e do diretor de Cultura Giovani do Nascimento, que prontamente se dispuseram a ajudar a realização do evento.
Em contato com a secretária estadual, Danielle Barros, a mesma se comprometeu em verificar o andamento da solicitação, e em ato contínuo foi demandado à secretaria uma posição oficial, que não foi respondida até a publicação deste artigo. 

Embora o papel de articulação seja da organização do evento, a ideia em procurar os dois entes aqui citados atende a ideia de que ambos devem, enquanto agentes locais públicos e essenciais, apoiarem um festival com essas características. E deixa uma pergunta, após contatos feitos: a FCJOL, hoje presidida por Fernanda Campos, que deveria ser a guardiã e articuladora natural desse festival, tem feito as articulações necessárias, ou aguarda apenas o orçamento do Estado?

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Problema que se arrasta


O problema não é de hoje. A política cultural em Campos tem se movido em passos tímidos, com raras iniciativas sustentadas de forma perene. O FDP! não é capricho de produtores culturais; se trata de uma construção coletiva, que já mostrou público, relevância e impacto. Mas a cada edição paira a dúvida: haverá verba? Haverá vontade política?

Hoje (1), às 18h, está marcada uma reunião no Museu Histórico para tratar do futuro do festival. Reunião que não é só administrativa, também tem caráter simbólico. Por lá, a sociedade civil, partícipe do evento, deverá cobrar da FCJOL ações e ocupação de espaços culturais com incitativas dessa natureza, e lugares para isso não faltam na cidade. A FCJOL precisa assumir a liderança que dela se espera, sem terceirizar ao improviso da sociedade civil o que é dever institucional.

A cidade tem direito à sua festa das palavras. Mas palavras, sem respaldo, viram apenas discursos vazios. O festival, para existir, precisa que as instituições falem menos “não há como” e mais “vamos fazer acontecer”. A omissão custa caro: uma cidade que cala suas palavras, cedo ou tarde, se acostuma ao silêncio.

O FDP! Ainda está aqui?

Não se trata, portanto, de um favor que a FCJOL ou a Prefeitura fariam à sociedade civil. Trata-se de reconhecer que Campos precisa de um projeto cultural que vá além da retórica. O festival é uma oportunidade de mostrar que a cidade é capaz de falar de si mesma, de se olhar no espelho, de se escutar. Negligenciar isso é um contrassenso em pleno 2025, quando é essencial discutir memória e identidade.

O encontro de hoje no Museu Histórico não pode ser só mais uma reunião protocolar. É preciso sair de lá com um compromisso: que a Prefeitura e a FCJOL assumam a responsabilidade que lhes cabe, que a Uenf e outras instituições parceiras somem forças - caso sejam chamadas a participação oficialmente - e que a sociedade civil, como sempre, faça sua parte. O que não dá é para continuar empurrando o festival com a barriga, sob risco de transformá-lo em lembrança, em vez de tradição.

Porque, ao fim, a escolha é simples: ou Campos aposta nas palavras — doces, críticas, plurais — ou se resigna ao silêncio. E o silêncio, já sabemos, nunca foi bom conselheiro de nenhuma cidade.
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Pesquisa da Uenf e Universidade americana vai ouvir campistas sobre patrimônio cultural
17/09/2025 | 20h59
Pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e da Fairfield University, dos Estados Unidos, lançaram uma pesquisa para avaliar o que a população de Campos dos Goytacazes sabe e pensa sobre o patrimônio cultural do município. O questionário, que leva cerca de 15 minutos para ser respondido, está disponível online e pode ser acessado por qualquer morador interessado.

O estudo é coordenado pelo professor Carlos E. de Rezende (Uenf) e pelo professor William F. Vásquez (Fairfield University). O objetivo é coletar informações que possam subsidiar a formulação de políticas públicas voltadas à preservação da memória cultural campista. A participação é voluntária e anônima.

A pesquisa chama atenção em um momento de fragilidade do patrimônio local. Espaços históricos como o Mercado Municipal, em condições insalubres, o Museu Olavo Cardoso, fechado, e o Solar dos Airizes, em ruínas, revelam a dificuldade do município em lidar com sua herança cultural. A iniciativa dos pesquisadores pode ajudar a medir o grau de engajamento da sociedade diante desse cenário.

As respostas são coletadas por meio da plataforma Qualtrics, que não exige informações pessoais, como nome ou e-mail, nem registra o endereço IP dos participantes (link aqui). O sistema é seguro e garante o anonimato dos dados, que poderão ser compartilhados em pesquisas acadêmicas futuras, sempre de forma confidencial.

Medir o conhecimento e o apego

A pesquisa servirá para um necessário exame de consciência coletiva do campista sobre seu patrimônio cultural. Além de medir o grau de conhecimento — e apego —, busca levantar dados que possam ajudar na formulação de políticas públicas voltadas para a preservação cultural.
 
Link para pesquisa abrirá a página inicial com as informações completas e termo de consentimento eletrônico. Basta seguir as páginas e responder os questionamentos propostos, podendo pular perguntas.
Link para pesquisa abrirá a página inicial com as informações completas e termo de consentimento eletrônico. Basta seguir as páginas e responder os questionamentos propostos, podendo pular perguntas. / Reprodução


Embora não haja qualquer benefício financeiro ou premiação ao participante, o ganho é coletivo: as respostas ajudarão a orientar ações e decisões que impactam a preservação de prédios, praças, tradições e símbolos culturais da cidade.

Afinal, qual é a real importância que a população atribui à sua própria história? Mais do que medir conhecimento, o estudo testa a nossa disposição de assumir responsabilidade sobre uma herança que resiste mais pela força do acaso do que pelo zelo público.


Serviço

O que é: Pesquisa sobre o patrimônio cultural de Campos dos Goytacazes
Quem realiza: Prof. Carlos E. de Rezende (Uenf) e Prof. William F. Vásquez (Fairfield University)
Tempo estimado: 15 minutos
Confidencialidade: Garantida pela plataforma Qualtrics
Link de acesso: pesquisa

Contato para dúvidas:
Prof. Carlos Rezende: crezende@uenf.br
Prof. William Vásquez: wvasquez@fairfield.edu

Comitê de Ética (Fairfield University): irb@fairfield.edu
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104 anos do Mercado Municipal: entre o descaso, memória e resistência à mudança
15/09/2025 | 20h10
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível.
A Torre do Relógio, que virou símbolo de resistência do patrimônio histórico, mas segue invisível. / Foto: Genilson Soares / Folha1


O Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes completa nesta segunda (15), 104 anos de existência (veja matéria da Folha1 aqui). Pelo menos esse que conhecemos hoje, ao lado do Parque Alberto Sampaio — a cidade já possuía outras praças de mercado antes da inauguração do atual, em 1921.

O Mercado que faz parte da paisagem campista, há mais de um século, nasceu em uma perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a “torre do relógio”), com forte inspiração europeia e servindo com símbolo de progresso e urbanização da cidade, no início dos anos 1920.

Mas o que era para se manter como um orgulho acabou se convertendo em um problema.

Problema que pouco tem relação com os permissionários da feira livre (boxes instalados na frente do mercado e abaixo de uma estrutura metálica), do camelódromo (boxes instalados na outra face do prédio, também abaixo de um galpão) e do próprio mercado, mas sim com estreita ligação com uma série de decisões equivocadas por parte do poder público.

O que era para ser símbolo de vitalidade urbana virou retrato de abandono e descaracterização. Embora seu interior ainda mantenha a alma — com cheiro, voz, caldo de cana e a sociabilidade popular —, o entorno e o próprio prédio histórico foram totalmente descaracterizados.
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia
Mercado Municipal inaugurado em 1921 numa perspectiva higienista, sendo construído em dois pavimentos iguais divididos por uma torre (a "torre do relógio"), com forte inspiração europeia / Arquivo


A obra do camelódromo nunca deveria ter sido liberada naquele local, pois vai contra todas as recomendações das instituições de proteção ao patrimônio histórico. A estrutura metálica da feira e da peixaria, construída nos anos 1980 para ser provisória, esconde as potencialidades do Mercado e mantém os permissionários em condições inadequadas.

O que comemorar?

Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio.
Prédio histórico ainda resiste, mas esmagado por duas estruturas metálicas, contra as recomendações de órgãos de proteção ao patrimônio. / Foto: César Ferreira / PMCG
Ao transeunte que tenha passado hoje pelo Mercado e visto bolo e banda de música, pode ter ficado a impressão de que havia uma comemoração ali. Celebrar a longevidade de um centro comercial, com o valor afetivo daquele espaço, é necessário. Mas perceber que as condições dos feirantes é ruim e que o prédio está em estado de abandono é ainda mais.

Há quem diga que a construção de inspiração francesa, com sua torre do relógio, é patrimônio, e que a cidade não pode abrir mão dele. E de fato não pode — mas patrimônio se conserva e se deixa exposto, acessível, possível de contemplação e cumprindo um papel memorialístico.

Tudo o que não se percebe no Mercado: esmagado por duas estruturas estranhas, invisível e mal conservado.

Descaso que não se confunde com quem trabalha no local e luta com esforços diários para manter tudo o mais saudável e limpo possível. Gente que começa na madrugada a preparação para a venda de peixe, farinha, hortaliça, biscoitos, doces e outros tantos produtos que poderiam ser comercializados para turistas e campistas de forma muito mais confortável.

Soluções possíveis
Para um problema complexo, soluções complexas devem ser empreendidas. Não há caminho fácil ou resolução possível sem realocar pessoas, fazer intervenções através de obras e alterações logísticas, modificar a paisagem e ressignificar vivências e espaços. Porém, são ações necessárias e urgentes, uma vez que as omissões se arrastam por décadas.

Existe a proposta de construir um novo mercado (nova feira), moderno, higienizado, arejado, na Praça da República, atrás da rodoviária do centro, a Roberto Silveira. Local que está a menos de 300 metros da atual feira, e encontra-se subutilizado. Embora o projeto necessite de ajustes e maiores discussões, inclusive com os feirantes, é uma solução bastante crível e que a prefeitura já sinalizou interesse em realizar.

Mas, como tradição em Campos, aparece a resistência: uns falam em “matar a tradição”, outros em “descaracterizar o centro histórico”. Como se tradição fosse sinônimo de precariedade, como se memória tivesse que conviver obrigatoriamente um ambiente sem as adaptações necessárias para os tempos atuais.

Além disso, não se trata de demolir o antigo, mas de criar o novo. O atual mercado pode — e deve — ser preservado como espaço cultural, centro gastronômico e polo turístico. Pode e deve se integrar com o Parque Alberto Sampaio e com centros populares de comércio, desde que respeitem as especificidades do patrimônio histórico.
O novo mercado, por sua vez, deve ser construído para cumprir o papel de abastecimento, com dignidade e condições sanitárias adequadas. Mas em Campos, quase tudo vira disputa binária: ou se mantém o cadáver em pé ou se apaga a história. Enquanto isso, a cidade definha seu patrimônio e potencial no meio-termo, incapaz de se mover.

Aos 104 anos, o Mercado Municipal é mais testemunha de abandono do que motivo de orgulho. Talvez seja esse o retrato mais fiel de Campos: uma cidade que carrega o passado como peso, mas não consegue transformá-lo em futuro.
GoogleMaps / Edmundo Siqueira

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Paz de papel e apaziguamento: de Munique (1938) ao Supremo (2025)
02/09/2025 | 21h48
Em Munique, da esquerda para a direita: Benito Mussolini, Adolf Hitler, Edouard Daladier e Neville Chamberlain
Em Munique, da esquerda para a direita: Benito Mussolini, Adolf Hitler, Edouard Daladier e Neville Chamberlain / Reprodução


Não é incomum lermos ou nos depararmos com vídeos de analistas onde há uma defesa da “pacificação do país”. Compreensível, em uma quadra da história onde ódios são estimulados e a posição política de alguém define sua identidade — tempos de polarização afetiva, em resumo. Portanto, “pacificar” é bem-vindo.

Porém, há no conflito algo de democrático. É na democracia que ideias diferentes podem conviver e o direito de defender posições contramajoritárias pode ser exercido. Em regimes autoritários, isso não é possível. O conflito só é possível na ditadura quando há enfrentamento armado, quando o dissenso pretende ser resolvido pela força, onde não cabe discussão.

O ódio e a polarização afetiva — onde o outro é inimigo, quando não há convivência pacífica entre quem pensa diferente politicamente — são subversões do conflito. Nessas condições, o conflitante deve ser eliminado. Então, é possível afirmar que a ausência de conflito pressupõe que um lado impôs sua vontade, uma vez que sempre haverá interesses diversos na sociedade e em suas relações. Trazer a paz, portanto, não se trata apenas de apaziguamento — o conceito de “paz” precisa ser mais amplo, mais completo, sob pena de transformar a paz em medo.

Política do apaziguamento

No julgamento do ex-presidente Bolsonaro, que iniciou nesta terça-feira (2) no Supremo (veja matéria da Folha1 aqui), o ministro Alexandre de Moraes usou, novamente, como vem usando no curso do processo, a ideia da “política do apaziguamento”, citando  o erro histórico cometido pelas potências europeias durante a escalada expansionista de Adolf Hitler nos anos 1930.
 
Julgamento no Supremo Tribunal Federal
Julgamento no Supremo Tribunal Federal / Gustavo Moreno / STF

“A pacificação do país é um desejo de todos nós, mas depende do respeito à Constituição, da aplicação das leis e do fortalecimento das instituições, não havendo possibilidade de se confundir a saudável e necessária pacificação com a covardia do apaziguamento”, disse Moraes nesta terça.

O paralelo do ministro do Supremo traz consigo uma óbvia conotação política, e parece pretender comparar o bolsonarismo como um movimento extremista e violento, assim como foi o nazismo, e também subversivo da ordem vigente. Não leva em conta — ou pelo menos não as problematiza — as diferenças dos contextos históricos, e pior: antecipa seu voto, deixando claro que percebe os réus como indivíduos danosos à democracia.

Mas o uso político do julgador, e seu voto antecipado, não invalida o fato de que apaziguar por medo é um erro, seja em qualquer tempo histórico que se aplique.

Aprender ou repetir Chamberlain?
Em setembro de 1938, líderes europeus se reuniram em Munique diante da ameaça de Hitler de invadir a Tchecoslováquia. O premiê britânico Neville Chamberlain, ao lado do francês Édouard Daladier, acreditava estar evitando uma guerra ao conceder ao Reich o direito de anexar a região dos Sudetos. A cena é histórica: Chamberlain retorna a Londres brandindo um pedaço de papel, o acordo assinado com Hitler, e proclama à multidão ansiosa: “Peace for our time”. Paz para o nosso tempo.

Era, na verdade, a rendição antecipada. Menos de um ano depois, Hitler invadia a Polônia e mergulhava o mundo em sua guerra mais devastadora. A paz proclamada em Munique não passava de medo travestido de virtude; e o medo, quando governa decisões políticas, só fortalece os violentos.

O que Moraes sugere em seu voto é que não podemos repetir Munique em 2025. O bolsonarismo — guardadas todas as diferenças históricas — é um movimento que se alimenta da ideia de que a lei é um obstáculo a ser driblado, e não um limite civilizatório. O dilema, portanto, não é se devemos “pacificar” ou “condenar”, mas se estamos dispostos a pagar o preço da covardia em nome de uma paz que não existe. 

A democracia não se fortalece fechando os olhos para o golpismo — o que aliás se praticou no Brasil em relação aos militares de 1964. Não se trata de vingança, mas de limites. O apaziguamento de 1938 alimentou a fera que destruiria a Europa; o apaziguamento político de hoje pode alimentar a corrosão lenta de nossas instituições. O paralelo histórico, ainda que imperfeito, é pedagógico.

A questão, então, é simples: ou aprendemos com Chamberlain, ou repetimos Chamberlain.
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Entre utopias e telas: o que o Festival Goitacá projeta para Campos
30/08/2025 | 12h35
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Abertura do Festival, que trouxe a atriz e cantora campista Zezé Motta, homenageada da noite, e também recebeu o título Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Há cidades que guardam em seus subterrâneos memórias inteiras à espera de serem reativadas. Campos é uma delas. Não apenas em subterrâneos — com memórias dos povos originários e de pessoas escravizadas —, como em patrimônios erguidos e esquecidos em toda planície. Histórias que clamam pelo pertencimento de um povo que teima em negá-lo. Muitas dessas histórias, dariam filmes e são de “cinema”.

Durante o século XX, Campos teve quase setenta salas de cinema em funcionamento — entre ruas centrais e distritos rurais, uma verdadeira rede de telonas iluminando o interior do estado do Rio de Janeiro. O cinema, como ferramenta poderosa de arte e cultura, trazia imagens projetadas e era parte da vida comum dos fluminenses dessa região: a ida ao cinema era lazer, era ritual, encontro e respiração coletiva (veja matéria sobre o assunto, deste mesmo espaço, aqui).

Esse tempo ruiu. Das dezenas de salas, sobraram duas nos anos 1980. Depois, nenhuma. Capitólio fechado, Goytacá vendido a uma igreja evangélica. Ficaram apenas as lembranças de marquises acesas e do rumor da plateia antes da sessão. Ficou o eco do que poderia ter sido, e na movimentada Avenida 28 de Março, resiste apenas a fachada melancólica do antigo Cine São José.”
Darcy Ribeiro, que acreditava no poder das universidades para reinventar o destino do Brasil, sonhou para a Uenf, em Campos, uma Escola Brasileira de Cinema e Televisão. Escolheu o Solar do Colégio — joia arquitetônica, então em ruínas — para abrigar esse gesto inaugural. O projeto nunca saiu do papel. Mais uma utopia interrompida, mas que possibilitou o Arquivo Público Municipal, instalado no Solar e se constituindo como um importante equipamento cultural da cidade.

O recomeço pelo Festival
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema foi sucesso de público e crítica. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


Mas as cidades também sobrevivem de recomeços. E foi nesse espírito que o I Festival Internacional Goitacá de Cinema nasceu (veja matéria do Folha1, com números do Festival, aqui). A primeira edição, realizada neste agosto, trouxe não apenas filmes: trouxe seminários, encontros, e até um sonhado mercado audiovisual. Mais do que uma programação, trouxe uma pergunta essencial: pode uma cidade que perdeu suas salas reencontrar-se com a tela grande e suas boas consequências?

A atriz Fernanda Soares, campista e com trajetória  na TV Globo e no teatro, respondeu a essa pergunta no corpo da própria experiência. Ministrou a masterclass “O ator no mercado audiovisual” e, diante de jovens atores locais, reviu sua própria história:

A atriz Fernanda Soares.
A atriz Fernanda Soares. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra
“Foi especial demais. Me reconheci naqueles jovens, e passou um filme na minha cabeça de quando eu morava aqui, sonhando em viver de arte. Estar no Festival Goitacá em Campos me faz acreditar em como a educação tem um papel importante formativo, de criar talentos e fortalecer a cena cultural no interior, que também é viva, diversa e cheia de possibilidades.”


Havia, em sua fala, um reconhecimento profundo: o festival não é apenas vitrine, é formação. É esse gesto formativo que pode, talvez, ocupar simbolicamente o espaço vazio deixado pela escola de cinema de Darcy Ribeiro.

Fernanda enxergou também o caráter histórico da transformação:

“Ver Campos se tornar oficialmente uma rota cinematográfica mostra como a cidade pode registrar e valorizar sua história, ao mesmo tempo cria oportunidades reais para novos artistas, fortalecendo a identidade local e dando visibilidade a uma cena cultural nova, plural e potente.”
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação"
Fernanda Soares é atriz natural de Campos dos Goytacazes, iniciou o curso de teatro ainda em sua cidade, formando-se em 2013. Após participar de diversos espetáculos, estreou também em 2013 no espetáculo "Com Açúcar e com Afeto pra Chico", musical inspirado em obras do cantor Chico Buarque. Em 2015, fez parte de um grupo de estudo voltado para a performance teatral com Suzana Kruger e Flávia Pucci. Dois anos depois, ingressou no bacharelado na CAL, formando-se em Artes Cênicas com a peça "Radioativa" em 2019. Em 2024 participou de "O Poço da Mulher Falcão" no CPT . Na TV Globo, atuou em "Bom Sucesso" e "Malhação" / Reprodução / Instagram


Essa pluralidade, que Darcy chamaria de “força criativa do povo”, é a chave. Mas, como lembrou a atriz, não basta abrir a porta uma vez. É preciso continuidade:

“O Festival cria um elo forte com a futura escola de cinema da Uenf, e isso me enche de esperança. Mas, para que esse movimento não se repita, precisamos estimular a continuidade da produção cultural, de modo que nossas histórias alcancem públicos em todo o país.”

Se a voz de Fernanda recupera a memória dos sonhos interrompidos, a de Fernando Sousa, diretor do festival, projeta o futuro:

“O Festival Internacional Goitacá de Cinema nasce com a força e a grandeza da região Norte-Noroeste Fluminense. A gente teve uma noite de abertura uma programação extensa uma noite de encerramento linda, já apontando pro futuro do festival que na sua segunda edição homenageará também o campista ator campista Tonico Pereira (...) Esperamos que o que o festival se consolide como espaço de encontro de novas conexões e contribua pro desenvolvimento econômico da região norte Noroeste Fluminense, apontando assim para novas vocações e novas possibilidades de crescimento mais sustentável dialogando com a identidade com a imaginação e com a força criativa da população da região (...) Então a gente encerra muito feliz, com o dever cumprido, mas com a certeza de que há muito trabalho pela frente que vai precisar do poder público, em suas diferentes esferas, Municipal, Estadual e Federal, da iniciativa privada, de lideranças da sociedade civil e de toda a população de Campos.” 
A continuidade do sonho
 
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival.
Fernando Sousa, diretor geral do I Festival Internacional Goitacá de Cinema, durante a prestigiada noite de encerramento do Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema


O festival já anunciou sua segunda edição, com homenagem ao ator campista Tonico Pereira, com carreira consolidada na TV, teatro e cinema. A primeira edição, a atriz e cantora campista Zezé Motta foi celebrada duplamente: no palco do festival e no recebimento do título de Doutora Honoris Causa pela Uenf.

O gesto de continuidade do Festival Goitacá não é pequeno: em uma cidade onde a memória costuma ser abandonada, a continuidade é quase um ato político.

Em tempos de plataformas digitais e consumo solitário de imagens, o Festival devolveu a Campos algo mais valioso que a exibição de filmes: devolveu a experiência coletiva da sala escura. Rir junto, silenciar junto, reconhecer-se no vizinho que ocupa a cadeira ao lado.

O Festival projeta mais que imagens: projeta uma possibilidade de futuro. Glauber Rocha, lembrado por Darcy Ribeiro no célebre discurso em seu enterro, dizia que seu cinema era um grito, um berro, uma indignação convertida em arte. Darcy, por sua vez, acreditava que a educação era a utopia mais urgente.

O que o Festival Goitacá ensaia é a costura dessas duas forças: o cinema como espaço de consciência e a formação como ferramenta de transformação. Entre as salas que se perderam e as que podem renascer, entre a escola de cinema que nunca existiu e a que pode ainda existir, Campos se vê mais uma vez diante do espelho das telas.

E, se há algo que Glauber e Darcy nos ensinaram, é que a utopia só fracassa quando deixa de ser sonhada.
 
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil.
O I Festival Internacional Goitacá de Cinema trouxe programação plural, inclusive aos pequenos, como a Mostra KBrunquinho que propôs uma experiência cinematográfica dedicada ao público infantil. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival.
Centro de Convenções da Uenf, conhecido como "apito", obra de Oscar Niemeyer, em dias de Festival. / Fotos: Patrícia Crespo e Renato Dutra / Festival Internacional Goitacá de Cinema
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Entre áudios e silêncios: justiça em meio ao ruído
24/08/2025 | 21h20
Foto: Gabriel Silva/Estadão


A quarta-feira, 16 de março de 2016, foi decisiva para o Brasil. As consequências políticas e sociais que advieram desse dia definiram muito das relações de poder que se encontram vigentes, ainda hoje, no país. No início da noite daquela histórica quarta, milhares de pessoas ocuparam a avenida Paulista, e se aglutinavam em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília.
As manifestações se replicaram pelo país, e ao menos 15 cidades registraram atos de rua significativos — tudo transmitido ao vivo pela TV e pelas redes sociais. Os gigantes patos amarelos foram inflados novamente na frente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assim como acontecera no domingo imediatamente anterior àquela quarta-feira.

Os atos de rua do domingo — marcadas simbolicamente em um dia 13 — foram considerados, até então, como os maiores já registradas no período democrático brasileiro, e inflamaram o país a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que cairia alguns meses depois. Na quarta-feira, o sentimento antipetista atingia seu auge. Noticiado à exaustão, um grampo vazado pelo então juiz Sérgio Moro era gasolina no fogo que já estava ateado. Ao telefone, Dilma avisa a Lula que o termo de posse para se tornar ministro estava a caminho, e que ele deveria usar apenas “em caso de necessidade”.

A conversa entre a então presidente do Brasil com o ex-presidente, que estava sendo acusado de diversos crimes, dava um recado claro à população: o documento e a posse como ministro era para proteger Lula de uma eventual detenção. Lula despede-se com “tchau, querida”, o que se transformou em um slogan irônico do antipetismo, ainda hoje presente.

A explosão das ruas em 13 e 16 de março: os símbolos nacionais e a camisa da seleção

Foi ali naquela quarta que bandeiras do Brasil e camisas da seleção brasileira de futebol começaram a ser fortes símbolos antipetistas e anti-esquerda. A Paulista tingia-se de verde e amarelo, multidão que também era composta por pessoas com roupa social de quem havia acabado de sair do trabalho e adiaram a volta para casa. Segundo reportagem do El País, uma ciclista, que pedia calma no meio da avenida, foi xingada de “petista filha da p****” por outros manifestantes.

A Fiesp tratava de soprar mais oxigênio para as chamas com caixas de som viradas para a avenida que tocavam o hino nacional, que era entoado com toda a força pelos manifestantes. O hino também foi se transformando em símbolo político de uma militância que se formava ali. Em imagem aérea — que tratou de ser amplamente divulgada — era possível ver sobre as camisas da seleção uma enorme faixa preta onde se lia Renúncia Já.
Foto: Marcos Alves / Agência O Globo


Os atos do domingo que se estenderam até aquela quarta de 2016 não tiveram causas isoladas. O segundo governo Dilma, que iniciou em 1º de janeiro de 2015, estava muito enfraquecido por uma crise econômica aguda e por diversas denúncias que atingiam em cheio os partidos que a apoiaram. Os índices de popularidade da presidente estavam em níveis muito baixos e a insatisfação era crescente.

Porém, o que era um governo ruim se transformou em uma crise social e institucional que iria abalar profundamente as estruturas da república. Os anos seguidos de governos petistas trouxeram o desgaste natural da permanência, e a ampla corrupção revelada ampliaram a revolta.

A República de Curitiba e seus super-heróis de toga
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional.
O então juiz Sérgio Moro se transformou em herói nacional. / Minervino Júnior/CB/D.A Press


“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos uma Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado”, dizia o ex-presidente Lula na conversa interceptada com Dilma. “Eu, sinceramente, tô assustado com a 'República de Curitiba'”, completou Lula.

A tal “República de Curitiba” foi o termo que se popularizou para definir uma estrutura de uma Vara Federal convertida em órgão judiciário especializado em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro nacional, que ganhou força e elevou os julgadores e promotores para a condição de heróis nacionais. Vestindo togas de super-heróis, Moro e companhia se transformaram em uma força política, mais que jurídica, que determinava os rumos do Brasil naquele período, e pautava todo o noticiário.

O pastor, o ex-presidente denunciado e a influência do governo americano

A história teima em se repetir no Brasil — seja como farsa ou tragédia. Também numa quarta-feira — desta vez no ano corrente, em 20 de agosto — o Brasil acompanhou como novela os áudios liberados pelo STF, oriundos do recente inquérito em que Eduardo e Jair Bolsonaro, entre outros, são investigados.

Em áudios e mensagens trocadas via WhatsApp, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o seu filho Eduardo Bolsonaro discutem, e entre xingamentos e acusações revelam sérios desentendimentos no núcleo duro do bolsonarismo. Em outras conversas, Eduardo critica o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Mas a mensagem em áudio mais repercutida na quarta foi com outro personagem importante do bolsonarismo, o pastor Silas Malafaia, que foi proibido pelo STF de se comunicar com Bolsonaro e deixar o país. Na mensagem, Malafaia chama Eduardo de “babaca” e que ele teria falado “merda” e feito um discurso “nacionalista”. Segundo o pastor, o filho de Bolsonaro estaria dando declarações que atrapalharam as intervenções do governo americano para defender o ex-presidente. “Toda arrombada que o Trump deu no mundo é sobre economia. Com o Brasil é sobre você, cara. A faca e o queijo tá na tua mão”, dizia Malafaia à Bolsonaro antes de outro xingamento e das críticas a Eduardo.

O direito à intimidade, o dever de informar e o interesse público

Não é uma exclusividade brasileira o uso de conversas interceptadas para alimentar investigações criminais e, em muitos casos, o debate público. Mas a divulgação ampla dessas mensagens — para além do processo e da persecução penal — coloca em choque dois princípios constitucionais: de um lado, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da Constituição Federal); de outro, a liberdade de imprensa e o direito da sociedade à informação (art. 5º, IX, e art. 220 da CF).

No caso dos áudios de Lula e Dilma, em 2016, juristas e acadêmicos denunciaram a violação de garantias fundamentais, pois a publicidade extrapolava a finalidade processual e assumia caráter político-midiático. Agora, em 2025, o vazamento dos diálogos de Bolsonaro e Malafaia revive esse dilema: o interesse público em conhecer articulações que podem envolver obstrução à justiça e até relações internacionais se sobrepõe à reserva da intimidade privada?

A resposta pode parecer fácil: saber sobre tramas golpistas que ameaçam a democracia, e tomar conhecimento de como personagens públicos dialogam com interesses estrangeiros, sobrepõe o direito à intimidade. Porém, o uso desse “poder” de forma indiscriminada e usada para uma evidente espetacularização da investigação pode fragilizar as instituições e transformar terrenos jurídicos em pântano de justiçamentos.

A divulgação irrestrita de conversas particulares tem o poder de criar um tribunal paralelo da opinião pública. É nesse espaço, instigado por algoritmos que adoram a radicalização, o conflito e a polarização cega, que se fragiliza a confiança nas instituições e acaba mostrando que a fronteira entre justiça e política fica difusa.

Em países como os Estados Unidos, Alemanha e França, casos semelhantes foram tratados de forma diversa, mas sempre com um ponto em comum: a proteção da imprensa quando há interesse público relevante. O precedente norte-americano Bartnicki v. Vopper (2001) reforça essa lógica, ainda que reconheça o desconforto de expor conversas privadas.

A história que insiste em se repetir

Assim como em 2016, os acontecimentos de agosto de 2025 revelam uma engrenagem política que se move também pela exposição midiática de conversas privadas. Os protagonistas mudam, mas os dilemas constitucionais permanecem. A cada nova divulgação, a sociedade brasileira é convocada a refletir sobre até que ponto se admite sacrificar direitos individuais em nome da transparência e do interesse coletivo.

O Brasil, que ainda não resolveu todos os contenciosos jurídicos e históricos da Lava Jato, pode estar plantando as sementes de novas nulidades e disputas judiciais para o futuro. O risco é que, entre direitos fundamentais e o clamor das ruas, prevaleça novamente a lógica do espetáculo.

Talvez o que nos falte não sejam mais áudios, mas silêncio — o silêncio das instituições sólidas, que cumpram a lei sem depender de vazamentos ou espetáculos. Até lá, continuaremos reféns de uma história que insiste em se repetir. Não precisamos de novos heróis nem de velhos vilões. O que o Brasil precisa, enfim, é de uma realidade séria.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

edmundosiqueira@hotmail.com